Ainda para marcar uma década do “papa argentino”, o IHU publica outras análises sobre as marcas e transformações da Igreja no mundo
Francisco parece mesmo ser um papa reformador. Fez avanços importantes no que diz respeito à acolhida de jovens, mulheres e comunidade LGBTQIA+, na composição do colégio cardinalício, em instituições vaticanas e, principalmente, na forma de ser Igreja. Com isso, parece não querer reformar a Igreja para lhe dar cara nova, mas sim para que recupere seu rosto essencial, aquele que reflete o segmento de Cristo que tem centralidade do Evangelho.
“O pontificado de Francisco foi uma ‘atualização da atualização’ promovida pelo Concílio Ecumênico Vaticano II nos anos 1960. Ou, então, uma ‘implementação atualizada’, depois de dois papados que promoveram um processo de mais de 30 anos de reinterpretação, revisão ou até retrocesso em relação àquilo que havia sido definido pelos Padres conciliares”, observa o pesquisador Moisés Sbardelotto. Ou, como ele mesmo resume na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU: “Francisco encarna essa experiência de encontro com o amor e a misericórdia de Deus em outra fonte cristã concreta e muito humana: a pessoa do pobre, ‘carne de Cristo’”.
Assim como Moisés, o bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, Dom Vicente de Paula Ferreira, observa como Francisco coloca a Igreja em alinhamento com o mundo. Afinal, é assim que faz movimentar sua ideia de Igreja em saída. Por isso, Dom Vicente chama atenção para um dos conceitos apresentados no pontificado, a Ecologia Integral, que faz referência à conversão tanto interna quanto externa aos muros vaticanos. “Se há necessidade de conversão é porque a sociedade contemporânea está imersa num pecado sistêmico. O dinheiro ocupou o lugar de Deus. Virou ídolo sagrado. E isso tem ferido, gravemente, os pobres e a mãe terra”, pontua em entrevista concedida por e-mail. “Espero que consigamos continuar o legado já deixado nessa década de magistério. Sobretudo, o de uma Igreja servidora do Evangelho para a construção do Reinado de Deus”, acrescenta.
Embora não tenha havido um avanço como desejado por alguns setores, muitos reconhecem que Francisco trouxe ao centro as discussões em torno do lugar da mulher na Igreja. “A violência contra as mulheres recebe atenção de Francisco que em diferentes momentos e lugares do mundo posiciona-se e compara a estrutura de violação aos direitos humanos das mulheres como ‘afronta a Deus’. Também no interior da Igreja Católica, o papa age para assegurar o diaconato feminino, uma das lutas mais difíceis de avançar em função do poder patriarcal católico bem distribuído na instituição e por suas representações em todo o mundo”, analisa a jornalista e professora universitária Ivânia Vieira. Como alguém da região amazônica, na entrevista também concedida por e-mail, ela aponta as portas abertas aos povos da floresta. “O Papa Francisco faz isso, reivindica a Igreja andante e andarilha, fraterna e atenda às vozes dos mais frágeis. É um jeito de atuar que convoca ao diálogo como instrumento da construção de um mundo melhor”, diz.
O teólogo Paulo Suess, que tem seu apostolado voltado às missões junto ao povo amazônico, também pontua esse aspecto que tem seu ápice no Sínodo Pan-Amazônico. Mas ele vai além. “A ‘virada popular’ como ‘virada laical’, que representaria uma superação eclesial da sociedade de classe secular, ainda não aconteceu. Estamos longe da Lumen Gentium que permite corrigir o passado clerical afirmando que todo leigo ‘é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja’ (LG 33,2)”, observa.
E o diálogo é mais uma das marcas dessa década de pontificado. Francisco tem não só aberto a Igreja e voltado-a aos pobres como também tem construído pontes com pessoas de todos os credos. E, claro, ele vem pondo a Igreja de frente para os problemas do mundo. Luterano e jornalista de longa data, Edelberto Behs, observa que esse papa realmente quer uma Igreja em saída, e, para tanto, nos desacomoda. Ou, como diz na entrevista que concede por e-mail, o papa “balança a roseira, o que muitos não gostam de ver acontecer”. “Jorge Mario Bergoglio seria um excelente repórter na análise sobre as realidades mundiais, porque nelas se insere. Um redator que, tomando um ‘gancho’ importante desse contexto, no jargão jornalístico, consegue redigir um lide de grande repercussão, chamando a atenção de leitores e leitoras do mundo. Mas é melhor tê-lo como papa do que como repórter!”, brinca.
O jesuíta e historiador Felipe de Assunção Soriano aponta que “o tema que marca indelevelmente seu pontificado são os grandes dramas humanos de nosso tempo. A tragédia dos casos de abuso sexuais, a acolhida pastorais dos gays e mulheres, a cultura da indiferença e o tema dos refugiados”. Mas, ainda assim, em meio a uma forte oposição e à aridez de certas situações, Francisco faz avançar. “Se há limite está dentro das estruturas eclesiais, que resiste à reforma do Concílio Vaticano II, há ainda oportunidade entre os grupos e agentes de pastoral leigos. Um sinal de que a reforma está em curso é a resistência que ela provoca”, completa, na entrevista concedida por e-mail.
Daniel Seidel é cristão leigo e para ele Francisco oferece acolhimento com segurança e ternura. “Trata os membros do Povo de Deus como pessoas capazes de discernir e de tomar decisões maduras; mas, se errarmos, sabemos que poderemos contar com seu perdão e novamente recomeçar”, explica. Sobre os limites, aponta vários espinhosos, mas em todos consegue perceber avanços. A única exceção é as casas de formação de clérigos e religiosos e religiosas: “as casas de formação, com raras exceções, ainda são centros de propagação da cultura clericalista que afeta a todos na Igreja: ministros ordenados e o santo povo fiel de Deus”.
Por fim, a professora universitária Eliana Yunes lista uma série de avanços e limites que resumem bem essa década de Papa Francisco. E, considerando o pontífice como uma espécie de “novo profeta Moisés”, provoca: “falta união em torno do papa renovador, capaz de levar ao REdescobrimento do Cristo, para além da doutrinação e da LEI”.
A primeira parte de "10 anos de pontificado de Francisco: alguns olhares" pode ser lida aqui.
Edelberto Behs (Foto: Acervo Unisinos)
Edelberto Behs é jornalista, luterano, atuou na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil – IECLB de 1974 a 1993, como repórter e editor do Jornal Evangélico e depois como assessor de imprensa. Também foi professor e coordenador do curso de Jornalismo da Unisinos. Possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia – Est, em São Leopoldo, graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e mestrado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Edelberto Behs – Um dentre os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco foi essa transformação da “igreja em saída” no encontro com o outro, dentro da própria Igreja Católica, mas, também, de grande repercussão no diálogo inter-religioso e no diálogo ecumênico.
A outra grande mudança é a de ser Igreja na simplicidade, de deixar de lado o “vinde a mim”, mas ir em direção aos menos afortunados, aos que têm sede e fome, aos injustiçados, aos que sofrem em guerras e conflitos. É um papa que busca a paz, o diálogo, a reconciliação.
O terceiro avanço é a silenciosa reforma que Francisco promove na Igreja, na atenção que dá ao conceito definido pelo teólogo protestante Karl Barth – Ecclesia semper reformanda est –, da sinodalidade e do colegiado, valorizando também os leigos.
Os maiores limites do Papa Francisco estão dentro da própria igreja, da oposição que sofre de setores fundamentalistas e conservadores, que não querem uma Cúria reformada, que almejam, inclusive, que o pontificado de Francisco seja breve.
Está aí um papa que fala de economia e cuidado da Criação. Um papa que questiona o modelo de desenvolvimento – e por isso é acusado muitas vezes de ser “comunista” –, e que defende uma economia inclusiva, alternativa “que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não humaniza”. Ora, essa ínfima parcela dos bem situados no mundo e que têm um alto falante na mídia com toda certeza detesta esse tipo de questionamento.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Edelberto Behs – Graças a Deus temos um Francisco que não só adotou o nome, mas também segue os passos de Francisco de Assis. Um papa que traz no seu DNA a vivência latino-americana, que sabe valorizar a sabedoria indígena do “bem viver” e a mística da sua relação com a terra; que contesta o paradigma econômico do século XX, responsável pela depredação de recursos naturais da terra. É um papa que balança a roseira, o que muitos não gostam de ver acontecer.
Dá para imaginar a barafunda que isso provoca em cabeças colonialistas em pleno século XXI! É um papa que enfrenta a indústria armamentista, que se escandaliza com a guerra e que pede a conversão por reconhecer “que a conquista armada, o expansionismo e o imperialismo não têm nada a ver com o Reino que Jesus proclamou”. Quantos povos indígenas foram sacrificados em nome da religião?
Francisco é um papa da ação. Ele junta a palavra reconciliadora do Evangelho com sua atitude presente. É o que demonstra nas tantas e quantas viagens internacionais que realizou, entrando em contato com o outro, com o diferente. É um papa que vai abraçar migrantes em Lampedusa, que faz o lava-pés não só de cristãos na Quinta-feira Santa, mas também de migrantes muçulmanos. É um papa líder mundial e, como tal, encontra opositores.
É um papa que fala e abraça crianças. Que responde cartas recebidas por crianças mundo afora, que estão coletadas em livro. Um papa que confessa que não tem todas as respostas, como fica evidente numa dessas perguntas, estranha, dirigida a um papa: “Você ama Jesus?” que recebeu a sincera resposta: “Eu não sei, mas eu sei que Ele me ama”.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Edelberto Behs – São transformações ancoradas no Concílio Vaticano II, são transformações que colocam a Igreja como uma peça importante, assim como o bispo no tabuleiro do jogo de xadrez, no tabuleiro da política internacional. É um líder mundial.
Jorge Mario Bergoglio seria um excelente repórter na análise sobre as realidades mundiais, porque nelas se insere. Um redator que, tomando um “gancho” importante desse contexto, no jargão jornalístico, consegue redigir um lide (aquele primeiro parágrafo de uma notícia) de grande repercussão, chamando a atenção de leitores e leitoras do mundo. Mas é melhor tê-lo como papa do que como repórter!
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Paulo Suess (Foto: Obind)
Paulo Suess é doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de pós-graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário – Cimi e professor em várias faculdades de teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia. Participou do Sínodo dos Bispos para a Amazônia como perito. Entre suas últimas publicações, destacam-se: Introdução à teologia da missão (Vozes, 4. ed., 2015); Dicionário de Aparecida: 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida (Paulus, 2007); Dicionário da Evangelii gaudium (São Paulo: Paulus, 2015); Missão e misericórdia: a transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii gaudium (Paulinas, 2017); Dicionário da Laudato si’: sobriedade feliz (Paulus, 2017); Projeto missionário (São Paulo: Editora Paulinas, 2019); e Dicionário da Querida Amazônia. Em busca da "harmonia pluriforme" (São Paulo: Paulus Editora, 2021).
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Paulo Suess – Por fidelidade a Jesus Cristo, Francisco aprofundou a reforma eclesial permanente à luz do Vaticano II (LG, GS, UR, AG, AA, DH, NA) e do magistério latino-americano (cf. DAp, EG 15, EG 26).
O magistério de Francisco tem o “cheiro de ovelha” (EG 24), metáfora com a qual traduziu o Evangelho do “Bom Pastor”, do “Bom Samaritano”, do Lava-pés e a palavra “aggiornamento” do Vaticano II e do Papa Paulo VI (ES 27) para a orientação programática de uma nova proximidade serviçal da Igreja com “um coração aberto ao mundo inteiro” (FT 128, cap. IV).
Na “reforma eclesial permanente” trata-se da conversão missionária de todos os batizados, de sua proximidade amorosa aos desafios do mundo inteiro numa atitude de “sobriedade feliz” (LS 224s). A “sobriedade feliz” contrasta com a “alegre irresponsabilidade” (LS 59) do ser humano que terceiriza os custos dessa irresponsabilidade aos pobres e à natureza. Por isso, o terceiro avanço significativo do magistério de Francisco é a interligação estreita entre “a opção pelos pobres”, que permite um novo estilo de vida (LS cf. 161), a “preocupação pelo meio ambiente” e a “fragilidade do planeta” (LS 16, 91). No universo teológico-pastoral de Francisco, a ecologia e a opção pelos pobres/outros são constitutivas para a fraternidade no mundo. A partir desse universo, seu pontificado emite imagens de esperança, sinais de justiça e palavras de profeta: encontrando-se com os refugiados em Lampedusa, beijando os pés de líderes do Sudão do Sul, denunciando o capitalismo como economia que mata.
Os maiores limites de Francisco se encontram em setores opostos às aberturas do Vaticano II acolhidos pelo seu magistério. Seguindo o Concílio, o raciocínio de Francisco é o seguinte: A Igreja povo de Deus é a Igreja constituída por sujeitos, não por rebanhos. E desse ser sujeito coletivo – Igreja povo de Deus – emerge uma responsabilidade de todos os fiéis no que se refere à fé, à verdade interna e à divulgação desta verdade a partir do “sacerdócio comum dos fiéis” (LG 10), que tem seu fundamento no batismo.
Existem hoje rupturas entre Francisco e setores minoritários do povo de Deus (comunidades, clero, bispos, cúrias), que procuram inibir a “virada popular” e dificultam seu magistério. Observadores externos, que percebem a procura legítima de unidade e unanimidade pelo papa, ficam com a impressão de uma lentidão desnecessária nas decisões concretas, porque também nas votações do Concílio não teve unanimidade.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como definir esse estilo, essas opções de Francisco?
Paulo Suess – A virada popular e sua visão de uma Igreja pobre dos pobres, na Igreja católica, desencadeada pelo Papa Francisco, em suas opções preferenciais e em seu estilo de vida, em sua escrita e em suas entrevistas, em certas expressões e comportamentos inspirados pelo Evangelho e culturalmente sedimentados, exigem abertura e conhecimento cultural de uma Igreja universal, acostumada com estilo cultural europeu. Com Francisco, muitos aspectos da cultura latino-americana, inclusive de suas teologias, aterrissaram no Vaticano e começaram a ganhar presença legítima em Roma. Para nós latino-americanos é mais fácil e até mais saudável ver atuar um papa argentino em palcos europeus, sem negar a sua identidade e espontaneidade latino-americanas.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisar essas transformações?
Paulo Suess – Quase tudo está em transformação e deve ser transformado, diz Francisco com Aparecida: a realidade (DAp 210), o mundo (DAp 290), a sociedade (DAp 283, 330, 336) e as estruturas eclesiais e pastorais (DAp 365). Olhando no retrovisor eclesial ao Vaticano II, caminhamos, mais lento que o mundo, porém caminhamos, nem samba nem tango, como uma caravana que atravessa o deserto.
Uma Igreja amarrada a padrões culturais da Europa, que olhou na celebração eucarística para a parede, nos atos litúrgicos essenciais falava em latim e reduziu a sua teologia à explicação de dogmas revelados, Francisco continuou dando a meia volta versus populum que o Concílio Vaticano II iniciou. Com Aparecida (2007), onde Francisco ainda participou como delegado, como papa reconhece a necessidade de a Igreja “repensar profundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11).
Desde sua exortação apostólica Evangelii gaudium (2013), no início de seu pontificado, Francisco aposta na “transformação missionária da Igreja” (EG 19-49), que na Laudato si' (2015) é considerada “um processo de reforma missionária ainda pendente” (LS 3) com seu impacto “para outro estilo de vida” (LS 203) e uma “conversão integral” (LS 218s). No centro da encíclica Fratelli tutti (2020) está a “construção de um mundo melhor” (FT 276) e na constituição apostólica Praedicate evangelium, a transformação missionária se tornou um imperativo para a Cúria Romana: “A reforma da Cúria Romana insere-se no contexto da missionariedade da Igreja” (PE p. 12).
A intenção da transformação missionária, que coloca o povo de Deus ao centro da Evangelização, não só como destinatário ou numa função consultiva, mas como ator e em uma função decisiva, está presente na renomeação de uma “VI Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe” em “Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe” (México, 2021) e na fundação da “Conferência Eclesial da Amazônia”. Na intenção do Papa Francisco, o “estatuto eclesial”, do qual fazem parte todos os batizados, deveria ampliar a participação dos leigos e leigas.
A “virada popular” como “virada laical”, que representaria uma superação eclesial da sociedade de classe secular, ainda não aconteceu. Estamos longe da Lumen Gentium que permite corrigir o passado clerical afirmando que todo leigo “é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja” (LG 33,2).
Também a sinodalidade, que é um processo, que, segundo Francisco, vai ser a prova d'água da Igreja do terceiro milênio, ainda não superou as travas entre “participação popular” através de consultas e “decisões episcopais” garantidas pelo Direito Canônico. Face ao mundo civil, ao estado secular e ao próprio Evangelho, a nova eclesialidade de uma Igreja sinodal e realmente livre de amarras discutíveis de desigualdade e descentralizada (cf. EG 16), poderia oferecer cinco colunas à casa comum da humanidade: liberdade, solidariedade, igualdade, sacralidade ritual e gratuidade.
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Felipe de Assunção Soriano (Foto: Santuário Anchieta)
Felipe de Assunção Soriano é jesuíta, possui graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, graduação em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e mestrado em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco. É autor de “Maria Tupansy": O Auto da Assunção de São José de Anchieta” (São Paulo: Edições Loyola, 2022). Atualmente, é doutorando junto ao Programa em Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS, diretor do Instituto Achietano de Pesquisas e curador do Memorial Jesuíta, ambos ligados à Unisinos.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco?
Felipe de Assunção Soriano – As temáticas abordadas pelo Papa Francisco oferecem-nos boas pistas para compreender o seu pontificado, tendo como ponto de partida o convite para uma “conversão pastoral”. Uma conversão não ad intra, como se faz rotineiramente, mas sim uma conversão ad extra, propondo uma “Igreja em saída” (2013).
Neste itinerário aparece claramente o seu vínculo à figura do São Francisco de Assis, que respondeu ao chamado do Senhor para “reconstruir a sua igreja”. A Igreja apresentada pelo Papa Francisco é uma igreja que nasce da “cultura do encontro” deseja pelo Evangelho. Nesta perspectiva, em chave quaresmal, o pontífice pontuou as 15 doenças da Cúria Romana. Ao denunciar o carreirismo e o clericalismo, propõe um longo percurso nos convidando a reencontrar o rosto misericordioso do Pai (Ano da Misericórdia). Sua grande novidade está em conceber a Igreja e suas estruturas em seu fazer apostólica.
O segundo tema que marca indelevelmente seu pontificado são os grandes dramas humanos de nosso tempo. A tragédia dos casos de abuso sexuais, a acolhida pastoral dos gays e mulheres, a cultura da indiferença e o tema dos refugiados. Sobre o tema do abuso de menores, o Papa Francisco vem sendo cada vez mais enfático. Para ele, a Igreja não deve se reduzir apenas a um lugar seguro ou de cura para as vítimas, mas, sim, lugar plenamente confiável, onde seus direitos sejam respeitados. Sobre os gays e grupos transexuais, mesmo não mudando a compreensão geral do magistério, o Papa Francisco insiste numa maior acolhida pastoral.
Por iniciativa própria, o papa confiou às mulheres os ministérios do leitorado, acolitato, reabriu a discussão sobre o diaconato feminino e nomeou pela primeira vez uma mulher para o governatorato do Vaticano.
Contudo, mais do que palavras ou ideias, seus gestos são sua marca emblemática, principalmente na crise humanitária que passa a Europa com o tema dos refugiados.
O terceiro tema que marca seu pontificado é a urgência ecológica e socioambiental com a Encíclica Laudato si' (2015). Ao retomar o hino do irmão Francisco de Assis, o papa proclama o “Evangelho da Criação”, denuncia a crise ambiental e propondo uma “ecologia integral” que recoloca o humano. Em linha geral, o que o Papa Francisco nos oferece nesta leitura é um grande exame de consciência, a partir da chave da primeira semana dos Exercícios Espirituais (Eu, o outro e o mundo).
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Felipe de Assunção Soriano – Ele não impõe suas reformas, mas, como o define o dominicano Timothy Radcliffe, o papa é um “pastor que procura”. Em alguns momentos temos a ideia de vê-lo caminhando sozinho na Praça São Pedro, porque ele aponta um caminho, isto é, uma saída. Seu pontificado em chave sinodal descentra a Igreja e faz cada Diocese e Conferência Episcopal o lugar da busca da vontade de Deus. Deixar as ideias feitas e pré-concebidas optando pelo risco de seguir a Jesus.
Ainda propõe superar o formalismo, o ritualismo, o clericalismo e tudo que esconde a face do Senhor. Se há limite está dentro das estruturas eclesiais, que resiste à reforma do Concílio Vaticano II, há ainda oportunidade entre os grupos e agentes de pastoral leigos. Um sinal de que a reforma está em curso é a resistência que ela provoca. De fato, Francisco tem uma forma própria de enfrentar as grandes questões eclesiais e globais. Seu pontificado traz uma nova disposição ao manter as divergências da Igreja em tensão frutífera, permitindo que o Espírito mostre novos caminhos.
A cultura sinodal que ele inaugura é uma das melhores oportunidades para fazer descer sua reforma até a medula da igreja e da sociedade. De fato, o Papa Francisco tem consciência que ele está para abrir caminhos, iniciar processos... não teme não concluir nenhum itinerário, mas, sim, não poder trilhá-lo.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Felipe de Assunção Soriano – A principal transformação que marca o seu pontificado nesta última década está na clareza de sua mensagem e na velocidade de sua reforma. Nesta última década fica evidente que seu estilo inaugura a “reforma da reforma”, não na direção dos conservadores, mas, sim, no roteiro pensado pelo Concílio Vaticano II.
Há pouco tempo, onde transparecia a conhecida arrogância, centralismo e autoritarismo do Vaticano, agora existe um frutuoso clima de abertura e serviço. Como comentou Austen Ivereigh, Roma não usa mais denúncia anônima, sendo difícil lembrar em uma década um único caso em que a ortodoxia de um teólogo foi posta sob julgamento. O governo papal não é mais remoto ou impessoal, mas colegial.
Essa forma de proceder provoca medo e raiva naqueles que buscam as aparentes seguranças de um passado imaginado. De fato, o Papa Francisco tem claro que rege uma orquestra, onde muitos têm os instrumentos, cuja partitura do Evangelho confere o tom, a melhoria e o ritmo.
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Daniel Seidel (Foto: Arquivo pessoal)
Daniel Seidel é cristão leigo, secretário executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz – CBJP, assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam Brasil e membro da Comissão Executiva das Pastorais Sociais da Comissão Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e da Coordenação Executiva do Movimento Nacional Fé e Política.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco?
Daniel Seidel – Resgatar a perspectiva da Igreja Povo de Deus, consagrada no Concílio Vaticano II, colocando a Igreja Católica diante dos grandes desafios atuais da humanidade: a fome, a miséria, as migrações, a degradação socioambiental.
Colocar em evidência os efeitos das mudanças climáticas, mas sempre com esperança (suas exortações e encíclicas, tais como Alegria do Evangelho, Laudato si', Alegrai-vos e Exultai, Fratelli Tutti, Querida Amazonia, são fontes de esperança e verdadeiros programas de vida para a Igreja, inserida na humanidade e no Planeta) e dialogando com os/as últimos/as (povos indígenas, comunidades tradicionais, famílias ciganas, lideranças dos movimentos populares, sindicalistas de categorias excluídas,(ambulantes, empregadas domésticas, trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra; desempregados/as; encarcerados/as; população em situação de rua empobrecidos/as das periferias urbanas; famílias de refugiados; entre tantos setores e com os diferentes (outras tradições cristãs, diversas tradições religiosas)).
Ter um olhar desde a periferia do Planeta (papa do fim do mundo), quando temas sobre as mazelas do colonialismo (em suas velhas e novas formas), não passam despercebidas, contando com a colaboração de cientistas de todo o Planeta, mas marcadamente daqueles/as oriundos/as do hemisfério sul do Planeta, principalmente da América Latina e África.
E, ainda, ser testemunho de vida, profundidade na misericórdia e alegria de anunciar a Boa notícia (é ágil, dialoga com jornalistas – não há temas proibidos, e sabe lidar com a cultura midiática das redes sociais on-line, sem ser narcisista!), a partir de “seu lugar” de papa (o topo da hierarquia católica romana). Assim, surpreende com a ousadia de seus gestos, visitas e homilias proféticas e educativas. É um líder sensível às dores do povo, revela profunda espiritualidade inaciana, semelhante à vivência dos exercícios espirituais, por isso possui coragem profética, desde as suas debilidades e fragilidades humanas.
Com Papa Francisco nos “sentimos em casa: acolhidos/as e em segurança com ternura”, que nos reabilita a enfrentar com vigor novamente a missão no cotidiano da vida. Trata os membros do Povo de Deus como pessoas capazes de discernir e de tomar decisões maduras; mas, se errarmos, sabemos que poderemos contar com seu perdão e novamente recomeçar. Papa Francisco não infantiliza os membros do corpo de Cristo, que somos a sua Igreja.
IHU – E quais seriam os maiores limites?
Daniel Seidel – Não ter um grupo aliado a ele na Cúria Romana, mais que isso, foi o lugar no qual enfrentou a maior oposição à sua perspectiva de reforma da Igreja para ser fiel ao Evangelho de Jesus. Por isso, não se avançou em questões básicas como valorização de ministérios para exercício dos cristãos leigos e leigas; ministérios ordenados para mulheres e sua efetiva participação em processos decisórios da Igreja; ordenação de padres casados, tornando o celibato uma escolha consciente; a acolhida a casais de segunda união e a pessoas de identidade LGBTQIA+; adoção de métodos participativos para escolha dos bispos das Igrejas Locais (Prelazias, Dioceses e Arquidiocese); transparência na gestão das finanças em todos os níveis; o cuidado e o zelo para com os presbíteros que vivem a homoafetividade ou que tenham tido filhos e filhas, uma verdadeira igreja em saída para as periferias que não concentre o poder no padre, mas que corresponsabilize a comunidade dos batizados e batizadas na missão evangelizadora.
A crise dos abusos sexuais, de poder e de consciência na Igreja: o enfrentamento e as respostas estão muito aquém da enorme dimensão do problema, inclusive no Brasil. É preciso enfrentar com profundidade e firmeza, assumindo as responsabilidades das reparações e cuidados. Faz-se necessária uma pesquisa séria e profunda, promovida por especialistas independentes, para responsabilização numa perspectiva da Justiça Restaurativa dos autores e todo apoio, cuidado e apoio às vítimas, suas famílias e comunidades.
E, ainda, não ter revisto com profundidade a formação dos novos padres, membros da Vida Religiosa Consagrada e dos Cristãos leigos e leigas. As casas de formação, com raras exceções, ainda são centros de propagação da cultura clericalista que afeta a todos na Igreja: ministros ordenados e o santo povo fiel de Deus.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Daniel Seidel – A ideia que me ocorre é de uma clássica frase de outro revolucionário argentino, Che Guevara: “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamas”. Ou seja, Papa Francisco encara de frente, com racionalidade e sensibilidade as grandes questões globais, convoca com firmeza à responsabilidade de compete a cada pessoa, ator social, esfera de poder e nível de organização (no melhor do princípio da subsidiariedade), mas oferece a acolhida e o apoio necessário para realização das mudanças necessárias. Não descarta ninguém, mas não é ingênuo. Provoca a desinstalação, desacomoda, criando possibilidade de movimentos que promovam o protagonismo e as transformações necessárias.
Papa Francisco tem consciência que é preciso caminhar juntos e fazer juntos (sinodalidade). Não há uma solução isolada e lugar para heroísmos, mas a participação de cada pessoa é imprescindível, desde a pessoa de Jesus Cristo. A ternura ele a traz da intimidade que tem com as várias expressões femininas e maternas de Maria, mãe de Jesus.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Daniel Seidel – Três grandes momentos: a assunção de Francisco como papa, tendo a vizinhança de Papa Bento XVI; a Igreja na pandemia e a maduração das reformas possíveis na Igreja Católica Romana.
A assunção de Bergoglio como Papa Francisco é o primeiro período, que só foi possível com o gesto corajoso e inusitado do recém-falecido, Papa Bento XVI. Foi um período em que desde o princípio, Francisco precisou marcar as diferenças, com humildade e firmeza, continuidade e ruptura. Penso que a emergência de um papa como Francisco na Igreja Católica Romana só foi possível pela falência do modelo anterior de centralização adoecedora na pessoa dos ministros ordenados; que não enfrentou as profundas crises internas de poder, de abusos sexuais e de falta de transparência na gestão das finanças, que gerou contradições tremendas dos estilos de vida assumido por lideranças da Igreja na Cúria Romana e nas Igrejas Locais e o Evangelho de Jesus Cristo.
Este foi o período das ações mais generosas que apontavam para um modelo de Igreja que retoma com atualização o magistério do Concílio Vaticano II. O grande documento de referência é a Exortação Apostólica Alegria do Evangelho (Evangelii gaudium, 2013): nele, que também é fruto de consultas e participação de outros bispos do mundo inteiro está descrito de maneira concreta o horizonte para Igreja Católica Romana: conversão pastoral, com todas as consequências na estrutura da Igreja (principalmente, das dioceses e paróquias), no atendimento ao povo, na preparação das homilias; no aspecto socioambiental. Estabelece a primeira composição do C9 (Conselho de cardeais) com os quais dialoga sobre o ritmo das reformas da Igreja e tem coragem de substituí-los à medida que contradições vão acontecendo.
Também é nesta primeira parte que nos oferece um projeto para vida no Planeta: a encíclica Laudato si' (2015). É neste período que ocorrem os sínodos sobre a família, sobre a juventude e sobre a Amazônia, quando se dá também a reforma da constituição do Vaticano (setembro de 2019), com a “Episcopalis communio”, que admite os sínodos como forma privilegiada de tomada de decisões na Igreja e de promoção de escuta do Povo de Deus. E há nomeação de cardeais diferenciadas do “modus operandi” anterior.
É um período de vigor e ousadia. Tudo isso ocorre, na companhia do papa emérito, Bento XVI, e com forte oposição de setores incomodados com as mudanças em curso, por isso Papa Francisco é cuidadoso, mas firme. São desse período também as viagens, tendo seus destinos escolhidos, sempre conteúdo simbólico e profético.
O segundo período que eu ouso propor para compreensão do pontificado de Papa Francisco foi a partir da pandemia de covid-19. Durante sua ocorrência mais terrível, ainda sem vacinas eficazes e até que estas fossem produzidas e utilizadas em massa. A Igreja que se desejava, em saída, não podia nem se encontrar presencial e se reunir. Inúmeras lideranças católicas, homens e mulheres atuantes, morreram. Foi necessário reaprender a ser Igreja doméstica-familiar, utilizando-se a mídia televisiva e as redes online. O sentido de pertença em muitas igrejas locais e paróquias, perdeu-se.
A humanidade que já vinha sofrendo os efeitos das mudanças climáticas, viu-se diante da possibilidade concreta de sucumbir. Quantas pessoas foram enterradas sem velório, sem consolação e várias da mesma família? Não se pode fazer o luto das inúmeras e imensas perdas. Foi uma dor da humanidade indescritível, que muitas vezes, atualmente, terminamos por esquecer, tão traumática que foi.
Foi, também, um momento de muitas aprendizagens para lideranças da Igreja no universo das plataformas de conversação, tendo como mestre os mais jovens, até com crianças e adolescentes. Neste sentido, o gesto do Papa Francisco sozinho na Praça São Pedro no Vaticano, na semana santa de 2020, foi de uma coragem e grandeza tremenda, tal como o servo sofredor que carrega sobre si as dores da humanidade. Fruto dessa entrega e vivência profunda, Papa Francisco nos oferece, desde a tumba de São Francisco de Assis, a encíclica Fratelli Tutti (2020), onde resgata a dignidade da política e convoca a todos e todas para tarefa de reconstruir a vida no Planeta sob novas bases: a fraternidade universal, baseada no diálogo, no perdão e na ação política como resposta humana diante do limite e da falência do modelo político e econômico que tivemos.
Finalmente, considero que o terceiro período, o da maturação das reformas possíveis na Igreja Católica Romana é o que estamos vivendo, tendo centralidade nas aprendizagens e experiências realizadas anteriormente e que se concretiza no Sínodo sobre Sinodalidade. O marco para início desse novo período foi a realização da Assembleia Eclesial na América Latina e Caribe, concomitante com a criação da CEAMA – Conferência Eclesial (e não Episcopal) da Amazônia (aprovação de seus estatutos) e com o estímulo da criação de muitas Redes Eclesiais (do Grande Chaco e Aquífero Guarani, na América do Sul; da Centro América, México e Caribe; do Congo, só para citar algumas).
Escrevo as respostas dessa entrevista participando da Fase Continental do Sínodo sobre Sinodalidade – Região do Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), a partir do Instrumento de Trabalho para primeira etapa que será realizada em outubro de 2023, em Roma. Neste instrumento, todos os temas que citei nesta entrevista foram abordados. Nenhum ficou de fora. E a reflexão, realizada com o método jesuíta da conversação espiritual, em três momentos, com três rondas cada um deles em pequenos grupos (no máximo oito pessoas), resultou em forte reverberação das principais temáticas. As sínteses das experiências destacadas; das tensões existentes e dos temas propostos foram enviadas.
Acreditamos que o clamor por reformas profundas na Igreja será ouvido. Torcemos para que cristão leigos e leigas, religiosas e religiosos, diáconos, presbíteros possamos também participar das Etapas Sinodais.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Daniel Seidel – Que tenhamos a coragem necessária da jovem Maria de Nazaré para dizermos nosso sim incondicional ao Projeto do Reinado de Deus, transformando com coragem a Igreja para ela ser fiel ao Evangelho e assumindo os riscos atuais em serviços eficazes à vida de nossa Casa Comum, promovendo encontros alegres como foi o daquelas mulheres (Maria e Isabel), reconhecendo a presença do Senhor da história.
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Moisés Sbardelotto (Foto: Pascom Brasil)
Moisés Sbardelotto é bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos, com estágio doutoral na Università di Roma La Sapienza, na Itália. É professor da PUC Minas, pesquisador membro do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect/PUC Minas) e coordenador do Grupo de Reflexão sobre Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (Grecom/CNBB). Entre suas publicações, destacamos Comunicar a fé: Por quê? Para quê? Com quem? (Petrópolis: Vozes, 2020), E o Verbo se fez rede: religiosidades em reconstrução no ambiente digital (São Paulo: Paulinas, 2017) e E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Aparecida: Santuário, 2012). Pelo IHU, publicou "E o Verbo se fez bit": Uma análise da experiência religiosa na internet. Cadernos IHU Nº. 35, Deus digital, religiosidade online, fiel conectado: Estudos sobre religião e internet. Cadernos Teologia Pública Nº. 70, A Igreja em um contexto de “Reforma digital”: rumo a um sensus fidelium digitalis? Cadernos Teologia Pública N.º 116.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Moisés Sbardelotto – De modo geral, o pontificado de Francisco foi uma “atualização da atualização” promovida pelo Concílio Ecumênico Vaticano II nos anos 1960. Ou, então, uma “implementação atualizada”, depois de dois papados que promoveram um processo de mais de 30 anos de reinterpretação, revisão ou até retrocesso em relação àquilo que havia sido definido pelos Padres conciliares. Nessa conjuntura, para além de avanços pontuais e factuais, gostaria de destacar algumas forças motrizes dos diversos processos de avanço que Francisco foi desencadeando.
Uma primeira força motriz é até certo ponto involuntária. Trata-se do fato de ele ser o primeiro papa latino-americano. Para a bimilenar tradição católica romana, essa é uma grande inovação, um colossal deslocamento do eixo eclesiástico, praticamente sempre centralizado na Europa. Mas esse poderia ser apenas um dado formal na certidão de nascimento de Bergoglio. Entretanto, Francisco assume e promove, efetiva e voluntariamente, uma “latino-americanização” da Igreja, a partir de suas expressões culturais e teológicas locais.
Chamo de latino-americanização, acima de tudo, um outro olhar sobre a própria Igreja. Como ele mesmo disse pouco depois de ser eleito, os cardeais foram buscar um papa “quase do fim do mundo”. Girar o eixo eclesial para a América Latina – uma Igreja-fonte, mas também uma Igreja-colônia e colonizada por tantos séculos – é deslocar o horizonte católico para um lugar que o “centro” não controla e talvez nem entenda. Ver a Igreja a partir da América Latina não é a mesma coisa que ver a Igreja a partir de Roma, de Paris ou de Fátima. E, como o próprio Francisco disse, “vê-se melhor a realidade a partir da periferia do que a partir do centro”.
Na Evangelii gaudium, ele afirma que não se pode esperar que os povos dos diversos continentes vivam a fé imitando os povos europeus, segundo os padrões de um determinado momento da história. Para ele, é indiscutível que uma única cultura não dá conta da riqueza da fé cristã (cf. EG 118). Por isso, ao longo do pontificado, nesse processo de latino-americanização, Francisco reforçou o valor da diversidade cultural no interior da Igreja não só no discurso, mas também em seus gestos públicos – inclusive litúrgicos – e até em suas decisões de política eclesiástica, particularmente na reforma e na reconfiguração da Cúria Romana. A surpreendente e até inesperada beatificação e, logo em seguida, canonização de São Óscar Romero são o ápice simbólico e teológico desse processo.
A segunda força motriz, em minha opinião, é aquilo que os Padres conciliares chamavam de ressourcement, ou “refontalização”, a volta às fontes. E, para Francisco, a principal fonte é “a alegria do Evangelho”, não por acaso título de seu primeiro documento, publicado ainda nos primeiros meses de pontificado e que serve como bússola para os rumos da Igreja até hoje. Talvez essa centralidade da pessoa de Jesus e do encontro pessoal com Ele já estivessem presentes em pontificados anteriores. Mas, de modo inovador, Francisco encarna essa experiência de encontro com o amor e a misericórdia de Deus em outra fonte cristã concreta e muito humana: a pessoa do pobre, “carne de Cristo”. Por isso, ele desejou desde o início uma “Igreja pobre e para os pobres”, promovendo uma retomada clara e direta da opção preferencial pelos pobres.
Um avanço significativo desse processo foi a instituição do Dia Mundial dos Pobres, em 2017, uma data anual para evidenciar que, “se realmente queremos encontrar Cristo, é preciso que toquemos o seu corpo no corpo chagado dos pobres, como resposta à comunhão sacramental recebida na Eucaristia”, como ele escreveu em sua primeira mensagem para essa data. Inserem-se aqui também os inovadores Encontros Mundiais dos Movimentos Populares, que reúnem organizações e iniciativas que atuam no combate das causas estruturais da pobreza, na promoção da solidariedade e na defesa dos já célebres três Ts: terra, teto e trabalho.
Só mesmo um papa como Francisco para convocar, apoiar e abraçar “cartoneros, recicladores, vendedores ambulantes, costureiros, artesãos, pescadores, camponeses, pedreiros, mineiros, operários”, como ele fez no primeiro encontro em Roma. E, como frisou nessa ocasião, não se trata de uma iniciativa de um “papa comunista”, mas sim a manifestação do “amor pelos pobres que está no centro do Evangelho”.
Para Francisco, “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176), e, por isso, a evangelização tem uma dimensão ecossocial muito relevante, pois envolve a defesa e a promoção da dignidade de cada pessoa, do bem comum e também da “casa comum”. Igualmente de forma inovadora em todo o magistério pontifício da história, além das pessoas pobres, portanto, Francisco reconheceu que a “nossa terra oprimida e devastada” se encontra entre “os pobres mais abandonados e maltratados” (Laudato si’, n. 2).
E nisso se encontra uma terceira força motriz alavancada pelo papa, ou seja, uma mudança de paradigma epistemológico e de horizonte de sentido na Igreja. Francisco é o papa da complexidade e da abertura sistêmica. Ele reconhece que a Igreja adoece ao se fechar e ao se acomodar (cf. EG 49) e definha ao “provar o veneno amargo da imanência” (EG 87). Não é à toa que a síntese de seu pontificado pode ser encontrada no convite a ser uma “Igreja em saída”, ou seja, uma comunidade de pessoas que, ao experimentarem o amor de Deus, não conseguem conter o desejo de o comunicar aos outros. Assim, em um movimento de comunicação por transbordamento, são resgatadas da “consciência isolada e da autorreferencialidade” (EG 8).
Sua interpretação da realidade social a partir dos quatro princípios bipolarmente em tensão presentes na Evangelii gaudium – “o tempo é superior ao espaço”, “a unidade prevalece sobre o conflito”, “a realidade é mais importante do que a ideia” e “o todo é superior à parte” – são uma pequena demonstração da epistemologia complexa de Francisco. O ápice dessa “cosmovisão” de Francisco está em sua encíclica Laudato si’, mais lida e reconhecida fora da Igreja do que dentro dela. É nesse documento que o papa reitera dezenas de vezes “a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo” (LS 16).
Segundo Francisco, os conhecimentos fragmentários e isolados podem ser até uma forma de ignorância (cf. LS 138). O fato de ele ser o primeiro papa da história a se preocupar com tanta força com o estado da “casa comum” deriva de sua compreensão de que não há duas crises separadas – uma ambiental e outra social –, mas sim uma “única e complexa crise socioambiental” (LS 139). Daí seu apelo a superar o antropocentrismo, reconhecendo inclusive que a antropologia cristã muitas vezes promoveu uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo (cf. LS 116). Pelo contrário, Francisco pede uma “ecologia integral”, que interligue as dimensões humana, ambiental, econômica, social, cultural.
O cotejo com a complexidade da realidade levou o papa a subverter seu próprio papel magisterial, ao reconhecer desde o início que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo (cf. EG 16). Pelo contrário, Francisco afirma que não pretende substituir as Igrejas e os episcopados locais no discernimento das problemáticas locais. Daí sua ênfase também na ideia de sinodalidade, no “caminhar juntos” da Igreja nesta complexa mudança de época, que demanda uma reflexão e um discernimento comuns por parte de todo o Povo de Deus.
Penso que um primeiro limite também é involuntário. Refiro-me à inédita presença de um papa emérito dentro do próprio Vaticano ao longo de praticamente todos esses 10 anos de pontificado. Isso não envolve uma crítica direta a Bento XVI, embora fosse até possível e válida, mas sim à problemática em torno da convivência de dois papas. Mesmo que Francisco sempre tenha se referido a ele como um “avô” que acompanha a vida familiar da Igreja, o problema maior eram justamente alguns “primos”, ou seja, clérigos e leigos – alguns dentro da própria Cúria Romana – que recorriam a Bento como contraponto a Francisco, transformando o papa emérito em antipapa, a despeito das verdadeiras intenções do pontífice anterior.
Embora Francisco tenha sido sempre afetuoso em relação a Bento XVI e tenha levado em frente a reforma da Cúria Romana e toda a revolução de seu pontificado com liberdade e coragem, era perceptível que, em certos gabinetes da burocracia vaticana, o papa emérito continuava reinante nos pensamentos e nas ações de alguns de seus “netos” saudosistas e ressentidos.
Um segundo limite envolve, por sua vez, a postura de Francisco em relação ao papado de Bento XVI. Explico. O fato de haver um papa emérito é algo involuntário em relação ao novo papa reinante. Mas o modo como este último lida com as decisões e as nomeações do primeiro é de responsabilidade e de risco apenas do novo papa. E Francisco optou, em suas primeiras decisões, por manter no cargo a grande maioria dos cardeais presidentes e prefeitos de Congregações e Conselhos vaticanos. Muitos deles, aliás, que depois foram se revelando abertamente contrários a seu magistério, suas decisões e seu estilo de gestão e pastoreio. Assim, Francisco teve que conduzir as ovelhas “no meio de lobos”, como diz Marco Politi. Com isso, as reformas esperadas tardaram muito, além de sofrerem diversos revezes ao longo do caminho.
Por fim, um terceiro limite diz respeito à sua própria condição humana, como alguém filho de seu tempo e de sua cultura. Trata-se de um homem, branco, de 87 anos, nascido na Argentina, descendente de italianos, formado pela Companhia de Jesus, escolhido para ser bispo e cardeal por João Paulo II, sucedendo a Bento XVI na conjuntura eclesial e mundial que lhe coube viver. Tudo isso, junto com muitos dons e benefícios, traz consigo lacunas e incompletudes, que se manifestam não tanto no sentido de escolhas mal feitas e de gestos equivocados, mas principalmente na decisão de não tomar certas decisões e de não fazer certas reformas na estrutura da Igreja de modo mais rápido e incisivo.
Ao contrário do que imaginava um mural romano logo no início do pontificado, Francisco não é e não pode ser um “super-homem”.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Moisés Sbardelotto – Por ter vindo “quase do fim do mundo”, Francisco não corresponde a um estereótipo pontifício que foi sendo moldado ao longo da história, marcado por protocolos formais e rígidos, por trejeitos fortemente romanos e europeus, por gestos régios, imperiais, majestáticos. Ele não quer ser nem “príncipe”, muito menos “rei”, e se afasta disso, reaproximando a si mesmo e a Igreja das culturas populares, marginais, periféricas, da vida do povo. Por isso, mais do que populista, Francisco é um papa popular, pois o povo é central em seu pontificado. Esse pontífice máximo se “re-baixa” ao nível do homem e da mulher comuns, fazendo-se próximo deles.
Desse modo, o papa incomoda certos indivíduos e grupos bien-pensants, porque, ao contrário deles, conhece e convive com o povo, com seu linguajar e sua realidade, porque sente um “prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas” (EG 268). Com isso, Francisco remodela a práxis da autoridade papal: não mais superiora e intocável, mas sim servidora e próxima. Uma autoridade que é sempre “serviço ao povo” (EG 104).
Com tais gestos e palavras, Francisco vem indicando novos caminhos, novas rotas, novos horizontes possíveis para a Igreja e para o mundo. Como disse antes, de uma Igreja historicamente centralizada em Roma e na Europa, ele aponta para as periferias do mundo. Basta relembrar os lugares visitados pelo pontífice: pouco “Ocidente” e poucos países do “centro” do mundo. Pelo contrário, muito Oriente e muitos países periféricos no cenário internacional. E, mesmo quando as viagens são dentro da Itália, as periferias têm prevalência.
Outro exemplo são os cardeais criados por ele. Poucos europeus, quase nenhuma “sede cardinalícia” histórica do Velho Continente. Muitos prelados do Sul do mundo, especialmente asiáticos, latino-americanos e africanos. Dentre os escolhidos, Francisco também criou cardeais em países quase desconhecidos, que nunca tinham recebido uma púrpura em toda sua história, como Cabo Verde, Cingapura, Etiópia, Haiti, Mianmar, Mongólia, Panamá, Paraguai, Tailândia, Timor Leste, Tonga, Vietnã, entre outros.
Com isso, Francisco des-norteia a Igreja e o mundo ao dar ouvidos ao Sul menosprezado, tirando da agenda eclesial a centralidade do Norte. E, ao chamar a atenção para o Oriente ignorado pelo Ocidente autorreferencial, re-orienta o olhar eclesial. É um papa que desnorteia e reorienta a Igreja e o mundo porque sente, pensa, age e fala como o povo comum dos cantos mais esquecidos do planeta. Parafraseando o artista uruguaio Joaquín Torres García, em tempos de Francisco, o “Norte” da Igreja é o Sul do mundo.
Mas não se trata apenas de uma mera estratégia de “geopolítica católica”: acima de tudo, é uma busca de respostas criativas e inovadoras aos desafios globais a partir da própria fé cristã, que reconhece o valor das culturas, de cada uma e de todas elas, especialmente as periféricas.
Segundo Francisco, a solução de tais problemas globais – da violência social à destruição ecológica – passa pela construção de uma nova cultura, a cultura do encontro, que possa desmantelar a atual cultura do descarte. Tal construção só é possível por meio do amor civil (LS 228ss) e da amizade social (FT 198ss). Ou seja, gerar processos de encontro, fazer do encontro uma cultura, construir um povo capaz de acolher as diferenças, permitir que tais diferenças convivam, integrem-se e se enriqueçam. E o fruto maior desse esforço é justamente a paz social (cf. FT 217), tão necessária no contexto global contemporâneo.
E, por isso, Francisco se destaca como a principal autoridade moral em todo o mundo neste século.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Moisés Sbardelotto – Do meu ponto de vista, as principais transformações estiveram ligadas a momentos de crise do pontificado, entendendo por “crise” aqueles momentos que demandaram um esforço maior para discernir mais claramente e tomar uma decisão e um novo rumo na caminhada da Igreja. Destaco três deles, dois diretamente ligados ao papa, e outro que comprovou a clarividência de Francisco, não apenas eclesial, mas também global.
Um primeiro momento foi o Sínodo sobre a Família, em 2014. Os debates pré e pós-assembleia foram acalorados e intensos, particularmente a partir do pedido do próprio Francisco para que os membros sinodais falassem com coragem e escutassem com humildade. Mas tudo ainda estava em suspenso, à espera das decisões a serem tomadas pelo papa e publicadas na exortação apostólica pós-sinodal. E, com o lançamento da Amoris laetitia, em 2015, não apenas esse documento, mas também o próprio pontificado foi posto em questão por meio das dubia lançadas publicamente por quatro cardeais, que, embora poucos e pouco conhecidos, conquistaram uma enorme repercussão midiática.
Esse gesto publicizou as fraturas na cúpula e no interior da Igreja, e a dissensão pública em relação ao pontífice, o que serviu para coagular indivíduos e grupos anti-Francisco no Vaticano e no mundo. Contudo, o papa não respondeu publicamente a tais dúvidas. De certa forma, ele silenciou porque tinha clareza de que o discernimento sinodal estava no caminho da verdade. Por isso, manteve-se ainda mais firme e decidido, mas sabendo que tais reações e forças contrárias a seu pontificado e magistério não diminuiriam, muito pelo contrário.
Em 2018, outra ferida emergiu fortemente não apenas com os casos de abusos sexuais no Chile – cuja denúncia levou todos os bispos do país a pedirem sua renúncia –, mas principalmente com uma certa falha no discernimento por parte do papa. Ainda em 2015, ele havia nomeado Juan Barros como bispo de Osorno, ao sul da capital chilena, mesmo sabendo que havia denúncias contra ele por abuso. Ao visitar o Chile, Francisco continuou defendendo a inocência de Barros, qualificando as acusações contra o bispo como “calúnias”.
No entanto, logo depois, em março de 2018, Dom Charles Scicluna, grande nome do combate aos abusos na Igreja, e o Pe. Jordi Bertomeu visitaram o Chile e retornaram a Roma com um relatório de 2.300 páginas, após ouvirem as vítimas. Em abril, então, Francisco escreveu aos bispos do país, reconhecendo as “feridas que não deixam de sangrar” na sociedade chilena e as “muitas vidas crucificadas” que lhe causavam dor e vergonha.
E então escreveu: “Quanto a mim, reconheço e assim quero que seja transmitido fielmente, que incorri em graves equívocos de avaliação e percepção da situação, especialmente por falta de informação veraz e equilibrada. Desde já peço perdão a todos aqueles a quem ofendi”. Aqui, o papa sentiu a necessidade de se pronunciar porque tinha clareza de que seu discernimento foi falho. A partir desse momento, o combate aos abusos ganhou um novo rumo, até chegar ao motu proprio Vos estis lux mundi, emitido em 2019, para prevenir e combater esses crimes, envolvendo todas as dioceses do mundo na elaboração de sistemas de denúncia locais.
Por fim, destaco a pandemia da covid-19, que tornou 2020 o único ano do pontificado em que Francisco não realizou nenhuma viagem, nem mesmo dentro da Itália. Para o papa que havia colocado o cuidado pela “casa comum” como uma missão primordial da Igreja, a pandemia foi “uma tempestade inesperada e furiosa”, como ele definiu no momento de oração extraordinário, celebrado no início da pandemia, em uma Praça São Pedro vazia.
Sua solidão naquele momento encarnava, de certo modo, a fragilidade e a pequenez humanas. O coronavírus, disse ele, fez com que a humanidade se desse conta de que estamos todos no mesmo barco. Ecoando aquilo que já havia prenunciado na Laudato si’, ele reconheceu que a avidez de lucro fez com que a humanidade não escutasse o grito dos pobres e de um planeta gravemente enfermo, achando que continuaria sempre saudável em um mundo doente.
Pouco tempo depois, na Fratelli tutti, o papa reiteraria que é preciso fazer crescer a consciência de que, hoje, “ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém” (n. 137). Esse trágico momento histórico fez com que Francisco se destacasse ainda mais como uma das principais lideranças mundiais, em quem grande parte da humanidade busca inspiração e consolo.
IHU – Deseja acrescentar alguma coisa?
Moisés Sbardelotto – Gostaria de destacar apenas que, para além dos “ineditismos” de ser o primeiro papa não europeu desde o ano 741, o primeiro papa latino-americano e o primeiro papa da ordem dos jesuítas, Francisco teve a inspiração e a coragem de assumir um nome papal também inédito em toda a história da Igreja, que é uma potência simbólica por si só, um nome exigente, para poucos, pois desperta um imaginário de elevada humanidade e santidade. A própria escolha desse nome – antes mesmo de qualquer palavra ou gesto do papa – já foi uma verdadeira “revolução” para os padrões históricos do catolicismo.
Como Francisco contou depois, a ideia do nome surgiu ainda no conclave, quando o falecido cardeal brasileiro Claudio Hummes, seu grande amigo, parabenizou Bergoglio pela eleição e lhe disse: “Não se esqueça dos pobres!”. O papa, então, logo pensou em São Francisco de Assis, “o homem da pobreza, o homem da paz, um homem que ama e cuida da criação”, como ele contou aos jornalistas que cobriam o conclave.
Passados 10 anos, vendo e ouvindo o que o papa faz e diz, confirma-se que ele tem se revelado à altura dessas três grandes dimensões destacadas no Santo de Assis, atualizando-as para o século XXI. Tudo o que veio depois ao longo dessa década de pontificado – o chamado “efeito-Francisco” – foi consequência, primeiramente, da escolha disruptiva de um nome que dava nome a um novo jeito de ser papa e de praticar o papado, e, consequentemente, a um novo estilo relacional e comunicacional para a própria Igreja.
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Vicente de Paula Ferreira (Foto: Repam)
Vicente de Paula Ferreira é bispo de Livramento de Nossa Senhora, na Bahia, e secretário-geral da Comissão de Ecologia Integral e Mineração - CEEM, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, com estágio pós-doutoral em Teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Também é graduado em Filosofia pela UFJF e em Teologia pela FAJE. Integrante da Sociedade de Estudos Psicanalíticos de Juiz de Fora, foi formador de estudantes redentoristas de teologia em Belo Horizonte. Tornou-se religioso da Congregação Redentorista, na Província do Rio de Janeiro, em 1992, tendo sido ordenado sacerdote em 1996.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Vicente de Paula Ferreira – Penso que Evangelium Gaudium, Laudato si' e Fratelli Tutti contêm os grandes avanços do magistério do Papa Francisco. Nesses documentos, temos o firme convite para uma conversão tríplice. Eclesial, ecológica e cultural. Diante da autorreferencialidade e do clericalismo, a partir da Alegria do Evangelho, todo batizado deve ser Igreja em saída para as periferias existenciais e geográficas. “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).
Creio que esse chamado mexeu com várias estruturas, trazendo um novo e irreversível tempo para a evangelização. Acendeu muitas posturas proféticas, individuais e coletivas. É notável, por exemplo, o impulso missionário da Igreja na Amazônia, a retomada das comunidades eclesiais de base, o reflorescimento de uma teologia da libertação.
Ecologia Integral é o tema-chave da Laudato si' – O cuidado com a casa comum. Considerando que atravessamos uma crise socioambiental global, o papa convidou a humanidade inteira a rever sua relação com o planeta Terra. Tudo está interligado e devemos cuidar, como irmãos e irmãs, da casa comum. O ponto de partida é o Evangelho da Criação. Se há necessidade de conversão é porque a sociedade contemporânea está imersa num pecado sistêmico. O dinheiro ocupou o lugar de Deus. Virou ídolo sagrado. E isso tem ferido, gravemente, os pobres e a mãe terra.
A mudança é urgente e ela começa através de uma espiritualidade ecológica. Com isso, é motivo de alegria o surgimento de redes como a Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, a Comissão de Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a Rede Igrejas e Mineração e várias entidades internacionais, como a plataforma Laudato si', a Economia de Francisco e Clara etc.
No âmbito da reflexão sobre a sociedade, Francisco é assertivo por uma civilização da amizade e da fraternidade universal. Diante de retrocessos extremistas, propôs o caminho da formação de um coração aberto ao mundo inteiro. O texto é inspirador para as religiões e para as organizações políticas. Verdadeiro convite a um engajamento de todas as instituições em prol de uma cultura da vida. Que ampare, sobretudo, os mais pobres e os estrangeiros.
Não tenho dúvidas de que Fratelii tutti seja um documento paradigmático. Um impulso a não cairmos nos perigos dos muros nacionalistas e das crenças. É um lindo apelo para a construção de pontes, não de divisões. As posturas pessoais de Francisco mostram sua firmeza contra as guerras, contra uma cultura que coloca a produção acima do cuidado integral da criação.
Quais seriam os limites? Arrisco algumas opiniões apressadas. Talvez não sejam limites do magistério de Francisco, mas de toda a estrutura hierarquizada de nossa instituição. Se a “Igreja em saída” ganhou o coração de uma parcela do Povo de Deus, questões como dogmatismo e hierarquismo ainda não alcançaram urgentes mudanças.
Não avançamos na questão da ministerialidade das mulheres. Em muitos aspectos somos cúmplices do machismo estrutural. É urgente uma escuta sincera dos apelos das comunidades LGBTQIA+. As questões mais radicais da sexualidade humana estão presas a supostas “verdades” que não gozam de sustentabilidade científica ou, até mesmo, teológicas. É um retrocesso continuar tratando questões tão importantes para muita gente apenas como se fosse uma pauta “puramente ideológica”. É grave desmerecer as descobertas da psicologia profunda sobre as pulsões vitais humanas. Em que aspectos concretizamos o que Amoris Laetitia propôs como pistas?
No campo da conversão ecológica, a Igreja poderia ser modelo de combate às empresas transnacionais que destroem a terra e a humanidade. Mas nos mantemos tímidos em nossas tomadas de decisões. E, em muitos casos, chegamos a ser coniventes com esses megaempreendimentos. É triste reconhecer que a Laudato si', em largas realidades, nem está sendo inserida na liturgia, na catequese ou na defesa socioambiental de nossos pastores, padres, religiosos e todo Povo de Deus. É tratada como tema secundário e não como elemento transversal. Esse aspecto prático poderia ter ganhado mais espaço.
Os bispos das Filipinas, por exemplo, publicaram uma orientação para que as igrejas daquele país não recebessem doações de mineradoras e outros empreendimentos envolvidos com crimes socioambientais. Por que não ser essa uma orientação geral proposta pelo Dicastério para o Desenvolvimento Integral, do Vaticano?
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Vicente de Paula Ferreira – Encanta-me a visão profunda da realidade que Francisco tem. Sem dúvida, ele é uma grande autoridade para nosso tempo. Tive a oportunidade de dizer-lhe “o senhor é a maior voz profética de nossa atualidade”. Sabe transformar temas complexos em linguagem acessível. Mostra proximidade compassiva com as feridas dos pobres e da terra. E tenta, com gestos concretos, provocar mudanças a partir das estruturas eclesiais.
Seu carinho, compaixão e amizade para com o Povo de Deus, com expressivos gestos simbólicos, mostra a atitude de um verdadeiro pastor. Não são poucos seus incentivos aos bispos para que avancem no pastoreio, sendo misericordiosos. Quantas vezes fez sérias interpelações aos cardeais, com mudanças concretas na Cúria Romana.
Tem realizado caminhos sinodais. Para enfrentar grandes desafios, com discernimento. Creio que isso contribui, e muito, para resgatar os pilares do Concílio Vaticano II. A questão da comunhão e da participação de todos os batizados; o Sínodo para a Amazônia trouxe uma força nova para a missionariedade, nesse continente tão vasto e complexo. Com o processo de escuta do sínodo sobre a sinodalidade, certamente haverá argumentos para os próximos passos. Acredito que as palavras compaixão, fraternidade e discernimento resumem seu estilo de pastoreio.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Vicente de Paula Ferreira – Nesse ponto, não tenho como fazer uma afirmação muito clara. Apresento, apenas, uma impressão. A crise global se acelerou nessa década. Atravessamos a pandemia da covid-19. Vivenciamos guerras complicadas. Em algum lugar, penso que as coisas “travaram” um pouco. O sínodo para a Amazônia poderia ter se traduzido em mais elementos concretos.
Sobre as questões da pedofilia, dos escândalos financeiros, não basta decretos severos. É preciso criar programas inovadores no campo formativo de nosso clero. No entanto, a tendência tem sido por uma Igreja conservadora muito agressiva em relação a quem faz uma opção mais clara pelos pobres. Imagino que Francisco tenha se deparado com isso e sofrido também.
Quem é que tem destaque na hierarquia eclesial? A disputa por poder é uma chaga dentro da Igreja. No início do seu magistério, senti que Francisco iria combater isso com mais firmeza. Os jogos de interesses de grupos, movimentos, infelizmente criaram obstáculos.
Por ser um papa latino-americano, creio que seria interessante que ele chamasse as lideranças mais envolvidas com teologia da libertação para uma espécie de nova primavera teológica. É um método que muito tem a contribuir com nossa caminhada de Igreja Global. Um fazer teológico encarnado na vida de nossos continentes, que aprofunda os atuais gritos dos pobres e da terra a partir da Palavra de Deus. Há métodos importantes de leitura da bíblia que nasceram de experiências como as das comunidades eclesiais de base. Essas tradições deveriam ser reforçadas.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Vicente de Paula Ferreira – Espero que consigamos continuar o legado já deixado nessa década de magistério. Sobretudo, o de uma Igreja servidora do Evangelho para a construção do Reinado de Deus. Um Reino que confronta os poderosos desse mundo. Temos a grande responsabilidade de ser sal da terra e luz para nossos tempos. Mas o risco de um recuo institucional é preocupante.
Nosso lugar teológico pós-moderno são as feridas que sangram no corpo dos pobres e da terra. Não podemos ficar surdos aos gritos das vítimas sistêmicas. Francisco já nos deu uma pista de que a Igreja deve ser um hospital de campanha. Ou seja, não é hora de nos acomodarmos em narrativas de uma religiosidade alienante. A grande missão da Igreja no mundo é antecipar as alegrias escatológicas no hoje de nossa história. Não é hora de regredir a uma cristandade colonialista que muito mal fez aos nossos povos originários, aos negros, às mulheres.
Para isso, nada melhor que, de fato, ser uma Igreja em saída. Sobretudo, sendo mais humildes em nossas pretensões de detentores de verdades absolutas. Sim, Cristo é nossa verdade porque nos revela o único caminho salvífico, que é a práxis do amor fraterno.
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Ivânia Vieira (Foto: Arquivo Pessoal)
Ivânia Vieira é jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, doutora em Processos Socioculturais da Amazônia, articulista no jornal A Crítica de Manaus, cofundadora do Fórum de Mulheres Afro-ameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas – Musas.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?
Ivânia Vieira – O Papa Francisco inaugura uma série de atitudes de impacto na Igreja e na comunidade católica, nas relações de poder da Igreja e desta com os demais poderes. A partir do meu lugar de escuta situo o movimento liderado por Francisco em relação à Amazônia/Pan-Amazônia do qual resultam documentos oficiais (Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral, de 2019, e Querida Amazonia, de 2020), frutos de cuidadoso processo de mobilização das forças vivas da região, homens e mulheres das cidades, das áreas rurais, das águas, das floretas, indígenas, povo preto, quilombolas, pesquisadores e das diferentes comunidades católicas.
Esses documentos somam-se a outros, de igual contundência, e estimulam a realização de outros processos de escuta, rodas de conversa, e trabalhos acadêmicos que refletem criticamente a situação dos povos da Amazônia e da Pan-Amazônia.
A violência contra as mulheres recebe atenção de Francisco que em diferentes momentos e lugares do mundo posiciona-se e compara a estrutura de violação aos direitos humanos das mulheres como “afronta a Deus”. Também no interior da Igreja Católica, o papa age para assegurar o diaconato feminino, uma das lutas mais difíceis de avançar em função do poder patriarcal católico bem distribuído na instituição e por suas representações em todo o mundo. Sim, a Igreja é feminina e sem as mulheres, na maioria das regiões do mundo, como na Amazônia, sem a ação das mulheres a Igreja estaria esvaziada. Mas as decisões permanecem nas mãos dos homens, chefes e líderes da Igreja. Colocar o tema em debate e tornar pública a posição, como faz Papa Francisco, é um passo à frente que provoca ranhuras fundamentais no enfrentamento da questão.
A inserção dos jovens é outro ato demarcador nos dez anos do pontificado de Francisco. Trata-se de um papa que ama as juventudes e se renova nelas, com elas. Os desafios e a política mundial de marginalização dos jovens são percebidos pelo papa e devolvidos à sociedade planetária com interrogações, à própria Igreja que na visão do Sumo Sacerdote necessita renovar a sua relação com os jovens e, assim, ser atualizada. A juventude é um “presente de Deus”, afirma Francisco embora a Igreja tenha dificuldades de promover o acolhimento e o lugar devido aos jovens.
Outros assuntos em destaque na caminhada de Francisco são: o fim da obrigatoriedade do celibato clerical, o enfrentamento à pedofilia no âmbito da Igreja, a defesa dos direitos humanos e do respeito à população LGBTQIa+. São questões historicamente colocadas sob o véu do veto da Igreja, do silenciar sobre ou até na tomada de decisões que são desviantes ou proibidas de serem publicizadas. O Papa Francisco as mantém como pautas permanentes.
A indicação de novos cardeais, entre os quais o primeiro sacerdote da Amazônia a assumir o posto, tem sido um gesto concreto de Francisco na reorganização do Colégio de Cardeais e reconfiguração dessa instância de poder da Igreja que tem entre outras responsabilidades a escolha do futuro papa. O novo colégio amplia e conecta o rosto da Igreja como Igreja do mundo e não de um pedaço hegemônico do mundo.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Ivânia Vieira – São necessários. A crise de poder na Igreja Católica, a revoada de católicos e a manutenção de práticas que destoam das de Jesus Cristo, precisavam ser enfrentadas com sabedoria, persistência e pertinência na fé. O Papa Francisco faz isso, reivindica a Igreja andante e andarilha, fraterna e atenda às vozes dos mais frágeis. É um jeito de atuar que convoca ao diálogo como instrumento da construção de um mundo melhor, da constituição de ambientes de encontro dos diferentes e da cultura da paz não como meras frases soltas, superficiais, e sim como sensações e possibilidades porque alguma distância e indiferença estão sendo enfrentadas.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Ivânia Vieira – A Igreja Católica, por meio do Papa Francisco, passou a desempenhar uma importante função de mediadora na interlocução interna e externa. Saber o que o Papa Francisco pensa sobre esse ou aquele tema, como o papa se posicionou reposicionou, por meio dele, a instituição Igreja. Internamente, as fricções entre os que seguem uma linha e outros que seguem o postulado de Francisco permanecem elevadas, o que é mais interessante do que o silêncio dos mortos. Para muitos, Francisco reabriu as portas da Igreja e indicou existir nela, na Europa, na África, nas Américas do Norte e do Sul, na Amazônia, um lugar de importância a essas pessoas.
Não é à toa que a mídia mundial coloca o papa como uma das personalidades, como fonte para a elaboração de notícias diversas – da crise climática, das guerras, da fome, do desemprego, dos governos autoritários, da fragilidade da democracia no mundo, do ecumenismo, da política, da educação, da saúde, da economia, das pesquisas científicas. Há, com Francisco, uma Igreja que apresenta vontade em consolidar transformações. Sem desconsiderar a força da Igreja que quer manter privilégios e a cultura colonial, o papa usa o seu tempo de autoridade máxima para aprofundar avanços e consolidar essa Igreja evangelizadora e missionária na terra.
IHU – O que gostaria de acrescentar?
Ivânia Vieira – Penso na preciosidade dos escritos do Papa Francisco em Querida Amazonia. Cada um dos quatro sonhos por ele sonhados é, de fato, uma postulação que nós, da Amazônia, e o mundo, precisamos compreender, aprender e seguir revigorad@s nos caminhos da construção desse sonhar. A inspiração de Francisco nasce das escutas por ele realizadas, da inquietação que carrega e da amorosidade que compartilha.
Que a Amazônia se faça querida em nós, feito compromisso “de luta pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida”; que “preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana”; que “guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas”; que “comunidades cristãs sejam capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos”. O sonho, com esses sonhos entregues por Francisco, é o rascunho das nossas lutas, do significado das nossas existências.
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Eliana Yunes (Foto: Arquivo Pessoal)
Eliana Yunes é professora universitária no Brasil e visitante no exterior, com formação em Filosofia e Letras. Possui doutorados em Linguística e Literatura, é pesquisadora e crítica, com publicações em interpretação, teorias da leitura e formação de leitores, estudos inter e transdisciplinares nas áreas de Hermenêutica, Letras, Educação, Artes, Teologia e Políticas Públicas. É orientadora na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, na Pontifícia Universidade Católica do Ri de Janeiro – PUC-Rio, e organizadora do Proler/Fundação Biblioteca Nacional, cocriadora da Cátedra Unesco de Leitura no Brasil e da Rede de Estudos avançados em Leitura – Reler.
IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco?
Eliana Yunes –
1) deselitizar a Igreja: “em saída, atenção preferencial aos pobres”; atenção aos migrantes, refugiados; do individualiosmo religioso à solidariedade coletiva.
2) teologia de pastor: falar para o povo e não para a academia apenas; ênfase na solidariedade e no amor, não no pecado e na culpa; atenção aos jovens, famílias.
E 3) reforma das estruturas da igreja: fim da corte vaticana, banco, cúria romana; sinodalidade; vida de oração e partilha; valorização dos leigos; atuação como Bispo de Roma e estadista; diálogo inter-religioso; combate aos abusos.
IHU – E quais seriam os maiores limites?
Eliana Yunes – Oposição da igreja conservadora; fiéis endurecidos; saúde debilitada.
IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?
Eliana Yunes – Francisco é um novo Moisés.
IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?
Eliana Yunes – De papa vindo da periferia a um papado de visibilidade e respeito mundo afora como pastor e estadista, com proeminência entre políticos e economistas, chamado à reflexão intensa para renovar o cristão que renove a Igreja, voltando ao modo evangélico de vida estrito.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Eliana Yunes – Falta união em torno do papa renovador, capaz de levar ao REdescobrimento do Cristo, para além da doutrinação e da LEI.