07 Julho 2022
A Otan atribui-se aquele “ius ad bellum” que até então havia sido prerrogativa e expressão dos Estados soberanos. Por isso, ela se apresenta como um sujeito à parte, como um novo Leviatã no concerto das nações, mais do que como uma aliança entre Estados estipulada pelos governos e ratificada, quando há democracia, pelos respectivos Parlamentos. Trata-se, portanto, de uma Terceira Aliança.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 06-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 29 de junho passado, na Cúpula de Madri, a Otan agendou a Terceira Guerra Mundial, com a ideia de que possa ser não nuclear, retomando a Rússia como Inimigo e, pela primeira vez, assumindo a China como o Inimigo potencial de hoje e o Inimigo final de amanhã.
Assim, despedaça-se a unidade do mundo, adquirida no fim do século pelo capitalismo e exaltada na globalização, e reproduz-se a cortina de ferro que a revista Limes define hoje como “cortina de aço”. Ao lado dela, acorrem também o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia, também presentes na cúpula a convite. Incluem-se na Aliança a Suécia e a Finlândia, com o consentimento da Turquia de Erdogan, pago com a venda dos curdos, e confirma-se o uso da Ucrânia como vítima, aproveitando a sua oferta feita por Zelensky para desencadear o conflito ontem e prolongar depois o seu sacrifício por todo o andamento da crise até agora.
A guerra, que começou com a agressão russa e personalizada para o vulgo como a agressão de Putin, retorce-se, portanto, contra ele: como disse Biden, ele “visava o modelo Finlândia para a Europa e, em vez disso, obtém o modelo Otan”. Ela poderá lhe servir ainda menos para a anexação da Europa ao Império de Pedro, o Grande, que ele perseguia como novo czar, segundo as intenções que lhe foram atribuídas pela imprensa ocidental.
Quanto ao exercício propriamente dito da guerra, ele é assegurado pela Otan com as armas amplamente fornecidas à Ucrânia (que denuncia a sua necessidade de cinco bilhões de dólares por mês) para substituir e integrar as armas ex-soviéticas com armas “atlânticas”, e está predisposto com o destacamento anunciado por Stoltenberg de 300.000 homens (como se dizia antigamente, quando não se levavam em conta as mulheres) ao longo da fronteira europeia da Rússia.
Como já ocorreu em 1998, quando empreendeu por conta própria a guerra contra a Iugoslávia, a Otan atribui-se, portanto, aquele “ius ad bellum” que até então havia sido prerrogativa e expressão dos Estados soberanos. Por isso, ela se apresenta como um sujeito à parte, como um novo Leviatã no concerto das nações, mais do que como uma aliança entre Estados estipulada pelos governos e ratificada, quando há democracia, pelos respectivos Parlamentos.
Trata-se, portanto, de uma Terceira Aliança. A Primeira Aliança foi aquela que surgiu do Pacto do Atlântico de 4 de agosto de 1949 para gerir a Guerra Fria. Em novembro de 1991, após a Guerra do Golfo, apesar da dissolução do Pacto de Varsóvia e do cumprimento do seu propósito social, ela foi confirmada pela cúpula de Roma, que, no entanto, reiterou a sua natureza defensiva e a sua área de competência geograficamente limitada: até mesmo com ênfase os documentos de Roma afirmavam que “nenhuma das suas armas jamais será usada, exceto para autodefesa, assim como ela não se considera adversário de ninguém”.
No entanto, isso ruiu quando, em abril de 1999, em meio à guerra iugoslava, a cúpula de Washington deu à luz uma Segunda Aliança, que introduzia um novo “conceito estratégico” e abandonava o velho limite de competência territorial para abranger toda a “área euro-atlântica”, incluindo a Rússia e a Ucrânia, coincidindo, assim, de fato, com o hemisfério Norte do mundo. A tarefa de preservar o equilíbrio na Europa foi substituída pela tarefa da “resposta às crises” e da “gestão das crises”, incluindo em nível militar. A reserva da natureza exclusivamente defensiva do emprego da força armada, estabelecida pela ONU e reiterada pela resolução de 1991, foi descartada, e foram contempladas expressamente operações fora da área de cobertura, não abrangidas pelos artigos 5 e 6 do Tratado instituidor. A questão não era mais a defesa da Europa, mas o mundo, o governo do mundo.
A razão é que o mundo se tornou perigoso demais, e isso foi logo demonstrado no 11 de setembro de 2001, com o ataque às Torres Gêmeas. Um ano depois, em setembro de 2002, os Estados Unidos anunciaram a nova “Estratégia de Segurança Nacional”, que consistia em um domínio estendido a toda a Terra; nenhuma Potência (nem mesmo a Europa) jamais deveria igualar a força militar dos Estados Unidos, a prevenção não é mais suficiente, “a melhor defesa é o ataque”, antes mesmo que a ameaça se revele.
Essa doutrina se estendeu à Otan. Além disso, quando Putin e Clinton discutiram em Moscou em 2000 uma possível entrada da Rússia pós-soviética na Otan, a delegação estadunidense presente nas negociações havia se oposto, porque uma aliança (como um Estado) não pode subsistir sem inimigos. Ou, melhor, o inimigo, entendido em termos hegelianos como o estranho, o estrangeiro, é, segundo a doutrina schmittiana corrente no Ocidente, o próprio critério do político. O novo “conceito estratégico” adotado em Madri marca agora o advento da Terceira Aliança.
Qual resposta pode ser dada à altura desse desafio? Ela não pode ser nem a de uma aliança contra a outra (os países do Brics, Brasil, Rússia, China, África do Sul, contra os da Otan), nem de uma saída unilateral da Aliança, o que seria catastrófico e ineficaz. Em uma assembleia popular que, por coincidência fortuita, se realizou em Messina no dia seguinte à cúpula de Madri, compartilhou-se uma proposta que nós também tínhamos formulado, a de uma resposta propriamente política.
É preciso que pelo menos um Estado soberano se faça promotor de uma visão do mundo diferente, de uma política internacional inclusiva, de uma casa comum habitada não por inimigos, mas por uma mesma humanidade. Esse país soberano pode ser a Itália, pela sua própria vocação constitucional; por isso, a proposta é promover uma lei constitucional de iniciativa popular, para acrescentar à Constituição uma norma transitória e final pela qual a Itália atue para que o repúdio à guerra em todas as suas formas, incluindo as sanções e as outras modalidades de genocídio, seja assumido por todos os Estados, as armas e as despesas militares sejam reduzidas consensualmente, as alianças partidárias sejam dissolvidas, a Terra seja salvaguardada, e seja buscado o objetivo de uma Constituição mundial que garanta justos ordenamentos e o gozo universal dos direitos e dos bens fundamentais por todos, sem excluir ninguém.
As alianças de guerra impostas pelos poderes podem ser seguidas por uma Nova Aliança desejada pelos povos.
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A terceira aliança. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU