14 Outubro 2023
"É estranho que tantos observadores ocidentais perspicazes (jornalistas, figuras políticas, intelectuais), justamente horrorizados com o 'massacre de inocentes' perpetrado pelo Hamas, não tenham nada a que se opor, e na verdade, em muitos casos, aplaudirem, este massacre de crianças palestinas e mulheres", escreve Giuseppe Savagnone, diretor do Escritório para a Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 13-10-2023.
Segundo ele, "se as crianças judias queimadas pelo Hamas despertam o nosso horror, o mesmo acontece com a ideia de que há muitos palestinos que estão sofrendo o mesmo destino nos últimos dias. Uma simetria trágica de monstruosidade, que no entanto, absurdamente, não se reflete nas avaliações da opinião pública ocidental, justamente chocada com a primeira, estranhamente insensível com a segunda".
"O sono da razão gera monstros", escreveu Goya. De ambos os lados, muitos foram libertados neste conflito implacável, com custos humanos assustadores. O problema não pode ser resolvido apagando a memória e reduzindo tudo, como tentamos fazer, a um fenômeno de “terrorismo”.
Confrontados com a violência selvagem do ataque do Hamas a Israel, o horror e a solidariedade incondicional de quase todo o mundo ocidental parecem plenamente justificados. Uma solidariedade que se estendeu imediatamente também às reações do Estado Judeu aos seus agressores. “Israel tem o direito de se defender”, foi a frase que ressoou nos lábios de políticos e intelectuais, e que o Papa Francisco também fez sua.
Contudo, nesta afirmação incontestável, há algo que não foi dito que importa esclarecer e que diz respeito aos destinatários e aos métodos desta ação de defesa. Apenas um grupo de terroristas?
“Vamos esmagar os terroristas, como o ISIS”, prometeu Netanyahu. A questão, porém, é se estamos realmente confrontados apenas com um grupo de terroristas, dos quais os dois milhões de pessoas que vivem na Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas (um milhão e duzentos mil são refugiados palestinos) são considerados "reféns", como apoiou Giuliano Ferrara na procissão de tochas por Israel.
Na verdade, a história recente de Gaza põe fortemente em dúvida esta narrativa. Os israelenses (que a tinham arrancado ao Egito em 1967 com a “guerra dos seis dias”) retiraram-se em 2005, deixando-a sob o controle da Autoridade Nacional Palestina, com a qual o governo de Tel Aviv, nos acordos de Oslo, já tinha feito um pacto em 1993. Mas nas eleições realizadas no ano seguinte, em 2006, não foi esta a ela mais moderada que venceu, mas sim o movimento extremista islâmico do Hamas, que está no poder desde então.
Um resultado devido ao crescente descrédito da Autoridade Palestina, que, sob a liderança do antigo presidente Abu Mazen, há muito que perdeu toda a determinação em reivindicar os direitos do povo palestiniano e está cada vez mais afogada na corrupção. Tanto é assim que hoje, mesmo na Cisjordânia, o outro território da Palestina onde Abu Mazen ainda permanece no poder, ele evita há anos convocar novas eleições porque todas as pesquisas preveem, se elas ocorrerem, uma vitória certa do Hamas.
Na realidade, nem mesmo em Gaza houve novas eleições desde 2006. E não é certamente um regime liberal, como demonstra a repressão sistemática dos direitos das mulheres – nos moldes do Irã, o Estado islâmico xiita do qual o Hamas está mais próximo – e de todos os opositores em geral.
Mas para se unirem ao seu governo, o povo da Faixa de Gaza veio em seu socorro, contra as suas intenções, precisamente Israel que, em reação aos resultados eleitorais de 2006, impôs um embargo total à região, com um controle sufocante de pessoas e bens que entravam ou extrovertida, resultando numa desanimadora condição de dependência e maior empobrecimento dos habitantes.
A Cruz Vermelha internacional declarou a ilegalidade desta política, que implicou um “castigo coletivo para as pessoas que vivem na Faixa de Gaza” – dois milhões de seres humanos –, transformando-a naquilo que no ano passado a organização não governamental Human Rights Watch definiu como “uma prisão a céu aberto”, mas sem sucesso.
Assim, a raiva social – exasperada por estas medidas cruéis e pela inércia culpada da Autoridade Palestina – empurrou as novas gerações para os braços do Hamas que, neste momento, acabou por expressar o desespero de um povo sem esperança. No fim, hoje são estas pessoas o verdadeiro alvo da ação de “defesa” de Israel.
Além disso, é também por razões logísticas. “Devemos libertar Gaza mesmo com bombas, mesmo com tanques, mesmo com o exército”, gritou Giuliano Ferrara no meio de aplausos estrondosos no seu discurso inflamado. Mas, num território que está entre os mais densamente povoados do mundo, com dois milhões de pessoas amontoadas numa área de 360 quilômetros quadrados, as bombas estão inevitavelmente destinadas a atingir principalmente civis. O número de mortos em seis dias de ataques aéreos na Faixa é de mais de 1.500, incluindo 500 crianças.
Este foi também o caso do embargo imposto por Israel em 2007. Este é agora o caso do bloqueio total de combustível, água e eletricidade com que o Estado judeu respondeu ao ataque do Hamas. Certamente não são apenas os “terroristas” que sofrem, mas os pobres, homens, mulheres e crianças, que estão exaustos. Até mesmo os hospitais relatam que não conseguem mais operar seus equipamentos sem eletricidade, a começar pelos que estão nas salas de cirurgia e nas incubadoras para salvar a vida dos recém-nascidos.
É estranho que tantos observadores ocidentais perspicazes (jornalistas, figuras políticas, intelectuais), justamente horrorizados com o "massacre de inocentes" perpetrado pelo Hamas, não tenham nada a que se opor, e na verdade, em muitos casos, aplaudirem, este massacre de crianças palestinas e mulheres.
A última ordem dada pelo comando militar israelense também segue esta linha de violência implacável contra a população, que ordenou o despejo da parte norte da Faixa no prazo de 24 horas. Desta forma, a população pobre desta região – um milhão de seres humanos, muitos dos quais já tinham sido expulsos das suas terras, levados pelos israelenses, e aí viviam como refugiados – são obrigados, de um dia para o outro, a abandonam as suas casas, as suas más atividades de trabalho, o seu mundo.
Mas com isto também nos deparamos com a resposta à segunda questão, a relativa aos métodos. Há poucos dias, um jornal pouco convencional trazia a manchete: "O antiterrorismo entra em ação. Parece muito com terrorismo". Onde a diferença entre a guerra e o terrorismo é que a primeira ainda está sujeita a regras, estabelecidas em nível internacional, e tem como alvo os militares inimigos para os destruir, enquanto o segundo não tem regras e, em vez de derrotar um exército, visa aterrorizar a população civil.
Ora, na realidade esta é a tática do Hamas, que certamente não pode competir com o aparelho militar de Israel, mas, como também fez no último ataque, pretende atacar o adversário semeando o medo. Porém a tática do estado judeu acaba por ser muito semelhante a esta, pois sabe muito bem que não pode atacar o coração dos combatentes do Hamas - protegidos por uma rede de 45 km de túneis subterrâneos fortificados – com os seus ataques aéreos, mas sim inflige à população palestina, além das bombas, uma série de privações e inconvenientes, na esperança (que se revelou, como visto antes, falaciosa) de afastá-los da organização armada, sem perceber que estavam assim a jogar o seu próprio jogo.
Este estilo inclui também a utilização pela força aérea israelense de armas proibidas pelas convenções internacionais, como as bombas de fósforo branco, proibidas pelas convenções internacionais porque provocam queimaduras terríveis e, nos que sobrevivem, patologias graves.
BREAKING: Israel has used white phosphorus in military operations in Gaza and Lebanon, putting civilians at risk of serious and long-term injuries.
— Human Rights Watch (@hrw) October 12, 2023
White phosphorus causes excruciating burns and can set homes afire. Its use in populated areas is unlawful.https://t.co/TbCVA5Qynp pic.twitter.com/4UKANHTwI2
Se as crianças judias queimadas pelo Hamas despertam o nosso horror, o mesmo acontece com a ideia de que há muitos palestinos que estão sofrendo o mesmo destino nos últimos dias. Uma simetria trágica de monstruosidade, que no entanto, absurdamente, não se reflete nas avaliações da opinião pública ocidental, justamente chocada com a primeira, estranhamente insensível com a segunda.
Mas os acontecimentos dramáticos dos últimos dias devem ser entendidos à luz de uma história, que certamente não pode ser invocada para mitigar a condenação absoluta das atrocidades cometidas pelo Hamas, mesmo que ajude a compreender a sua origem.
Uma história que começa em 1947, quando uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu a constituição e a coexistência de um Estado judeu e um Estado palestino. Jerusalém seria, em vez disso, uma zona internacional.
Embora nem os palestinos nem os israelenses tenham alguma vez aceitado esta divisão, os primeiros porque se sentiram roubados de uma terra que habitaram durante quase dois mil anos e da qual foram agora expulsos, os segundos porque viram nela a possibilidade de um regresso às suas origens e eles queriam tudo.
Na realidade, mais de 75 anos depois, essa resolução continua por se cumprir. O Estado palestino nunca nasceu e os territórios que deveriam ser seus, segundo a resolução da ONU, estão ilegalmente ocupados por Israel, exceto a Faixa de Gaza e parte da Cisjordânia, que no entanto nem sequer têm continuidade territorial. Quanto a Jerusalém, foi proclamada por Israel em 1980, a capital de Israel.
Além disso, nos territórios que ainda permanecem nas mãos dos palestinos e que estão sob o seu controle, o governo israelita multiplicou novos colonatos nos últimos anos, violando ainda mais a resolução da ONU. Desde 2002, o governo israelense, com uma decisão condenada pelo Tribunal de Justiça e pela União Europeia, ergueu um muro fortificado de mais de 300 km na Cisjordânia que separa os mais importantes territórios palestinos da Cisjordânia de Israel, separando famílias e as comunidades que vivem e trabalham em ambos os lados do muro.
As Nações Unidas declararam explicitamente ilegais, em diversas ocasiões, estas evidentes prevaricações, mas nem Israel nem os seus aliados – principalmente os Estados Unidos – as levaram em consideração. Ultimamente, portanto, o presidente Netanyahu – que enfrenta pesadas acusações de corrupção e necessita de reforçar o consenso da extrema-direita para escapar ao julgamento – tem apoiado outras, desta vez contrariando a opinião do presidente Biden, que em vão tentou dissuadi-lo. Depois o dilúvio, que porém, como é evidente, não veio com o "céu azul".
"O sono da razão gera monstros", escreveu Goya. De ambos os lados, muitos foram libertados neste conflito implacável, com custos humanos assustadores. O problema não pode ser resolvido apagando a memória e reduzindo tudo, como tentamos fazer, a um fenômeno de “terrorismo”.
O Hamas não é o ISIS, porque tem atrás de si um povo cujos direitos foram reconhecidos pela ONU e sistematicamente espezinhados.
Por sua vez, não podemos esperar partir, como faz o Hamas, da premissa de que Israel não tem o direito de existir. Só o reconhecimento mútuo – que em Oslo, por um momento, pareceu ter sido alcançado – pode constituir uma verdadeira solução.
Precisamos reforçar, tanto do lado israelense como do palestino, as alas, que também existem, de pessoas razoáveis, capazes de reabrir o diálogo. Qualquer justificativa de comportamento desumano, de um lado ou de outro, é um favor feito ao partido dos monstros.
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O direito de se defender e o festival dos monstros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU