12 Outubro 2024
O multilateralismo parece estar inscrito no DNA da diplomacia do Brasil desde seus inícios como país independente. O "retorno" brasileiro ao cenário internacional, após a gestão bolsonarista, enfrenta um mundo cheio de perigos e incertezas, em que a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas é uma das tarefas pendentes para enfrentar os desafios em curso.
O artigo é de Antonio Jorge Ramalho, Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, ocupou cargos de assessoria e gestão nos ministérios da Defesa, das Relações Exteriores e da Educação, bem como na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, publicado por Nueva Sociedad, 10-10-2024.
"O Brasil voltou!" Essa expressão marcou o início do terceiro mandato, não consecutivo, de Luiz Inácio Lula da Silva em 2023. Selou também um forte contraste com a desastrosa condução da política externa brasileira durante a gestão de Jair Bolsonaro – uma espécie de parêntese agressivo, isolacionista e inconsequente[1] – em uma política externa caracterizada por um profissionalismo pragmático e pelo respeito ao direito internacional desde a independência do Brasil há dois séculos. Esse "retorno" brasileiro ao concerto internacional gera grandes expectativas, mas também apresenta importantes desafios diplomáticos. O mundo se tornou mais complexo e conflituoso, e o espaço de atuação política foi reduzido substancialmente[2]. Nesse contexto, emergem questionamentos sobre os interesses e capacidades do país, bem como sobre suas possíveis alianças.
O Brasil defende uma ordem internacional baseada em normas e não na força. Assim o demonstrou durante a criativa e equilibrada atuação brasileira na Presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas em 2023, quando ocorreu o ataque terrorista do Hamas a Israel e a desproporcional resposta israelense em Gaza.
Um mundo baseado em regras e na solução pacífica dos conflitos interessa a um país em desenvolvimento, com grandes desafios socioeconômicos internos e carente das capacidades militares das grandes potências. O Brasil sempre compreendeu isso: a concertação diplomática é parte de sua própria identidade no cenário internacional. A primeira decisão do primeiro chanceler brasileiro, José Bonifácio, foi propor às Províncias Unidas do Rio da Prata (hoje Argentina) organizar uma confederação, para, com outros governos da América espanhola, estabelecer uma "aliança ofensiva e defensiva", reconhecendo mutuamente suas independências, a fim de evitar as tradicionais políticas das potências europeias, acostumadas a dividir para governar. Por mais de uma década, o país havia sido o centro do Império português e, desde 1815, parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Independente em 1822, o Brasil nasceu com uma "vocação multilateral", baseada na combinação da vontade de participar decisivamente nas decisões globais e do savoir-faire para fazê-lo[3].
Em outras palavras, se o Brasil "voltou", o fez em defesa do multilateralismo. Há boas razões pelas quais urge reformar o multilateralismo no cenário internacional contemporâneo, em particular o Conselho de Segurança das Nações Unidas, razões que serão discutidas no próximo apartado. Nas linhas seguintes, discute-se essa vocação a partir de uma perspectiva histórica, sublinhando suas características permanentes. Uma breve conclusão aponta os desafios da atual ação exterior brasileira na promoção do multilateralismo.
O multilateralismo enfrenta uma grave crise. O sistema criado em San Francisco e Bretton Woods enfrenta o dilema de "reforma ou ruptura"[4]. Está claro que o mundo se tornou multipolar, mas a dinâmica dessa multipolaridade ainda é muito opaca. No entanto, a alternativa ao multilateralismo é a força. Em um mundo marcado pela competição entre grandes potências, a crescente volatilidade e o amplo acesso a tecnologias disruptivas, além de carecer de resiliência diante de múltiplas crises, os riscos são evidentes. A relevância do tema é óbvia, e aí sobressai a importância da possível contribuição brasileira para o seu aperfeiçoamento.
Em um mundo perigoso, tendente ao conflito, grandes atores estatais possuem armas de destruição em massa e se mostram dispostos a usá-las. Os instrumentos de poder são redistribuídos entre eles rapidamente, o que gera instabilidade. Enquanto as estruturas de governança global estabelecidas desde 1945 sofrem progressiva erosão em seus fundamentos, legitimidade e eficácia, não está claro se surgirão instituições concorrentes ou se o mundo retornará a um ambiente hobbesiano.
Os fatores de transformação são variados. As inovações tecnológicas possibilitam mudanças fundamentais nas capacidades militares dos Estados. Por exemplo, a hipervelocidade pode tornar obsoletos, da noite para o dia, sofisticados sistemas de defesa antiaérea. Após um limiar tecnológico, a computação quântica pode anular os mais avançados sistemas de criptografia. A inteligência artificial utilizada em veículos não tripulados, aéreos ou submarinos, já supera a expertise humana no combate. Adicionalmente, essas evoluções ocorrem em um ambiente desprovido de regulamentação apropriada.
Os Estados precisam redefinir seus projetos de força, e as Forças Armadas, suas estruturas organizacionais. Mas não está claro qual modelo adotar. A Guerra Fria foi caracterizada pela consolidação da economia industrial, em parte devido à transferência de inovações dos setores espacial e armamentista para a indústria civil. No pós-Guerra Fria, a economia da informação é mais relevante, e nela a transferência ocorre no sentido contrário: do setor privado para o militar. Esse processo redistribui o poder dos Estados para as organizações privadas e para os indivíduos, o que torna o mundo mais complexo, mais fluido, mais acelerado.
Como se vê diariamente na Ucrânia, Gaza e Iêmen, combatentes inovadores utilizam produtos comerciais comprados online por algumas centenas de dólares para construir aparelhos capazes de destruir modernos sistemas de armas desenvolvidos ao longo de décadas. Um drone comercial com carga explosiva pode funcionar como um míssil, destruindo um carro de combate de milhões de dólares; um cidadão com um smartphone pode se tornar um informante ou um combatente. A economia dos conflitos armados, assim como a base logística de defesa, mudou profundamente como consequência das inovações tecnológicas e da globalização.
Trata-se também de um mundo marcado pela crescente emergência de atores não estatais nas dinâmicas de poder global, mediante o acesso a inovações que favorecem sua atuação em escala mundial, em competição com os Estados nacionais. A guerra na Ucrânia ilustra o nível de dependência do setor privado que um Estado pode atingir, começando por suas comunicações estratégicas.
Em um contexto conflituoso, as economias continuam integradas, os fluxos de informação e de ativos financeiros mantêm os mercados em funcionamento e as organizações criminosas traficam armas, drogas, pessoas e biodiversidade em escala global, valendo-se da lavagem de dinheiro e da corrupção para se evadirem, refugiando-se em paraísos fiscais e na dimensão intangível do espaço cibernético. As economias e sociedades interdependentes carecem de governança eficaz, os governos não protegem a cidadania da fome, do medo e da violência e o Conselho de Segurança das Nações Unidas não assegura a paz e a segurança no âmbito internacional.
Esse diagnóstico não é novo. Há 20 anos, quase se conseguiu realizar uma reforma significativa do Conselho. A partir de uma agenda proposta pelo relatório do Grupo de Alto Nível sobre as Ameaças, os Desafios e a Mudança, Um mundo mais seguro: a responsabilidade que compartilhamos[5], um longo processo de negociação assentou as bases para uma reforma que servisse ao aperfeiçoamento do multilateralismo. Havia esperança: a Organização das Nações Unidas (ONU) completava 60 anos, os Estados Unidos apoiavam a inclusão da Alemanha e do Japão em caráter permanente no Conselho de Segurança e a agenda liberal incorporada aos objetivos de desenvolvimento para um novo milênio legitimava-se internacionalmente.
Os genocídios de Ruanda e Srebrenica, assim como o fracasso em consolidar regimes internacionais nas conferências da década de 1990, forçaram um diálogo maduro sobre as responsabilidades compartilhadas e a necessidade de conciliar segurança humana e segurança nacional. Além dos objetivos do milênio, substituídos pelos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), desenvolveram-se operações de paz robustas, justificadas pela Responsabilidade de Proteger, aprovada na Assembleia Geral da ONU em 2005. Por sua vez, o sucesso da experiência em Timor Leste alimentou esperanças de que se poderia apostar na capacidade da ONU de promover mudanças substantivas mediante esforços diplomáticos[6]. Finalmente, discutia-se seriamente a possibilidade de reformar o Conselho, especialmente quando o Brasil e a Índia se associaram à Alemanha e ao Japão, constituindo o G-4, em estreita articulação com a União Africana, com o objetivo de ampliar a legitimidade de um reformado e ritual Conselho de Segurança. Um par de anos depois, França e Reino Unido apoiaram a reforma com a inclusão do G-4, a favor de uma governança internacional mais eficaz.
A reforma não ocorreu, mas o argumento em favor de compartilhar responsabilidades para produzir um mundo mais seguro estava lá. O referido relatório sintetizou avanços relativos à agenda de reforma da ONU. Em suas páginas, consolidou-se o diagnóstico de um mundo profundamente interdependente e carente de instâncias de governança eficazes e legítimas, e reconheceu-se a necessidade de enfrentar ameaças e vulnerabilidades, simultânea e sinergicamente, nos âmbitos global, regional e nacional, compartilhando responsabilidades entre países ricos e pobres, fracos e poderosos, já que ameaças terroristas, sanitárias (15 anos antes da pandemia de COVID-19) e ambientais afetam a todos indistintamente. Finalmente, sublinhava-se o vínculo entre segurança e desenvolvimento: sem esperança no futuro, a população dos países pobres tende a emigrar para os países mais desenvolvidos e torna-se mais vulnerável diante das organizações criminosas transnacionais. É o mundo em que vivemos hoje.
Para o Brasil, é um tema recorrente. O vínculo entre segurança e desenvolvimento está presente nos discursos brasileiros na abertura da Assembleia Geral da ONU pelo menos desde 1960, complementando a crítica ao aumento da desigualdade enunciada em 1952[7]. Os dilemas de um mundo interdependente sem governança legítima e eficaz impõem refundar o multilateralismo. É preciso concretizar a agenda política presente nos ODS, no que concerne à segurança humana; é preciso evitar conflitos armados entre grandes potências, em prol da segurança nacional. A agenda existe, mas as estruturas de governança carecem de apoio político. O orçamento da Secretaria da ONU em 2024 foi de 3,590 bilhões de dólares[8]. Em contraste, o gasto militar mundial foi de 2,4 trilhões de dólares em 2023.[9]
Nas últimas duas décadas, os conflitos se multiplicaram. Fracassou a tentativa de transformar a Rússia em parceiro estratégico da União Europeia, uma tentativa antes considerada "a tarefa mais importante, mais urgente e mais difícil que a UE enfrenta no início do século XXI"[10]. A ideia de construir a paz com base na economia e na infraestrutura fracassou. Se não havia sido suficiente a invasão da Geórgia em 2008, a guerra na Ucrânia (2014 e 2022) esclareceu os termos da relação com a Rússia. Paradoxalmente, isso contribuiu para fortalecer a UE, apesar do Brexit (2017-2020).
Mas o problema não se limita à Europa. A "guerra contra o terror" gerou mortes e desordens políticas. A "guerra contra as drogas" fomenta a expansão do crime organizado internacional. Às guerras na Síria e no Iêmen, e na Ucrânia e Gaza, somam-se conflitos no Sahel e em outras regiões africanas. A proliferação nuclear se estendeu e se materializou em corridas armamentistas no Oriente Médio e na Ásia. A humanidade compartilha vulnerabilidades associadas às mudanças climáticas, pandemias e crises sistêmicas. É um mundo mais violento, instável e perigoso.
O progressivo abandono das estruturas de governança "liberais" pelos EUA completa o quadro, no contexto da ascensão da China, o que alguns consideram uma potencial nova Guerra Fria[11]. A agressiva reação de Donald Trump à ascensão chinesa, agora um tema bipartidário, mudou a política externa norte-americana, que substituiu a projeção de longo prazo do poder estrutural por um modelo transacional de curto prazo. Um eventual segundo mandato de Trump seria ainda mais mercantilista e inconsequente, apontando para um contexto parecido com o período entre guerras do século XX. Nesse contexto, os europeus ficaram surpresos com o que consideram o "retorno da geopolítica". Talvez devido ao sucesso do seu processo de integração, que proporcionou à Europa a experiência singular de sete décadas sem uma grande guerra, foi possível sonhar com um novo padrão nas relações internacionais. Um sonho ingênuo e otimista: a Realpolitik e a geopolítica jamais deixaram de informar as estratégias de potências médias e grandes. O mundo registra o maior número de conflitos desde 1945[12]. A complexidade de cada um deles aponta para o risco de sua universalização.
Trata-se também de um contexto marcado pela interdependência consolidada nas últimas décadas, a qual vincula economias e sociedades de maneira profunda e complexa, o que contribui para um aumento da vulnerabilidade[13]. Nem mesmo as sucessivas e variadas crises globais (financeira, em 2008; militar, em 2014; sanitária, em 2019; e geopolítica, em 2022) reduziram essa interdependência. É verdade que os governos promovem tentativas de reorganização produtiva via nearshoring[14] e friendly-shoring[15], mas isso parece afetar menos as cadeias globais de valor do que as decisões de atores privados, motivados por processos de inovação.
Trata-se, enfim, de uma conjuntura marcada pela necessidade de renovar as instituições globais, tornando-as mais legítimas e eficazes, capazes de facilitar a solução pacífica de controvérsias. Devido à relevância dos temas securitários, a reforma do Conselho de Segurança torna-se cada vez mais urgente. A existência de armas de destruição em massa, em especial a proliferação nuclear, a redução dos ciclos de inovação em armas convencionais (hipervelocidade, drones, computação quântica e guerra eletromagnética, entre outros instrumentos de proteção de força) e o desenvolvimento da inteligência artificial sublinham a importância de fortalecer o multilateralismo. Trata-se de voltar à agenda tradicional da política externa brasileira. O próximo capítulo caracteriza, em linhas gerais, o multilateralismo na política externa brasileira, com ênfase na sua pretensão de ocupar um assento permanente em um Conselho de Segurança ampliado, mais legítimo e eficaz.
A vocação multilateral do Brasil se explica a partir de três elementos: sua identidade nacional, seus interesses como Estado soberano e suas necessidades como país em desenvolvimento. Esses elementos se referem a processos históricos que se influenciam mutuamente. Talvez devido à herança portuguesa, o Brasil se tornou independente com uma autoimagem de ator global. Pelo menos desde o século XVII, as elites locais participaram do comércio, da política e das guerras internacionais, defendendo seus próprios interesses e o que se construiu como ideia de Brasil no mundo. Seus movimentos às vezes serviram aos interesses da Coroa portuguesa, como no caso da expulsão dos holandeses de Luanda por Salvador de Sá, em 1648, financiada majoritariamente pela colônia, no início da reconquista de Angola que culminou em 1865, em Ambuila. Cem anos depois, Alexandre de Gusmão seria o principal defensor da "causa de Portugal e do Brasil e dos interesses bem entendidos da América" nesse debate (Tratado de Madri[16]), na opinião de José Maria da Silva Paranhos Jr., barão do Rio Branco. No início do século XX, o pai da diplomacia brasileira aproveitaria um contexto internacional favorável às negociações diplomáticas para materializar em tratados as fronteiras brasileiras, estabelecendo relações pacíficas e entendimentos duradouros sobre limites com dez vizinhos.
Além da região, consolidando a visão global do Brasil, Rio Branco percebeu a oportunidade de afirmar a defesa do multilateralismo na Segunda Conferência de Paz em Haia, para onde enviou o influente jurista, político e escritor Ruy Barbosa para defender o princípio de igualdade entre os Estados soberanos, toda vez que a justiça recíproca entre Estados grandes e pequenos é "o fundamento mais firme das grandes amizades"[17]. Em outras palavras, no início do século XX, o Brasil valeu-se do multilateralismo e do direito internacional para se proteger das grandes potências e promover seus interesses, utilizando argumentos jurídicos típicos de democracias liberais. Assim como nessas democracias os cidadãos são tratados de igual maneira perante a lei, também aos Estados soberanos aplica-se o princípio de igualdade perante o direito internacional.
Em um episódio importante, a política externa brasileira abandonou sua visão global e a tradicional defesa do tratamento equânime dos Estados. Devido a disputas políticas internas, aceitou a tese do tratamento diferenciado dos Estados em troca da expectativa de integrar permanentemente o Conselho da Liga das Nações. No entanto, isso resultou em um fracasso e em uma valiosa lição de princípios. O Brasil havia participado da criação da Liga das Nações, onde integrou o Conselho como membro temporário junto à Bélgica, Grécia e Espanha. Após a inclusão da Alemanha no Conselho e seu fracasso em integrá-lo como membro permanente, o Brasil denunciou o tratado em 1928. Enquanto isso, continuou ativo em instâncias internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ), utilizando os fóruns diplomáticos para defender seus interesses. Após ter participado das duas grandes guerras do século XX, o Brasil atuou como membro fundador das organizações criadas para coordenar a reconstrução das relações internacionais nos períodos subsequentes. Mas a retirada do apoio dos EUA à concessão de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança tornou essa demanda uma "campanha permanente", que sublinha não somente o aspecto jurídico da igualdade dos Estados perante o direito internacional, mas também o vínculo entre a legitimidade das organizações internacionais e sua eficácia política[18].
Sem um assento permanente no Conselho, o Brasil recebeu o privilégio de iniciar anualmente os debates na Assembleia Geral da ONU, sublinhando a importância de enfrentar conjuntamente desafios globais como a fome e o desenvolvimento socioeconômico, condições para a paz no cenário internacional. De fato, se em 1963 João Augusto de Araújo Castro afirmou a condição autônoma e independente do Brasil como um instrumento de fortalecimento do sistema interamericano, um pilar da paz e da segurança internacional em defesa do desarmamento, do desenvolvimento e da descolonização[19], em 2023 o Brasil afirmará na Presidência do Conselho de Segurança sua capacidade de atuar à margem da polarização que paralisa esse organismo[20].
A defesa do multilateralismo funciona, assim, como instrumento de construção de uma liderança às vezes questionada, que precisa reafirmar-se continuamente mediante a prestação de serviços a outros países. Oficialmente, o Brasil se vê como um país "não só disposto, mas também capaz de assumir maiores responsabilidades no âmbito da paz e da segurança internacionais"[21]. Por sua vez, a ONU emerge como locus privilegiado e símbolo de um novo tempo, que o Brasil considera ter ajudado a construir com sangue, em defesa do "Ocidente", e com sabedoria política, evitando, por exemplo, que a América do Sul se inclinasse para o Eixo durante a Segunda Guerra Mundial.
A reforma do Conselho de Segurança está vinculada, assim, ao fortalecimento do multilateralismo em um sentido amplo, dado que não se pode falar de paz e segurança sem promover o desenvolvimento socioeconômico global, reduzindo as desigualdades entre os Estados e no seio das sociedades, e enfrentando de maneira coordenada as ameaças à vida na Terra, particularmente associadas às mudanças climáticas. Como afirma a ONU, compartilhamos responsabilidades. Segurança internacional e segurança humana estão, portanto, intrinsecamente vinculadas, especialmente em um contexto de interdependência global, que só foi possível construir com base no sistema multilateral criado após 1945.
No início do século XXI, o Brasil insistiu em fortalecer a Organização Mundial do Comércio (OMC) quando a China fomentava a Iniciativa do Cinturão e Rota e os EUA defendiam os tratados multilaterais excludentes – o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, em inglês) e a Parceria Transatlântica para Comércio e Investimento (TTIP) –. O esforço foi insuficiente, mas válido. Diante da paralisia das organizações internacionais frente aos desafios diplomáticos ou socioeconômicos, o Brasil tenta construir consensos em fóruns de diálogo como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e o G-20, utilizando-os como instrumentos de apoio às organizações estabelecidas[22]. Isso contribui para mantê-las vivas, embora fracas, para reformá-las, legitimando e fortalecendo o multilateralismo no âmbito global. O Brasil o faz por convicção e por interesse. De maneira pragmática, o Brasil atua onde é possível e avança em uma agenda coerente com os ODS nos fóruns disponíveis. Por exemplo, na Presidência do G-20, o Brasil prioriza o combate à fome, à pobreza e à desigualdade, o desenvolvimento sustentável e a reforma da governança global[23].
Em síntese, defender o multilateralismo resulta, em parte, da autoimagem brasileira como uma potência regional com interesses globais e vocação multilateral. Resulta também da experiência histórica de defesa de interesses nacionais em fóruns multinacionais, um acúmulo que funciona como ativo diplomático que permite ao país atuar no cenário internacional com iniciativas e propostas incompatíveis com as capacidades militares ou econômicas disponíveis.
Em um mundo profundamente interdependente, carente de governança e em risco de colapso, a capacidade de concertar acordos diplomáticos é mais valiosa do que em ambientes mais previsíveis, como foi a Guerra Fria. O Brasil acumulou uma experiência diplomática e legitimidade que o capacita para propor alternativas políticas a impasses que, sem solução pacífica, podem resultar em conflitos com consequências catastróficas.
Mais do que um interesse tradicional de sua política externa, defender o multilateralismo, e com isso a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é também uma maneira de prestar serviços à comunidade internacional e, nesse papel, fortalecer-se como uma potência média dedicada a causas globais, que são também urgências internas. É assim porque, como mencionamos, um mundo baseado em regras interessa a um país em desenvolvimento. O compromisso brasileiro com a solução pacífica de conflitos e com o multilateralismo marcou sua política externa desde sempre, é parte da própria identidade do país no cenário internacional. Por essa razão, e também por interesse político e econômico, o Brasil "retornou" em defesa do multilateralismo.
1. Miriam Gomes Saraiva e Felipe Leal Albuquerque: "Como mudar uma política externa? Reflexão sobre mudança em política externa durante o governo Bolsonaro" em CEBRI-Revista: Brazilian Journal of International Affairs No 1, 1-3/2022.
2. Rubens Ricupero: "O retorno do Brasil a um mundo transformado por conflitos" em CEBRI-Revista: Brazilian Journal of International Affairs No 9, 1-3/2024.
3. Gelson Fonseca Jr.: "O Brasil e o multilateralismo no pós-1945" em Eduardo Uziel, Maria Luisa Escorel de Moraes e Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura (eds.): O Brasil e as Nações Unidas: 70 anos, FUNAG, Brasília, 2015.
4. "Secretário-Geral da ONU discursa no Debate Geral, 78ª Sessão", 9/9/2023, disponível aqui.
5. Grupo de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças: Um mundo mais seguro: a responsabilidade que compartilhamos, ONU, 12/2004, disponível aqui.
6. A Missão Integrada das Nações Unidas em Timor-Leste foi enviada em 2006 para responder à grave crise política e humanitária que surgiu no país entre abril e maio daquele ano.
7. Luis Felipe de Seixas Corrêa: Brazil in the United Nations, FUNAG, Brasília, 2013.
8. "O preço da paz e do desenvolvimento: Como a ONU é financiada?" em Notícias ONU, 4/1/2024.
9. Nan Tian, Diego Lopes da Silva, Xiao Liang e Lorenzo Scarazzato: "Tendências no Gasto Militar Mundial 2023", Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), Estocolmo, 4/2024.
10. Javier Solana: "A Parceria Estratégica UE-Rússia: Discurso do Alto Representante Designado da União Europeia para Política Externa e de Segurança Comum", 13/10/1999.
11. Barry Buzan: "Uma Nova Guerra Fria? O Caso para um Conceito Geral" em International Politics vol. 61 No 2, 2024.
12. Programa de Dados de Conflitos de Uppsala (UCDP), 7/2024.
13. Olivier Blanchard: "A Tempestade Perfeita: Ventos Contrários da Desglobalização" em AXA Investment Managers, 22/7/2024.
14. Externalização de processos produtivos em países próximos, muitas vezes fronteiriços.
15. Decisão de produzir e abastecer-se em países que são aliados geopolíticos.
16. Documento assinado por Fernando VI da Espanha e João V de Portugal em 13 de janeiro de 1750 para definir os limites entre seus respectivos territórios na América do Sul.
17. R. Barbosa: "Actes et discours: de m. Ruy Barbosa", W.P. van Stockum et Fils, Haia, 1907, disponível aqui; Carlos Henrique Cardim: A raiz das coisas. Rui Barbosa. O Brasil no mundo, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007.
18. João Augusto Costa Vargas: Campanha permanente. O Brasil e a reforma do Conselho de Segurança da ONU, FGV, Rio de Janeiro, 2011.
19. L.F. de Seixas Corrêa: ob. cit.
20. Marianna Albuquerque e Gustavo Sénéchal: "Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas (2022-2023)" em CEBRI-Revista: Brazilian Journal of International Affairs No 9, 1-3/2024.
21. Ministério das Relações Exteriores: "Brasil e a Reforma do CSNU", 30/9/2021.
22. A.J. Ramalho: "A presidência brasileira do G20. Credibilidade em favor da governança global para um futuro mais justo, próspero e sustentável", Perspectiva, Fundação Friedrich Ebert, 11/2023, disponível em aqui.
23. Ministério das Relações Exteriores: "Presidência brasileira do G20", nota de imprensa, 1/12/2023.
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Brasil e a refundação do multilateralismo. Artigo de Antonio Jorge Ramalho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU