13 Março 2023
Francisco reconhece que somos comunicação. Existimos em comunicação. O processo comunicacional – e a ação evangelizadora, portanto – passa pela vida inteira de uma pessoa ou de uma comunidade. E o mesmo vale para o Papa Francisco, cuja comunicação perpassa muitos ambientes, muitas linguagens, muitos momentos, sua vida inteira e muitas outras vidas.
A opinião é de Moisés Sbardelotto, doutor em Comunicação e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), onde é pesquisador membro do Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect).
Neste dia 13 de março, celebram-se os 10 anos da eleição do Papa Francisco. O “texto vivo” que o papa foi tecendo e comunicando ao longo dessa década não pulsa apenas em suas palavras e discursos, mas também e principalmente em seus gestos e em seu estilo.
Escrever sobre a comunicação de Francisco é um grande desafio e também um grande risco, porque, na realidade, o papa comunica por si só. Melhor do que ler um texto sobre a comunicação do pontífice – como este – é ler os textos escritos pelo seu próprio punho, mas principalmente acompanhá-lo, vê-lo, ouvi-lo, para assim ler, ver e ouvir como o próprio Papa Francisco comunica e se comunica. Todo texto sobre sua comunicação “manipula” seu sentido original, mesmo que involuntariamente. Toda forma de reflexão sobre a comunicação do papa “molda” a comunicação papal a partir de interesses alheios aos do próprio papa, acrescendo ou retirando camadas de sentido.
Isso porque a comunicação de Francisco é uma comunicação pessoal e conjuntural. Ele se dirige a pessoas específicas, concretas, reais. Francisco não é um “papa das massas”, de uma comunicação genérica e generalista. É um papa do toque pessoal, do olho no olho, dos abraços. Ele pratica uma comunicação sempre local, relacional e artesanal, que perde seu sentido fora dessas especificidades. No fundo, não existe a comunicação “do” Papa Francisco, como algo exclusivo dele, mas sim a comunicação do Papa Francisco “com” uma pessoa ou um grupo específico, que tem nome, rosto, história. Francisco sempre modula sua comunicação de acordo com o momento, o lugar, as pessoas e os públicos, de acordo com aquilo que ele se sente inspirado a fazer, como demonstram seus inúmeros “discursos de improviso”.
Além disso, é uma comunicação multimidiática e multissensorial. A comunicação papal se realiza pelas mais variadas linguagens, pelas mais variadas formas, pelos mais variados meios – e aqui, neste texto, só temos à disposição o “meio-palavra” para dar conta disso. Ao se tentar traduzir a complexidade da comunicação papal apenas em palavras, essa riqueza e essa dinamicidade comunicacionais do Papa Francisco acabam estruturadas, enquadradas, cristalizadas, enrijecidas e até mesmo empobrecidas.
A comunicação do Papa Francisco, em suma, tem uma dimensão poliédrica, para retomar um conceito importante ao próprio pontífice (cf. Evangelii gaudium, n. 236). É uma comunicação que envolve muitas características e expressões diferentes, embora unidas em um mesmo estilo comunicativo.
Por outro lado, tudo o que o Papa Francisco diz e faz, na realidade comunicacional contemporânea, entra em circulação no tecido social. Pelo fato de ser uma liderança mundial, suas palavras e seus gestos se convertem em informação de interesse geral, em notícia nos diversos meios de comunicação, em assunto para a conversação interpessoal e nas redes digitais. Quando a comunicação papal entra nesses diversos circuitos, ela se torna efetivamente social – e já não pertence mais a ele. Torna-se uma comunicação pública, acessível, aberta, comum. Em suma, complexa: uma comunicação “tecida junto” nas tramas da vida, que todos e todas podemos tecer com ele.
Embora seja o papa em pessoa quem escute, fale, escreva e faça sua própria comunicação, nós também podemos participar desse processo de diversos modos, por meio daquilo que fazemos com essa sua comunicação. Então, todos e todas estamos “autorizados” a construir sentido não apenas com o Papa Francisco, mas também sobre ele e para além dele – e é nesse sentido que este texto, por sua vez, ganha sentido.
A partir disso, pretendo apresentar aqui alguns elementos mais relevantes de sua comunicação. Trata-se de uma seleção deliberada, com um forte critério pessoal de quem fez tais escolhas: haveria milhares de outras opções possíveis. Falarei aqui de apenas 10 pontos, que, a meu ver, caracterizam de forma mais significativa a comunicação do Papa Francisco ao longo desses 10 anos de pontificado.
Por fim, ofereço um “bônus final”, que, na realidade, é o elemento mais importante do modo de comunicar do papa, pois efetivamente encarna seu estilo comunicacional na realidade concreta da vida de hoje.
