13 Mai 2013
“A crise financeira decorre da incapacidade de estabelecer uma governança financeira estável, apesar de, ao mesmo tempo, ter confirmado a primazia das finanças sobre a política”, constata o doutor em Economia Política.
A entrevista é de Graziela Wolfart | Tradução de Sandra Dall Onder
Na visão do economista italiano Andrea Fumagalli, estamos diante de uma instabilidade generalizada, estrutural e existencial, que vai além da condição de trabalho para abranger toda a vida: a instabilidade da vida. Para ele, o impacto da crise financeira acelerou este processo. “O trabalho estável tornou-se cada vez mais instável e muitas vezes os trabalhadores ficaram desempregados. Nos países onde esse processo foi silenciado pela existência de amortizadores sociais universais, houve um estreitamento das políticas de acesso. Nos países onde os amortizadores sociais são muito parciais e não existe renda mínima, houve um aumento alarmante da pobreza”. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, dando continuidade aos debates levantados na edição número 416 da revista (A organização do mundo do trabalho e a modelagem de novas subjetividades, Fumagalli defende que “o impacto das novas tecnologias criou novas formas de hierarquia e controle, especialmente entre o conhecimento tácito e codificado. Através da individualização posterior da relação de emprego e a disseminação do trabalho por tempo determinado, o sistema das grandes empresas aumentou o grau de expropriação social da cooperação social, que é a base das economias de aprendizado e de rede”.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli (foto) é professor no Departamento de Economia Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006) e Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Verona: Ombre corte, 2009).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como definir o mundo do trabalho diante da crise na Europa? O que mudou em relação a ele depois da crise nessa região?
Andrea Fumagalli – No contexto europeu, antes da crise econômica, o mercado de trabalho se caracterizava por uma crescente desregulamentação que havia favorecido um aumento no emprego por tempo determinado.
Na Alemanha, as reformas do ministro social-democrata Hartz favoreceram o surgimento de um mercado de trabalho dual, com um efeito de substituição do emprego estável pelo emprego por tempo determinado.
Na Itália, várias intervenções legislativas (a última foi a reforma Fornero, de 2012) institucionalizaram o contrato por tempo determinado como regra geral.
Na Espanha, a recente “reforma laboral” aumentou a flexibilidade dos contratos por tempo determinado.
Estes são apenas alguns exemplos.
De fato, o trabalho por tempo determinado tornou-se a condição de trabalho dominante. Estamos diante de uma instabilidade generalizada, estrutural e existencial (que vai além da condição de trabalho para abranger toda a vida: a instabilidade da vida). O impacto da crise acelerou este processo. O trabalho estável tornou-se cada vez mais instável e muitas vezes os trabalhadores ficaram desempregados. Nos países onde esse processo foi silenciado pela existência de amortizadores sociais universais, houve um estreitamento das políticas de acesso. Nos países onde os amortizadores sociais são muito parciais e não existe renda mínima, houve um aumento alarmante da pobreza.
IHU On-Line – Que reformas devem ser pensadas no mercado de trabalho europeu a partir da crise?
Andrea Fumagalli – Foi na década de 1980 (após a derrota das lutas operárias e sociais dos anos 1970, que contribuiu para o processo de modernização da Itália e da Europa) e, especialmente, a partir dos anos 1990 o momento em que se coloca à prova uma nova governança econômica, a qual irá se manifestar concretamente nas décadas por vir: uma política econômica que podemos definir em “dois tempos”.
Um primeiro tempo que visa melhorar a competitividade do sistema econômico no processo de globalização como a única condição para o crescimento que, em um segundo tempo, deveria ter – nas melhores intenções reformistas – gerado os recursos para melhorar a distribuição social da renda e, portanto, o nível de demanda. As medidas para criar competitividade no contexto da cultura econômica dominante concerniam duas diretrizes: o desmantelamento do estado social e sua financeirização privada (primeiro para os pensionistas, e depois gradualmente afetando a educação e hoje a saúde) e a flexibilização do mercado de trabalho, a fim de reduzir os custos de produção e aumentar os lucros necessárias para incentivar eventuais investimentos.
Na Itália, os resultados foram decepcionantes: longe de incentivar a modernização do sistema de produção, esta política tem gerado insegurança, estagnação econômica, erosão gradual da renda do trabalho, especialmente após os acordos de 1992-1993 e, em seguida, o declínio da produtividade.
O segundo tempo nunca começou e sabemos que, sic rebus stantibus, nunca terá início. O resultado foi uma redistribuição massiva de rendimentos do trabalho para a renda e lucro, com aumento da desigualdade social e um empobrecimento progressivo dos mais pobres. A crise de hoje não começou em 2008; começou, isto sim, no início dos anos 1990.
IHU On-Line – Quais os principais impactos que a revolução tecnológica provoca no mundo do trabalho? O que muda em relação aos valores dos empregados e empregadores?
Andrea Fumagalli – A partir dos anos 1990 em diante, de fato houve uma revolução copernicana nos processos de valorização capitalista, que viu a produção imaterial-cognitiva ganhar cada vez mais relevância em detrimento da material-industrial.
Hoje, os setores com maior valor agregado são os do setor terciário avançado e as fontes de produtividade que, cada vez mais, residem na exploração das economias de aprendizado e de rede, exatamente aquelas que exigem continuidade do emprego, garantia de renda e investimento em tecnologia: em outras palavras, uma flexibilidade de trabalho que pode ser produtiva somente se houver segurança econômica (continuidade da renda) e livre acesso aos bens comuns imateriais (conhecimento, mobilidade, sociabilidade).
O desenvolvimento do ICT favoreceu o surgimento de uma divisão do trabalho, a cognitiva, alinhada a esta e, às vezes, foi substituída na divisão técnica do trabalho, relembrando Smith. Com base nisso, o impacto das novas tecnologias criou novas formas de hierarquia e controle, especialmente entre o conhecimento tácito e codificado. Através da individualização posterior da relação de emprego e a disseminação do trabalho por tempo determinado, o sistema das grandes empresas aumentou o grau de expropriação social da cooperação social, que é a base das economias de aprendizado e de rede.
A importância dos direitos de propriedade intelectual consolidou esta tendência, apesar de criar novas contradições: em particular, entre a necessidade de uma difusão livre do saber para melhor explorar as economias de aprendizado e de rede, cercando o saber como fonte de lucro e renda.
IHU On-Line – Em que medida a crise financeira deixa evidente a relação existente entre a categoria econômica e a categoria política? Como isso afeta o mundo do trabalho?
Andrea Fumagalli – A crise financeira decorre da incapacidade de estabelecer uma governança financeira estável, apesar de, ao mesmo tempo, ter confirmado a primazia das finanças sobre a política. Graças à emergência de cumprir os diktat impostos pela especulação financeira e mediados pelas autoridades monetárias (Banco Central, FMI), tendo um papel cada vez mais subordinado à lógica financeira (exceto a autonomia apregoada pelos bancos centrais!), foram impostas, especialmente na Europa, as políticas de austeridade que têm afetado fortemente o mundo do trabalho e a distribuição de renda. Os planos de estabilidade nacional na Europa, não por acaso em todos os países envolvidos (Portugal, Irlanda, Espanha, Grécia, Itália) – com base no orçamento equilibrado e privatização dos sistemas de bem-estar público –, são caracterizados por duas medidas comuns a todos: reforma do sistema de aposentadorias, a fim de aumentar a idade de aposentadoria (para permitir uma economia para os cofres do Estado e incentivar as pensões complementares privadas, geridas por instituições financeiras) e a reforma do mercado de trabalho, com o objetivo de torná-lo ainda mais flexível e por tempo determinado.
IHU On-Line – De que maneira o estímulo ao lucro e à riqueza como marca do capitalismo impactam nas transformações recentes no mundo do trabalho?
Andrea Fumagalli – No paradigma atual do biocapitalismo cognitivo, a riqueza se apresenta sobe a forma de renda, derivada de três fatores: a renda financeira, a renda territorial (gentrification) e a renda da propriedade intelectual. Estamos testemunhando a transformação da renda do lucro, quando este dá origem tanto à expropriação da cooperação social (general intellect) quanto à exploração do território. Este lucro não é simplesmente definido pela diferença entre receitas e custos, mas cada vez mais a partir da cotação financeira do capital social da empresa. São os mercados financeiros, na transição da stakeholder society à shareholder society, que definem o nível dos lucros. Ao mesmo tempo, a financeirização e a privatização dos benefícios da previdência social, da saúde e da educação provocam o aumento da participação da renda do trabalho para que sejam canalizadas de modo forçado nos mercados financeiros (fundos de pensão, seguros, etc.). São os mercados financeiros, a partir desta passagem da stakeholder society à shareholder que aumentam a dependência da renda do trabalho e a possibilidade de lucrar capital gains.
IHU On-Line – Em que medida os mercados financeiros e o capitalismo cognitivo passam a ser uma forma de biopoder?
Andrea Fumagalli – Isso depende do fato de que os mercados financeiros são, hoje, o coração pulsante do capitalismo cognitivo. Eles financiam a atividade de acumulação: a liquidez atraída para os mercados financeiros premia a reestruturação da produção que visa aproveitar o conhecimento e o controle de espaços externos à empresa. Em segundo lugar, na presença de mais-valias, os mercados financeiros desempenham no sistema econômico o mesmo papel que no contexto de Ford, que tinha o multiplicador de Keynes (ativado pelo deficit spending).
No entanto, ao contrário do multiplicador clássico de Keynes, isso leva a uma redistribuição de renda distorcida. Para que este multiplicador seja operante (> 1) é necessário que a base financeira (ou seja, a extensão dos mercados financeiros) esteja constantemente em aumento e que as mais-valias amadurecidas tenham uma média superior à perda do salário médio (que, de 1975 em diante foi de cerca de 20%).
Por outro lado, a polarização da renda aumenta o risco de insolvência das dívidas que são a base do crescimento da mesma base financeira, diminuindo o salário médio. Aqui, então, temos a primeira contradição, cujos efeitos estão agora sob os nossos olhos.
Em terceiro lugar, os mercados financeiros, canalizando de forma forçada parte crescente das rendas do trabalho (liquidação e previdência, além de renda por meio do Estado social que se refletem nas instituições de tutela da saúde pública e educação), substituindo o Estado como seguradora social. Desse ponto de vista, eles representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. É a partir dessas considerações que os mercados financeiros exercem o biopoder.
IHU On-Line – Quais as consequências de um mundo do trabalho fragmentado, dividido e marcado pelo individualismo?
Andrea Fumagalli – Se usássemos uma expressão sintética, poderíamos dizer que o trabalho, na sua forma material, é caracterizado hoje pelas diferenças de atributos. O conceito de desempenho no trabalho é baseado na unicidade de cada fonte de trabalho, não pode ser equiparada a uma forma tipológica, contratual, qualitativa ou dominante. Não se pode falar da diferença no singular, ou seja, de relação binária (homem/mulher, manual/intelectual, operário/empregado, etc.), mas sim de uma pluralidade de diferenças, ou de muitas: uma aglomeração aparentemente caótica de tipos de trabalho, unificada pelo desenvolvimento da relação de trabalho. São as diferenças que constituem a força-trabalho cognitiva da atual fase capitalista. E é a exploração dessas diferenças, e a sua declinação material, que determina as novas formas de relação capital/trabalho.
A partir deste ponto de vista as categorias tradicionais usadas para descrever o mercado de trabalho não são as mais adequadas. Adicione a isso a tendência de generalização da condição de trabalho por tempo determinado, conceitos como “trabalho”, “desemprego”, “população inativa” que perdem o seu significado e tomam outras formas. Quem hoje pode ser definido como inativo? Talvez aquele que está tão desanimado que não consegue procurar um emprego, apesar de ter necessidade, talvez dentro de uma estrutura de bem-estar baseados na família?
O desempregado
O que significa estar desempregado hoje? Talvez, procurando uma agência de empregos ou uma multinacional do tipo Manpower, e perguntar se existe alguma colocação e, em caso negativo, voltar para casa ou para o bar? Somente isto não basta (especialmente em tempos de grave recessão econômica). Estar desempregado, hoje, em um contexto de individualização das relações de trabalho e de prevalência de contratação individual, significa, acima de tudo, passar o tempo se preparando, enviar currículos, buscar contatos, etc.
O desempregado de hoje não é nada ocioso, especialmente se ele não dispõe de nenhum seguro, fato cada vez mais comum. Como resultado, hoje o desempregado desempenha uma atividade de trabalho, além de ser consumidor e um sujeito ativo no ciclo da valorização do lazer e do entretenimento. A diferença entre um empregado e um desempregado é que o primeiro é diretamente produtivo e é – de alguma forma – remunerado, enquanto o segundo é indiretamente produtivo sem ser remunerado.
No biocapitalismo cognitivo, o trabalho digital e relacional se alastrou mais e mais, até definir os principais modos de desempenho no trabalho. É menos importante a separação entre o homem e a máquina que regula, organiza e regulamenta o trabalho manual. No exato momento em que o cérebro e a vida se tornam parte do trabalho, incluindo a distinção entre tempo de vida e tempo de trabalho que perde o sentido e o individualismo contratual, como base da instabilidade jurídica do trabalho, isso transborda para a subjetividade dos mesmos indivíduos, afeta os seus comportamentos e se transforma em instabilidade existencial.
No biocapitalismo cognitivo, a insegurança no emprego é, em primeiro lugar, subjetiva, ou seja, existencial, quer dizer, generalizada. É uma condição subjetiva, uma vez que entra diretamente na percepção do indivíduo de forma diferenciada, dependendo das expectativas, do imaginário e do grau de conhecimento (cultura) possuídos. É uma condição existencial, pois é onipresente e está presente em todas as atividades dos indivíduos, não somente no âmbito estritamente profissional, e por que, após o desmantelamento gradual do welfare, a incerteza que gera não encontra nenhuma forma segura, distante do comportamento destes mesmos indivíduos. Finalmente, é condição generalizada, porque mesmo quem está em uma situação de trabalho estável e garantida está plenamente consciente de que tal situação poderia acabar a qualquer momento, como resultado de uma reestruturação ou transferência. A massa de trabalho é dessa forma direta ou psicologicamente instável.
IHU On-Line – O senhor ainda defende a proposta de uma renda básica incondicionada como instrumento de recomposição social, considerando a crise no mundo do trabalho?
Andrea Fumagalli – Absolutamente, especialmente em tempos de crise. A prevalência atual de economias de escala dinâmicas (aprendizagem e relacionamento) como fonte de produtividade e riqueza nos leva a crer que é prioritário pensar em um novo sistema de seguro social (neo-welfare ou commonfare) como um ponto de partida para reorganizar em um sentido progressista o mercado de trabalho.
Para fazer isso, devemos derrubar completamente a lógica dos dois tempos da atual política econômica.
O primeiro tempo deve consistir em medidas destinadas a garantir não só a estabilidade, mas também a estabilidade da renda do trabalho e segurança social, a fim de melhorar a capacidade de produção, aumentar a demanda, promover os processos de aprendizagem e rede para aumentar a produtividade, criando condições mais favoráveis para os investimentos (não precisa ser economista para entender que os investimentos são uma função da expectativa, mais sobre a demanda futura do que sobre o atual nível de lucros ou rendimentos auferidos). Com isso em mente, precisamos mais de secur-flexibility que de flex-security. Desse ponto de vista, hoje se torna cada vez mais indispensável a declinação da luta contra a insegurança na instabilidade, através do pedido de uma renda básica incondicional como um instrumento, primus inter pares, para pôr a nu as contradições da acumulação econômica.
Renda básica
No biocapitalismo cognitivo a renda básica é equivalente ao que representava a demanda por salários mais altos na era do capitalismo industrial de Ford. Mas, ao contrário do aumento dos salários, a introdução da renda básica teria um impacto limitado sobre os custos das empresas, uma vez que seria concedida pelas autoridades públicas locais, nacionais ou supranacionais. Em outras palavras, o financiamento da renda vai depender da existência da estrutura fiscal em vigor.
No biocapitalismo cognitivo, um novo pacto social poderia se basear na introdução de uma renda básica. É uma proposta aparentemente reformista, mas potencialmente subversiva, uma vez que reduz a ameaça da necessidade, levaria a processos de libertação do trabalho, estimulando alternativas na organização da produção.
Em outras palavras, a introdução de uma renda de base poderia ser uma ferramenta valiosa para conter e reduzir a armadilha do trabalho por tempo determinado.
No entanto, existe um risco de que a introdução de uma renda de base possa levar a uma redução dos salários. Por esta razão, tal medida deve ser acompanhada da introdução, na Itália, de uma lei que estabeleça o salário mínimo, ou que determine que uma hora de trabalho não possa valer menos do que um x valor, independentemente do trabalho realizado.
Além disso, devemos considerar que a garantia de renda diminui a ameaça individual, a dependência, o desamparo de trabalhadores e trabalhadoras em relação às empresas.
Exigir uma renda mínima é a premissa para que os trabalhadores temporários, os desempregados e trabalhadores com baixos salários possam desenvolver conflitos no local de trabalho. Hoje, a ameaça da demissão ou a não renovação do contrato, sem qualquer tipo de proteção, é muito forte. A renda, combinada com garantias contratuais dignas e um salário mínimo, tornaria todos menos suscetíveis às ameaças e, portanto, mais fortes. Permitiria a melhoria das suas condições de trabalho e das obrigações contratuais.
Nota: A fonte da imagem que ilustra a entrevista é http://migre.me/evmCI
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O biopoder e os mercados financeiros. Entrevista especial com Andrea Fumagalli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU