“A era das revoluções do século XX deu lugar à era das contrarrevoluções no século XXI: um festival de individualismo, hedonismo e um macarthismo redobrado”, afirma o pesquisador Juan Gabriel Tokatlian.
Um turbilhão de acontecimentos dramáticos está empurrando o mundo para um território desconhecido e é difícil construir um olhar lúcido sobre o processo. Juan Gabriel Tokatlian vem aprimorando seus instrumentos de leitura há décadas e, embora não esconda sua surpresa com o teor da época, oferece chaves para a sua compreensão. O mundo em crise para a bola, levanta a cabeça e pensa.
A entrevista é de Marco Teruggi e Mario Santucho, publicada originalmente pela Revista Crisis, e reproduzida por Rebelión, 30-11-2024. A tradução é do Cepat.
O mundo é um barril de pólvora em grande escala e esta semana nos proporcionou uma nova avalanche de manchetes explosivas: a escalada de mísseis entre a Rússia e a Ucrânia, outro veto dos EUA ao cessar-fogo em Gaza, a preparação de um gabinete pistola na mão para acompanhar o retorno de Donald Trump à Casa Branca, ou os 37 acordos assinados entre Brasil e China no âmbito da Cúpula do G20 no Rio.
Sem falar da Argentina, onde o presidente Javier Milei finalmente se deixou fotografar ao lado de Lula da Silva e Xi Jinping, maus comunistas que têm algo do que a economia argentina precisa. Mas a vertigem dos acontecimentos dificulta a compreensão do significado dos tempos em que estamos mergulhados. Precisamos abrir o zoom e ver o filme em perspectiva, para captar a natureza desta “era de inusitada periculosidade”, como a define Juan Gabriel Tokatlian, professor da Universidade Di Tella e especialista em relações internacionais.
A razão formal desta conversa é um livro publicado pelos amigos da editora Siglo XXI em julho deste ano: Consejos no solicitados sobre política internacional, que contém uma longa e interessante entrevista com Tokatlian realizada por Hinde Pomeraniec. Enquanto coordenávamos o encontro, que foi sendo protelado por diversos motivos, apareceu outro livro intitulado La impetuosa irrupción del Sur, cuja compilação está a cargo do Juan Gabriel, juntamente com Federico Merke. Finalmente concluímos a reportagem nesta sexta-feira [23 de novembro], nos estúdios da FM La Tribu.
Você vem afirmando que vivemos uma situação crítica e que talvez estejamos enfrentando o momento mais alarmante desde a Segunda Guerra Mundial. Quer nos explicar melhor como define esse estado de alarme?
Vamos por partes, porque acredito que a maneira de situar essa conjuntura no seu devido lugar é ter uma visão de longo prazo e depois trazê-la para essa conjuntura específica. E há pelo menos duas questões que considero fundamentais explicitar. Vê-se uma espécie de padrão histórico que colocou o Ocidente numa condição única durante muito tempo, a partir do final do século XVIII: basicamente, o que tem predominado são os valores, as instituições, as regras e os interesses do Ocidente.
Esta situação de longo prazo começou a mudar entre o final da década de1960 e 1980, com uma série de rearranjos internacionais, entre os quais uma parte da Ásia já começava a se descolar, e em particular as reformas que a China insinuou e depois colocou em prática. Nos últimos 50 anos houve basicamente uma transferência do centro de gravitação internacional do Ocidente para o Oriente, não apenas para a China, mas para um grupo de países da Ásia.
Portanto, os valores, os interesses, as instituições, as preferências e as regras que o Ocidente colocou em prática e que lhe deram um predomínio absoluto, foram relativizados e entraram num processo de declínio gradual. Ou seja, existem contrarregras, contra interesses, contra instituições, contra valores que passam a atuar no cenário internacional.
Este processo de longo prazo começa a coincidir com um ciclo curto, que é o pós-Guerra Fria. O que se esperava do pós-Guerra Fria? Basicamente, que o Ocidente ordenasse como um primus inter pares, que universalizaria uma série de parâmetros, diretrizes, formas, arquiteturas institucionais, etc. Isso começa a ser desafiado por uma série de questões que têm a ver com o próprio Ocidente.
Por exemplo, a famosa ordem liberal tão promulgada e prometida, em Kosovo em 1999, foi descumprida, porque a OTAN, sem a aprovação das Nações Unidas, realizou uma intervenção militar, quebrando as mesmas regras que sugeria serem predominantes. Isto continua no campo financeiro, com a crise financeira de 2008, que se expandiu basicamente no Ocidente... mais uma vez, o epicentro deste enfraquecimento é o próprio Ocidente.
E depois há dois tipos de contestações, ou refutações: o primeiro, de um ator não estatal, o 11 de Setembro de 2001, o ataque da Al Qaeda às Torres Gêmeas, que teve um tremendo impacto nos Estados Unidos; e em 2022, a invasão da Ucrânia pela Rússia. Atores não estatais e outros atores estatais dizem que esta ordem não é mais válida. O que estamos vendo já não é um declínio gradual, mas o fim do pós-Guerra Fria.
Aliado a isto, há todo um debate sobre que tipo de ordem estamos hoje estabelecendo no sistema internacional. Quem são os atores? Quais são os ordenadores? E um dos argumentos que defendi juntamente com outros colegas é que estamos diante de uma ordem não hegemônica. Ou seja, não existe uma hegemonia consolidada, definitiva e plena dos Estados Unidos; nem existe uma hegemonia vibrante, ascendente e decisiva da China. Estamos num espaço, portanto, muito aberto à combatividade, porque está tudo sendo reacomodado: a dinâmica financeira, a dinâmica política, as dinâmicas militares.
Assim, os elementos que estamos assistindo nos últimos tempos, especialmente a questão do Oriente Médio e a exacerbação da situação em torno da Ucrânia, devem-se a esta dupla situação: um mundo pós-ocidental que está ganhando peso, gravitação, espaço e voz; mas que se desenvolve no quadro de uma ordem não hegemônica.
Com o retorno de Donald Trump à Casa Branca, há algumas vozes que defendem a necessidade de avançar para um desacoplamento entre os dois países em algumas áreas estratégicas. Acredita que isso é possível tendo em conta o nível de interligação que existe entre as economias dos Estados Unidos e da China?
Sua pergunta é muito pertinente e vou enfatizar três pontos. O primeiro e principal: volto à década de 1990, ao final da Guerra Fria, quando os Estados Unidos tinham uma missão que consistia em ser o principal ordenador do sistema internacional. E por trás dessa missão, os Estados Unidos se expandem para diversas áreas. O meu argumento é que o segundo Trump vem expressar o esgotamento desse impulso missionário.
Isto é, os Estados Unidos não podem continuar como estavam, porque tiveram fracassos retumbantes como no Iraque e no Afeganistão, entre outros, porque mais do que um ordenador do sistema em muitas questões e países, tornaram-se um desordenador, e porque têm enormes problemas internos.
Consequentemente, penso que teremos um Trump muito mais marcado pela primazia da política interna e pela concentração da política externa em torno da China. Como conter e reverter a expansão da China? Então certamente trará fortes tensões.
Dito isto, faço uma segunda observação: se a pergunta é sobre tarifas, se a pergunta é quando começou o protecionismo dos Estados Unidos, a data é clara: com Obama, em 2008, depois da crise financeira. E em 2012, Obama pronuncia provavelmente o discurso mais protecionista sobre o Estado da União que um presidente já proferiu nos últimos 50 anos. Serão os próprios Estados Unidos que tentarão estancar ou limitar o seu declínio relativo (não colapso, não decadência).
O que Trump faz no seu primeiro mandato? Bem, exacerba isso. E quando você olha para as restrições mais as tarifas que a administração Biden impõe, supera o governo de Trump. Então, o que vamos ver agora com o segundo Trump é um fortalecimento de algo que marcou duas décadas dos Estados Unidos.
E aqui faço um terceiro comentário, muito mais breve: se olharmos para as experiências históricas, e a melhor neste caso me parece ser a do Reino Unido, no momento em que se tornou mais protecionista, entre finais da década de 1920 e toda a década de 1930, nessa época começou seu declínio relativo real e a ascensão muito assertiva dos Estados Unidos. O que quero dizer com isso? Que quando uma potência entra em declínio torna-se protecionista, mas quando está em expansão é defensora do livre mercado. E no que está por vir não veremos de forma alguma os Estados Unidos serem defensores do livre mercado.
Além das coordenadas econômicas, há a questão da arquitetura institucional e, junto com as ideias protecionistas, cresce uma corrente de extrema-direita que impacta a discussão geopolítica e propõe uma ordem pós-liberal. O que acontecerá com as instituições de governança global estabelecidas depois da Segunda Guerra Mundial? Que tipo de ordem você imagina que está chegando?
Eu diria que temos um multilateralismo dos grandes números e temos um multilateralismo dos pequenos números, que nas relações internacionais chamamos de minilateralismo. A crise do sistema das Nações Unidas é evidente e já dura há pelo menos três décadas. Esta crise não é nada nova, porque é uma instituição que não foi reformada após o fim da Guerra Fria, quando uma voz diferente emergiu do Sul Global e começaram a aparecer novos protagonistas. Por sua vez, explodiu o sistema de vetos (seja da Rússia ou dos Estados Unidos, basicamente os dois grandes vetadores em série), com o qual as questões de paz e segurança foram postas em dúvida e não houve progresso em quase nenhuma questão através das Nações Unidas, pelo menos desde o final dos anos 1990.
Outra instituição com grandes números é a Organização Mundial do Comércio, que foi destruída pelos Estados Unidos e especificamente por Trump, que queria um conjunto de reformas tão substantivas que impusesse obrigações a outros países, ou chantageasse outros países, com as suas restrições. O sistema da Organização Mundial do Comércio está extremamente enfraquecido, ninguém o invoca, ninguém o procura, não resolve conflitos, não faz nada. No âmbito mais regional, a OEA (Organização dos Estados Americanos) já está quase no limite da falta de legitimidade, especialmente com estes dois últimos mandatos do secretário (Luis) Almagro.
Pois bem, isto significa que as arquiteturas institucionais dos grandes números estão fraturadas, enfraquecidas ou erodidas? Sim. No entanto, após a guerra contra o terrorismo de 2001, iniciada pelos Estados Unidos, um grupo de países liderados pela China e pela Rússia criou a Organização de Cooperação de Xangai, com países da Ásia. Para quê? Para dizer aos Estados Unidos: a sua guerra termina no Afeganistão, não penetra no coração da Ásia, à Ásia Central, ao Sudeste Asiático não chegarão.
Em meio a tudo isso, por exemplo, é criado um instrumento de cooperação trilateral entre os países do Sul, o IBAS, que reúne Índia, Brasil e África do Sul, que abre a cooperação Sul-Sul de uma forma sem precedentes até então. O BRICS emerge e se projeta, o que também reúne um conjunto numérico limitado. Na América do Sul é criada a Unasul.
Em suma, mecanismos multilaterais com eficiências diferentes (a Unasul entrou em colapso na América Latina), mas há uma arquitetura a nível sub-regional e de pequenos números, que continua sendo influente e demonstra este rearranjo de poder.
Agora, a segunda parte da sua pergunta foi: o que o segundo Trump vai fazer? Bem: o primeiro Trump deixou a UNESCO; o primeiro Trump saiu da Comissão de Direitos Humanos da ONU; o primeiro Trump abandonou o Acordo de Paris sobre questões ambientais; e o primeiro Trump, no seu último semestre, apelou à saída da Organização Mundial da Saúde. Estes são os Estados Unidos para os quais o multilateralismo é disfuncional.
Trump vai enfatizar o unilateralismo, por um lado; e implantará o bilateralismo, por outro. Por quê? Existem dois estilos transacionais entre países. Dito em inglês: rules or deals, regras ou acordos. Trump pende para este último. Ele quer acordos bilaterais, onde é preciso ajustar-se às suas preferências. As regras o incomodam, o estreitam, o obrigam e o condicionam. Portanto, não veremos uns Estados Unidos que procurem revitalizar a Organização Mundial do Comércio, ou reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou fortalecer o Tribunal Internacional de Justiça, ou tornar o Tribunal Penal Internacional mais eficaz. Tudo o que mais afeta a nós, o Sul Global, porque sem regras entramos num mundo hobbesiano, onde há um ator predominante que joga no limite do uso da força em cada um dos temas em questão, que são os Estados Unidos.
Queríamos justamente perguntar-lhe sobre o Sul Global, porque nos últimos meses tem-se falado do ressurgimento deste ator, especialmente a partir da ampliação dos BRICS. Em primeiro lugar, como define o próprio conceito de Sul Global? E que lugar você acha que pode ocupar no que está por vir?
Vou me arriscar um pouco para responder a esta pergunta num sentido mais profundo do que a atual conjuntura, com o espírito de tentar compreender como a partir da América Latina vemos ou nos comprometemos com o Sul Global. Quem inventou o termo América Latina? Foi um economista francês, Michel Chevalier, na década de 1830. Não foi um termo criado por nós; pelo contrário, nós o recebemos, aceitamos e adotamos. Naquele momento, tinha a ver com a divisão que os franceses fizeram entre o mundo anglo-saxão e o mundo latino, onde a Europa tinha realmente a possibilidade de construir uma ponte com esta parte do Atlântico.
Depois, o termo Terceiro Mundo também foi introduzido por um francês, o demógrafo Alfred Sauvy, em 1952. Também não foi um termo que nós criamos; essa condição nos foi atribuída. E o termo Sul Global é, na verdade, de um estadunidense, o ativista Carl Oglesby, que o usou em 1969 para descrever a política de predomínio e domínio militar dos Estados Unidos a partir do Vietnã. Também não foi criado pelo Sul, mas derivado para o Sul.
Assim, um primeiro elemento que me parece importante é a ausência de autoidentificação ou criação de conceitos próprios que nos ajudem a situar o lugar onde estamos. Recebemos conceitos, adotamo-los e adaptamo-los, e utilizamo-los para nos projetarmos e interagirmos, mas este mundo continua a ser e ainda hoje é cada vez mais hierárquico, mais assimétrico. Este problema ao nível das ideias me parece fundamental.
O segundo aspecto é que a América Latina tem uma particularidade que outras partes do Sul Global não têm, porque somos a parte meridional do Ocidente. A nossa independência se deu no século XIX e as instituições que herdamos eram cópias fiéis de instituições que vieram dos países que hoje chamaríamos centrais. Temos valores, princípios e um conjunto de elementos que nos identificam com o Ocidente. Mas ao mesmo tempo fazemos parte do Sul Global, num cenário de profunda assimetria.
Esta dupla condição da América Latina é fundamental. Para mim, o exemplo mais emblemático são as votações de todos os nossos países relativamente à invasão russa da Ucrânia. A grande maioria votou contra a invasão, porque estavam em debate a soberania, a integridade territorial e a resolução pacífica de controvérsias. Pois bem, quando a Europa e os Estados Unidos exigem sanções, nós dizemos não, parem, não é para aí que vamos, fazemos parte do Sul Global e não acreditamos em sanções porque as sanções não resolvem nada.
Por fim, qual é a perspectiva que a América Latina tem? Chega-se à conclusão de que o Sul Global, que é heterogêneo, muito diverso, com países pequenos, grandes, médios, é uma condição geopolítica e política, uma forma de argumentar no cenário internacional, e permite ter sociedades com um conjunto de países que beneficiam seus interesses nacionais. É aí que parece quase incompreensível a afirmação categórica que Milei faz, com suas votações, suas medidas e seus anúncios, de que pertencemos totalmente ao Ocidente.
Não, nós fazemos parte do Ocidente, mas também do Sul Global. E quando fazemos esse divórcio, não entendemos o que está acontecendo no mundo, porque temos um mundo minúsculo, típico de quem tem lente microscópica, e aqui se necessita de um telescópio, para olhar a complexidade, a diversidade.
Como você vê os diferentes países latino-americanos se comportando no novo cenário? Aparece uma Argentina que vai estar muito claramente alinhada com os Estados Unidos, outros vão aprofundar o seu alinhamento com o eixo oriental, especialmente a Venezuela, e surge uma pergunta sobre países como o Brasil ou a Colômbia, que mantêm uma ideia de não alinhamento ou vinculação com ambos os polos, como se tentassem jogar em campos diferentes, mas que, face a um endurecimento da Casa Branca, pudessem voltar-se mais decisivamente para os BRICS.
Neste ponto devo apresentar outra tese ou conceito que propusemos com colegas como Roberto Russell, Mónica Hirst, Ana María Sanjuan, ou seja, não é aconselhável transferir a perspectiva própria da Guerra Fria, nem devemos assumir que a China faz parte do Sul Global. A China é, para nós, outro Norte. O fato de utilizar a linguagem do Sul Global, de expressar o termo Sul Global nas suas comunicações, não significa que represente os interesses do Sul Global. Ela representa seus interesses, em primeiro lugar.
Ou seja, temos dois Nortes. Um muito coeso e centrado na liderança dos Estados Unidos, que não se limita à sua geografia ocidental porque inclui o Japão, a Coreia do Sul, também a Oceania, tem Israel, e é uma potência que se recusa a perder influência ou voz. No outro Norte, a China é quem mais expressa um projeto, e em torno de Pequim há um grupo de países que sentem que é conveniente para eles aderirem, porque os seus objetivos podem coincidir com os da China e também com os seus interesses.
Se assim for, haverá países que orbitam mais em torno do primeiro Norte, outros que se juntarão ao segundo, enquanto alguns tentarão jogar uma solução mais autônoma, mais equilibrada. O México não tem alternativa senão tomar os Estados Unidos como referência para tudo. Temos que colocar isto em números: o investimento total dos Estados Unidos no México é de 130 bilhões de dólares, o investimento estadunidense na Argentina não passa dos 12,6 bilhões de dólares; o comércio bilateral entre o México e os Estados Unidos no ano passado foi de 807 bilhões de dólares, ultrapassando inclusive o comércio entre a China e os Estados Unidos. O fentanil causou 81 mil mortes nos Estados Unidos no ano passado, enquanto o número total de mortes estadunidenses no Vietnã + Iraque + Afeganistão foi de 72 mil num único ano. O México não tem outro destino, quer Claudia Sheinbaum queira ou não, esse é o seu Norte.
A Argentina atual orbita em torno dos Estados Unidos, mas isso não significa que não possa “desorbitar-se” ou buscar alternativas no futuro. A Venezuela e Cuba, por sua vez, orbitam muito mais perto da China e da Rússia. E se eu olhar para o Brasil? O Brasil é a maior tentativa de buscar um equilíbrio que lhe permita conquistar nichos de relativa autonomia. Tem uma visibilidade internacional que o ajuda, uma projeção de reconhecimento, mas também tem muitas limitações internas. E se Bolsonaro retornar e vencer passará a orbitar em torno dos Estados Unidos.
O que quero dizer é que veremos países latino-americanos orbitando de maneiras diferentes em momentos diferentes, exceto o México, que não tem outro destino. Depende das conjunturas nacionais, das coligações de governo, da capacidade material, dos graus de reconhecimento e reputação internacional, etc. Onde coloco a Colômbia nisso? A Colômbia vive a sua primeira experiência progressista desde o governo de López Pumarejo em 1936. Eu ainda não daria como certa a continuidade de rumo a Petro, e se houvesse uma inversão o horizonte voltaria a ser os Estados Unidos.
Os colombianos têm uma doutrina de política externa derivada de um ex-chanceler e ex-presidente, Marco Fidel Suárez: quando perdem o Canal do Panamá, ou mais precisamente quando os Estados Unidos roubam o Canal do Panamá, este ex-chanceler e ex-presidente define que a política externa da Colômbia deveria ser o respice polum, expressão latina que significa “olhar para o norte”, ou seja, para os Estados Unidos. Desde o início do século XX até a chegada de Petro, todos os governos deste país latino-americano respeitaram esse princípio. O Petro, por enquanto, é uma anomalia, mas temos que ver até quando ele aguenta.
Você acha que a internacional reacionária continuará a se expandir agora com Trump na Casa Branca?
A internacional reacionária não é um fenômeno passageiro; ela veio para ficar e para ficar muito tempo. Em grande parte porque não existem alternativas na ala progressista, que nos últimos 30 anos expôs deficiências, não foi capaz de gerar novas alianças, não fez esforços governamentais que se distanciassem de práticas próximas ao neoliberalismo, mesmo em questões econômicas.
Acredito que a reação internacional reúne um grupo de líderes diferentes, com origens diferentes, que utilizam instrumentos diferentes, mas são da mesma família. Muitas vezes se diz que Trump não é Milei, ou que Milei não é Bolsonaro. Claro que eles usam canais muito diferentes para chegar ao poder, têm estilos diferentes em alguns aspectos, mas na essência trata-se de retroceder, restaurar uma ordem perdida, consideram que existe um grupo de homens maus que colocaram o Ocidente a perder. Por essa razão, é preciso, na visão deles, regenerar valores, costumes, hábitos, promover estratégias punitivas contra quem não aceita as regras do jogo, etc.
O que nos ajudaria a encontrar as diferenças é distinguir o termo globalização do termo globalismo, entendendo a globalização como um fenômeno basicamente econômico, material, e o globalismo como um conjunto de valores, orientações e princípios. Eu diria que Trump compartilha com Milei questões relativas ao globalismo, ou seja, acreditam em valores semelhantes: as questões ambientais não lhes interessam, as questões de gênero são irrelevantes, os problemas identitários são supérfluos, a democracia é instrumental, os direitos humanos são um adendo que o mundo conseguiu num determinado momento.
Agora, Trump é um adversário de alguns elementos da globalização, daí o seu enorme protecionismo, ao passo que Milei é a antítese, ele é pró-globalização: façamos uma abertura total, desregulamentemos tudo, privatizemos tudo o que existe. Então, havendo um núcleo duro de pontos em comum entre Kast, Bolsonaro, Milei, Trump, Meloni, Wilders, também temos que desagregar onde há distâncias ou diferenças.
Há um ponto em comum muito forte que não assinalamos em ambos, Trump e Milei: nenhum dos dois dá crédito às relações entre governos, de jeito nenhum. E o multilateralismo é insuportável para ambos. O que interessa a eles são as relações de pessoa para pessoa, poderosos com poderosos. E neste sentido devemos ver como nesta eleição nos Estados Unidos não foi apenas Elon Musk que teve um papel fundamental, mas um conjunto de atores do Vale do Silício. Musk, Thiel, Karp, Horowitz, e posso citar outros que deixaram de confiar no Partido Democrata, veem este partido como hiper-regulador e precisam de alguém que diminua todas as regulamentações possíveis para terem acesso a melhores negócios. E são caras muito poderosos.
As 10 Big Tech dos Estados Unidos possuem uma riqueza equivalente ao Produto Interno Bruto da China. Uma das coisas que Trump e Milei compartilham é que viram isso, apostaram nisso e confiam nisso. Nós sempre olhamos para Washington, onde está a política, e para Nova York, onde estão Wall Street e as finanças. Acreditamos que aí está o locus, o centro do poder estadunidense. E sem dúvida as finanças são importantes, assim como a política é essencial.
Mas há dois novos centros de poder que serão decisivos para a América Latina nos próximos anos, e devemos saber manejá-los: um é o Vale do Silício, na Califórnia, sede das grandes empresas de tecnologia, com o impacto e a projeção das suas plataformas, a sua incidência, as suas exigências e as suas chantagens; e o outro é a Flórida, onde está o Comando Sul e o grupo mais homogêneo da extrema-direita dos Estados Unidos. A Flórida e o Vale do Silício serão cruciais nos próximos anos para a América Latina.
Estes dias lembrei-me do livro de Eric Hobsbawm, Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), onde o autor levanta a ideia do breve século que começa com a revolução russa de 1917 e termina em 1989 com a queda do Muro de Berlim. É a era das revoluções. Não é por acaso que a partir desse momento e até muito recentemente, ou seja, nos últimos 30 anos, a própria ideia de revolução parece ter ficado fora de cena. Até que aparece a extrema-direita com uma marca reacionária, mas disruptiva. Não seria hora de a ideia revolucionária emergir também pelo lado da esquerda, ou seja, com sentido emancipatório?
Olha, eu concordo plenamente com você. Mas eu mudaria os termos num ponto: diria que se o século XX foi a era das revoluções, nesta primeira metade do século XXI assistimos à era das contrarrevoluções. Porque não há nenhum elemento substancial no sentido democratizante, redistributivo, que busque o bem-estar coletivo, que projete a ideia de uma sociedade superadora. O que existe é um festival de individualismo, de hedonismo, um macarthismo redobrado.
A vocação disruptiva da extrema-direita manifesta-se de diversas maneiras e uma delas é a tentativa de desarmar a diplomacia que Milei está colocando em prática. É um gesto de forte radicalidade.
Sim, uma coisa é a política externa, que é a sua estratégia, e outra é a diplomacia, que é um meio, um instrumento. O que Milei pratica é a antidiplomacia, que se baseia no enfraquecimento das instituições, neste caso o papel da chancelaria na política externa. Mas vai mais longe, é o peso dos interesses pessoais sobre os interesses nacionais, o peso das preferências ideológicas e dogmáticas sobre as preferências coletivas de uma sociedade. E vemos isso em cada um dos movimentos, das decisões, das votações da Argentina, coisas impensáveis, que vão custar muito caro para o país no futuro, se vier muito capital, se houver muito investimento, aconteça o que acontecer, sinto que o custo vai ser gigantesco.
A Argentina, como a maioria dos países da América Latina, tem um DNA de sua política externa: compromisso com o multilateralismo, defesa do regionalismo e promoção do direito internacional. Quando você tira isso, quebra o seu DNA. O Chile tem isso, o Brasil tem isso, é o mínimo denominador comum de todos nós. E o que fazemos é assumir posições extremas, porque já nem votamos com os Estados Unidos e Israel, mas votamos sozinhos no mundo. Contra os direitos dos povos indígenas, contra a defesa das crianças e das mulheres; somos o único país que abandona a COP29. Isso é improvisação, ignorância ou tem um projeto por trás disso? O meu argumento é que a reformulação total que Milei promove na política externa é o espelho do reordenamento social, político e econômico que ele procura dentro da Argentina.