Comecemos por aquilo que, segundo Francisco, não é comunicação, pelo seu antônimo. Trata-se do proselitismo. Isto é, qualquer forma de contato com o outro que envolva, a priori, algum tipo de propaganda ou doutrinação em prol de qualquer partidarismo e sectarismo, sem atenção ou preocupação direta com a pessoa envolvida. Para o papa, fazer proselitismo é não comunicar, e, vice-versa, comunicar é não fazer proselitismo.
Em um discurso para o Dicastério para a Comunicação em 2019, Francisco disse que a comunicação, especialmente na Igreja, não pode ser mera “publicidade”, porque esta vai buscar, de todos os modos, vender um produto. A Igreja, porém, não é como uma empresa que procura ter mais consumidores. Francisco diz claramente a toda a Igreja:
“Vocês não devem fazer proselitismo. Eu gostaria que a nossa comunicação fosse cristã e não um fator de proselitismo. Não é cristão fazer proselitismo. [...] A nossa comunicação deve ser testemunho.”
Proselitismo, segundo o papa, é um anúncio vazio, “da boca para fora”, que inclusive manipula o sagrado apenas para seduzir mais fiéis, para vender um determinado produto religioso. É uma forma de comunicação autocentrada: todos os meios são válidos para que um proselitista alcance seus próprios fins ou os de seu grupo. O outro lhe é indiferente ou só lhe interessa desde que lhe “sirva” para algo.
Se proselitismo é o antônimo de comunicação, qual seria o seu sinônimo, segundo Francisco? De acordo com o papa, como acabamos de ver, é testemunho.
Mas testemunho de quê?
A resposta – e também o grande sinônimo de comunicação que está presente desde o início do pontificado – é: de um encontro. Na Evangelii gaudium, Francisco afirma que a própria vida cristã e o ser cristão nascem de um encontro “com um acontecimento, com uma Pessoa” (EG 7): um encontro com Jesus. A própria fé, a experiência cristã e a evangelização nascem desse encontro. A partir dele, a pessoa vai ao encontro dos demais, em um processo de comunicação que, portanto, não nasce nela mesma.
Esse é o “fluxo” da comunicação cristã. Se esta deve ser testemunho, como método indicado anteriormente por Francisco, ela deve ser a comunicação de um encontro, como seu conteúdo e substância.
Para o papa, aí está a “fonte da ação evangelizadora”, porque, afirma ele, “se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?” (EG 8, grifo nosso). Então, se alguém se encontrou com Jesus, acolheu esse amor e se sente amado, isso lhe devolve o sentido da vida, levando a um movimento de comunicação por transbordamento.
Em Francisco, a comunicação também ganha sentido a partir de uma parábola dos Evangelhos, a do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Francisco a relê comunicacionalmente em sua primeira mensagem para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais, de 2013.
A partir do relato bíblico, Francisco afirma: “Quem comunica se faz próximo”, assim como o samaritano. Os outros personagens da parábola – o sacerdote e o levita – passam adiante, atravessam para o outro lado, para não se encontrar face a face com o homem ferido e caído às margens da estrada. O samaritano não: aproxima-se daquela pessoa machucada e agredida. Com essa parábola, segundo Francisco, “Jesus inverte a perspectiva: não se trata de reconhecer o outro como um meu semelhante, mas da minha capacidade de me fazer semelhante ao outro” (grifo nosso).
Muitas vezes, até mesmo dentro da Igreja, pensa-se que o processo de evangelização é ir ao encontro dos outros para que estes se identifiquem, vivam a mesma fé, acreditem nos mesmos valores, celebrem os mesmos ritos. Mas aqui o papa está dizendo que a comunicação demanda outra coisa: uma inversão de perspectiva. Nós é que devemos nos fazer semelhantes aos outros. Falando a mesma linguagem, tentando pensar como eles pensam, sentir como eles sentem, para assim construir a cultura do encontro.
Essa é a comunicação samaritana a que Francisco nos convida.
Além dessa parábola, há também uma metáfora que perpassa o pontificado do Papa Francisco e que diz muito sobre o seu modo de viver a comunicação. É a imagem da “saída”: uma Igreja em saída. Isto é, pessoas que conseguem sair de si mesmas, de sua autorreferencialidade, de seu isolamento, de seu narcisismo, para ir ao encontro dos demais.
Francisco aprofunda essa metáfora na Evangelii gaudium, ao pedir uma transformação missionária da Igreja. Segundo o papa, a própria Escritura e os Evangelhos contêm sempre a “dinâmica do êxodo e do dom, de sair de si mesmo, de caminhar e de semear sempre de novo, sempre mais além” (EG 21). Em Jesus, no seu “ide!”, no mandato aos apóstolos para irem anunciar a Boa Nova, também se manifesta uma “saída” missionária e comunicacional, à qual toda a Igreja é chamada ainda hoje. “Todos somos convidados a aceitar este chamado: sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG 20).
Para o papa, a principal “saída” necessária é a da mesmice: “A pastoral em chave missionária exige o abandono deste cômodo critério pastoral: ‘Sempre se fez assim’. Convido todos a serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar [...] o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG 33, grifo nosso).
O apelo do papa é de que a pastoral da Igreja “em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de ‘saída’” (EG 27, grifo nosso).
Uma das ações comunicativas mais tradicionais da Igreja é a publicação de documentos diversos, principalmente por parte dos pontífices. Em relação a Francisco, qual texto sintetizaria a sua compreensão da comunicação?
Sem dúvida, a Evangelii gaudium. Essa sua primeira exortação apostólica, publicada em novembro de 2013, é o documento que inaugura o pontificado do Papa Francisco e marca todos esses últimos 10 anos, pois “possui um significado programático e tem consequências importantes” (EG, n. 25, grifo nosso) para a vida da Igreja.
Francisco abre o texto dizendo que “a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, n. 1). Por isso, convoca toda a Igreja a “uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria” (EG 1), “alegria que se renova e se comunica”, que é fruto de um amor transbordante, a ponto de a pessoa não conseguir “conter o desejo de o comunicar aos outros” (EG 8).
O próprio texto evidencia o estilo comunicacional de Francisco. O papa afirma ter consultado várias pessoas para redigir a exortação. E também escreve que não se deve esperar dele uma palavra final e definitiva sobre tudo, pois ele não quer substituir as Igrejas e os episcopados locais no discernimento de suas problemáticas locais (cf. EG 16).
Por isso, ao longo do texto, Francisco recorre e cita vários documentos de Conferências Episcopais do mundo inteiro. O papa não fala “magistralmente”, do alto da sua “torre de marfim”, mas sim “ministerialmente”, na companhia e a serviço, por exemplo, dos bispos da América Latina, da África, da Ásia, dos Estados Unidos, da França, da Oceania, do Brasil, das Filipinas, do Congo, da Índia, cujos documentos vão sendo citados ao longo do texto.
Dizendo e fazendo ao mesmo tempo, Francisco põe em prática, também textualmente, a “salutar descentralização” (EG 16) que ele deseja para a Igreja e o papado.
Além de textos e documentos escritos, o Papa Francisco fez incontáveis discursos ao longo do seu pontificado. Aqui, quero destacar um deles, que me parece um dos mais significativo do ponto de vista de seu contexto e de seus conteúdos comunicacionais. Foi o que ele proferiu em 2015, na cidade de Florença, no 5º Congresso da Igreja Italiana.
É um discurso que merece ser (novamente) assistido, ouvido, lido na íntegra, pela profundidade das questões abordadas em torno do tema do congresso: “Em Jesus Cristo, um novo humanismo”. Em sua fala, Francisco não apresenta um humanismo abstrato, mas sim o “humanismo cristão que é aquele dos ‘sentimentos de Jesus Cristo’”.
O papa apresenta a imagem de Jesus como ícone da comunicação divino-humana, resgatando o relato do Evangelho quando Pilatos diz: “Ecce homo”, “eis o homem”, o homem-Jesus. Um homem que acabara de ser agredido, esbofeteado, chicoteado. Mas, mesmo assim, “não recrimina, mas acolhe”, inclusive as desavenças, os xingamentos, as cusparadas, transformando tudo isso em doação, em entrega, em amor. É esse homem, essa pessoa humana em quem o comunicador e a comunicadora cristãos devem se inspirar para pensar e praticar a comunicação.
Esse homem revela “o rosto de um Deus ‘esvaziado’, de um Deus que assumiu a condição de servo, humilhado e obediente até à morte”, afirma Francisco. Esse rosto também “olha para nós”, continua o papa, e “se não nos abaixarmos não poderemos ver a sua face [...] e as nossas palavras serão bonitas, cultas, refinadas, mas não serão palavras de fé. Serão palavras que ressoam vazias”.
Dentre inúmeros gestos de reconhecimento, o Papa Francisco recebeu uma homenagem sem precedentes na história da Igreja.
Logo em seu primeiro ano como papa, em 2013, a revista The Advocate, a publicação mais antiga voltada à comunidade LGBT+ dos Estados Unidos, fundada em 1969, escolheu ninguém menos do que Francisco como a “Pessoa do Ano”. Uma escolha muito significativa e simbólica, quase paradoxal, em se tratando do reconhecimento de um pontífice católico como alguém de destaque no meio homoafetivo.
Representando um dos grupos sociais mais estigmatizados no interior da Igreja, sendo geralmente os mais rejeitados e marginalizados ainda nos ambientes eclesiais, a revista estampou a foto do papa em sua capa. E usou como manchete a frase que ele dissera no voo de volta da Jornada Mundial da Juventude no Brasil: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?”.
Foi a primeira vez que a palavra “gay” foi proferida por um papa em toda a história. Segundo a The Advocate, “a brevidade dessa declaração e a atenção descomunal que recebeu imediatamente são evidências da influência do papa”.
Ainda segundo o editorial da revista (disponível em inglês aqui), “uma mudança significativa e sem precedentes ocorreu neste ano [2013] no modo como as pessoas LGBT são consideradas por uma das maiores comunidades religiosas do mundo. O Papa Francisco é o líder de 1,2 bilhão de católicos romanos em todo o mundo. (...) Goste-se ou não, o que ele diz faz diferença”. Isso porque não se pode subestimar a capacidade do papa de “persuadir corações e mentes a se abrirem às pessoas LGBT”.
Com seu modo de comunicar – aberto ao diferente e às diferenças, sem excluir ninguém –, Francisco foi construindo pontes e derrubando os muros do preconceito e da discriminação que ainda dividem e excluem várias pessoas, dentro e fora da Igreja.
Como já disse Marshall McLuhan, em uma frase que virou slogan, “o meio é a mensagem”. E na comunicação do Papa Francisco, qual seria o meio por excelência? Entre os vários meios de comunicação que marcam o papado de Francisco, o que mais se destaca pode até soar banal e trivial em tempos de comunicação em rede: o telefone.
Contudo, Francisco nunca teve um celular pessoal, nem quando era cardeal. Mas, mesmo assim, é um papa que toma a iniciativa e telefona para inúmeras pessoas comuns. Não é um gesto corriqueiro nem insignificante. Primeiro, porque é um pontífice quem telefona. Segundo, porque as pessoas contatadas pelo papa – mães e pais de família, crianças, adolescentes, jovens, políticos, pessoas de outras religiões, de outras sensibilidades e gêneros etc. – ficam muito surpreendidas e transformadas pela voz que ouvem do outro lado da linha.
É uma comunicação invertida: uma grande liderança mundial que liga para pessoas comuns, enquanto o “normal” seria pessoas comuns tentarem entrar em contato com tais lideranças – sem quase nunca conseguirem.
Por meio do telefone, Francisco vai ao encontro e principalmente se põe à escuta. Não por acaso, no Brasil, ficaram famosos os chamados “orelhões” de algumas décadas atrás. Simbolizar o telefone como uma “grande orelha” é entendê-lo como uma forma de se pôr à escuta de quem está do outro lado da linha, e não tanto de falar. Dizer “alô?” é reconhecer que, sem a escuta do outro, a nossa comunicação se torna impossível.
E é isso que o Papa Francisco faz quando telefona, pondo-se à escuta das várias realidades humanas. Afinal, ele mesmo reconhece que “nunca se deve responder a perguntas que ninguém se põe” (EG 155).
A comunicação do Papa Francisco também é marcada por não presenças. Ausentar-se também é uma forma de comunicar algo. E houve uma ausência papal muito significativa.
Em novembro de 2013, encerrava-se o Ano da Fé convocado por Bento XVI. Para marcar essa data, autoridades vaticanas organizaram um grande concerto em honra ao papa, na Sala Paulo VI, no Vaticano, com a execução de peças de Ludwig van Beethoven, com coro e orquestra.
Mas Francisco simplesmente não foi, e sua cadeira ficou lá, vazia, no meio dos espectadores, para o estupor de todos. O concerto ocorreu igualmente, mas foi essa cadeira vazia quem falou muito mais alto do que qualquer voz ou instrumento musical.
Por que o papa decidiu se ausentar? O que queria comunicar com isso? Uma resposta possível está na Evangelii gaudium, quando Francisco afirma que “Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo” (EG 271). E ele ressalta que isso não é uma mera opinião de um papa latino-americano: “São indicações da Palavra de Deus tão claras, diretas e contundentes, que não precisam de interpretações”.
De certa forma, organizar um concerto de música clássica em que Francisco seria o centro das atenções é colocá-lo em uma posição em que ele não deseja estar, como se fosse um príncipe, uma estrela, uma celebridade. Sua ausência comunica sua busca de romper com resquícios da monarquia eclesiástica e com o clericalismo.
Tanto é que, em 2015, o Vaticano voltou a organizar um concerto, mas agora quem assumiu os primeiros assentos e os lugares de honra – a pedido do próprio papa – foram os pobres, os mendigos e os sem-teto que moram no Vaticano, comunicando a “Igreja pobre e para os pobres” (EG 198) desejada por Francisco.
Chegamos, assim, ao último ponto: um silêncio. Na Amoris laetitia, Francisco afirma: “No amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras” (n. 12).
Um dos exemplos mais significativos dessa “eloquência silenciosa” foi em julho de 2013, quando ele foi visitar a ilha de Lampedusa, na Itália, porto de chegada dos imigrantes provenientes em sua grande maioria do norte da África. O Mediterrâneo, segundo a Organização Internacional das Migrações, é a rota migratória mais mortífera do planeta: de 2014 a 2020, mais de 20.000 pessoas morreram afogadas nesse mar, em uma tentativa desesperada de alcançar o litoral europeu, principalmente o italiano (dados disponíveis aqui).
Foi nas águas que rodeiam essa ilha que Francisco jogou, em silêncio, um ramalhete de flores, lembrando os milhares de imigrantes sepultados nesse cemitério aquático, pessoas miseráveis ou que sofrem as consequências da guerra, e que partem em busca de uma vida melhor. Ele fez esse gesto sem (precisar) dizer nada, porque o próprio gesto já havia comunicado aquilo que realmente importava: o cuidado, a reverência, o respeito, a defesa da dignidade humana, de todos e todas.
Em sua mais recente viagem à República Democrática do Congo, no mês passado, Francisco ouviu os chocantes testemunhos da violência no país, incluindo estupros, escravidão sexual, amputações, canibalismo forçado. Diante desse horror, o papa afirmou: “Só nos resta chorar, sem palavras, permanecendo em silêncio”.
Para além dos 10 pontos aqui apresentados, é impossível falar da comunicação do Papa Francisco sem reconhecer que ela se encarna, verdadeiramente, em seus gestos.
Uma vez, na Polônia, um jovem lhe perguntou: “Na universidade, eu tenho muitos colegas ateus. O que devo dizer a eles para lhes convencer?”. A resposta do papa foi muito clara: “Nada, meu caro, nada! A última coisa que você deve fazer é dizer alguma coisa. Comece a viver, e eles, vendo seu testemunho, lhe perguntarão: ‘Mas por que você vive assim?’”.
Para Francisco, não basta “dizer” a fé para que as pessoas creiam: é preciso fazer, pondo-a em prática na concretude da vida e comunicando-a por meio do testemunho. “Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe comunicarei a minha fé” (cf. Tg 2,18).
Em uma Audiência Geral em 2018, o papa afirmou:
“Quando falamos de comunicação entre as pessoas, referimo-nos não apenas às palavras, mas também aos gestos, às atitudes, até aos silêncios e às ausências. Uma pessoa fala com tudo o que é e faz. Todos nós estamos em comunicação, sempre. Todos nós vivemos comunicando.”
Nesse breve e profundo parágrafo, Francisco reconhece que somos comunicação. Existimos em comunicação. O processo comunicacional – e a ação evangelizadora, portanto – passa pela vida inteira de uma pessoa ou de uma comunidade. E o mesmo vale para o Papa Francisco, cuja comunicação perpassa muitos ambientes, muitas linguagens, muitos momentos, sua vida inteira e muitas outras vidas.
Trata-se de uma comunicação marcada por um processo constante de descentramento, em que a autoridade máxima da Igreja atua a partir do reconhecimento de que não age comunicacionalmente sozinha ou isolada, nem tem o controle sobre os processos midiáticos e sociais nos quais está envolvida.
Com base na “convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo” (Laudato si’, n. 16), especialmente do ponto de vista da comunicação, Francisco talvez seja o primeiro papa a reconhecer que a Igreja não se sustenta mais apenas com uma “comunicação-para”, considerando o outro apenas como um receptor apassivado de sua ação comunicacional.
Pelo contrário, a Igreja só existe e subsiste em um contexto de “comunicação-com”, de uma comum-ação com agentes e ações diversos, em redes diversas e entrelaçadas, que também integram seus próprios processos constituintes e instituintes. Daí também a ênfase cada vez mais intensa de Francisco na ideia de “sinodalidade”, o “caminhar juntos” da Igreja como Povo de Deus peregrino e missionário pelos caminhos da história, “numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada” (EG 87).
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A comunicação do Papa Francisco: 10 anos em 10 pontos. Artigo de Moisés Sbardelotto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU