16 Novembro 2024
A última cúpula do BRICS, realizada em Kazan, Rússia, mostrou a vocação de uma série de países de porte médio para superar a arquitetura comercial e financeira dominante. Por sua vez, evidenciou as pretensões russas e chinesas sobre o Sul global.
O artigo é de Alexandra Sitenko, consultora política e pesquisadora independente, publicado por Nueva Sociedad, novembro de 2024.
Em 24 de outubro, chegou ao fim a cúpula de três dias do BRICS em Kazan, sob a presidência da Rússia. Ao longo do ano, mais de 200 atividades foram realizadas em várias cidades russas como preparação para o evento. A participação de mais de 30 delegações, 22 chefes de Estado e de Governo, além de representantes de organizações internacionais, não passou despercebida pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, que também viajou e se reuniu paralelamente com Vladimir Putin pela primeira vez desde 2022. Em seu discurso, afirmou, entre outras coisas, que o BRICS poderia desempenhar um papel mais importante no fortalecimento do multilateralismo para o desenvolvimento e a segurança globais.
A cúpula consistiu em duas partes: uma reunião dos nove membros plenos do grupo (Brasil, Índia, China, África do Sul, Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia) e uma sessão BRICS+/Outreach sobre o tema “BRICS e o Sul Global: construir juntos um mundo melhor”. Os esforços da Rússia estavam claramente direcionados a demonstrar a crescente influência econômica e política deste grupo de países e a provar que o país não está sofrendo isolamento internacional algum após sua guerra de agressão contra a Ucrânia.
Nos países ocidentais, o grupo BRICS é amplamente percebido como uma associação antiocidental e antiamericana, e suas atividades são comentadas de forma crítica quase sem exceção. No início, no entanto, o grupo queria evitar ser visto como um desafiante de Ocidente. A própria Rússia foi membro tanto do BRICS quanto do G-8 até 2014. O objetivo inicial do grupo era realizar encontros informais entre seus membros, e não formular e implementar iniciativas políticas estruturadas e alternativas. Em suas declarações após as primeiras cúpulas em Ekaterimburgo, em 2009, e em Brasília, em 2010, os participantes destacaram o papel central do G-20 na solução de problemas globais e se comprometeram firmemente com a diplomacia multilateral, na qual as Nações Unidas desempenhavam um papel crucial na abordagem dos desafios globais. Em geral, a agenda foi dominada pelo tema da estabilização global após a crise financeira mundial de 2007-2008.
A partir de 2013-2014, as tensões geopolíticas entre Oriente e Ocidente aumentaram. Com a ascensão econômica da China, também cresceram suas ambições geopolíticas e de política externa. A chegada ao poder de Xi Jinping e o anúncio da Iniciativa da Faixa e Rota em 2013 aceleraram essa tendência e deram origem a uma competição geoeconômica com os Estados Unidos, enquanto o conflito entre a Rússia e o Ocidente atingiu um ponto crítico após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia em 2014. Esses eventos se refletiram na agenda do BRICS: a declaração de 2015 na cúpula de Ufá, na Rússia, por exemplo, condenava as sanções econômicas que violavam o direito internacional e afirmava que nenhum Estado poderia fortalecer sua própria segurança às custas da segurança dos outros. A Rússia e a China começaram a ver o BRICS como um instrumento geopolítico em seu confronto com o Ocidente, enquanto os outros três membros continuavam priorizando a economia, o comércio e o desenvolvimento.
Com a admissão de novos membros, no entanto, as prioridades da Rússia e da China, por um lado, e do Brasil, da Índia e da África do Sul, por outro, começaram a se aproximar. Moscou e Pequim tiveram que moderar de certa forma suas atitudes hegemônicas. Na 15ª cúpula, realizada em Johannesburgo, na África do Sul, em agosto de 2023, foram convidados Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos a ingressar no grupo em 01-01-2024. No entanto, o novo presidente argentino, Javier Milei, rejeitou a adesão após assumir o cargo em dezembro de 2023, enquanto a Arábia Saudita optou por renunciar à adesão formal por enquanto, embora continue a participar no formato BRICS Plus/Outreach.
A maioria dos novos membros, como os Emirados Árabes Unidos e o Egito, busca um equilíbrio em sua política externa entre a parceria com o Ocidente e a manutenção de vínculos econômicos e políticos fortes com a China e a Rússia. A Etiópia também mantém estreitos laços com Moscou e Pequim, seus principais parceiros comerciais, além de ser um parceiro histórico dos Estados Unidos. Na opinião do primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, a adesão de seu país ao BRICS é importante para contribuir com o aprofundamento da cooperação Sul-Sul. Portanto, o BRICS é uma alternativa ao Ocidente para os novos membros, mas não é uma expressão explícita de uma política antiocidental, exceto no caso do Irã. A maioria dos membros do BRICS deseja ter uma plataforma alternativa que dê voz aos seus interesses políticos e econômicos (de desenvolvimento) e ao seu crescente peso no mundo. Obviamente, não se sentem suficientemente ouvidos dentro das instituições multilaterais existentes.
Antes do início da cúpula em Kazan, o presidente Putin, seguindo as palavras do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, declarou que o BRICS era um grupo não ocidental, mas não antiocidental. Sem dúvida, ele queria atrair novos membros. Embora a expansão finalmente não tenha correspondido aos anúncios iniciais, conseguiu aumentar a importância do grupo de Estados BRICS e obter maior popularidade entre os países do chamado Sul global: desde então, mais de 30 países demonstraram interesse em trabalhar com o BRICS como membros ou parceiros. O lema deste ano, “Fortalecimento do multilateralismo para um desenvolvimento e uma segurança globais equitativos”, reflete explicitamente os anseios do chamado Sul global, como justiça e desenvolvimento.
Nesse sentido, foi irônico que a cúpula do BRICS em Kazan tenha começado quase simultaneamente com a reunião anual de duas instituições de Bretton Woods (o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) em Washington. Principalmente porque a exigência de uma reforma das instituições de Bretton Woods, incluindo uma maior representação dos países em desenvolvimento e emergentes em postos de liderança, estava entre os primeiros pontos do comunicado final do BRICS, com 134 itens.
Os participantes da cúpula também receberam de forma positiva a iniciativa russa de estabelecer uma plataforma de comércio de cereais dentro do BRICS e, posteriormente, expandi-la para outros setores agrícolas. Todos apoiaram o uso de moedas locais nas transações financeiras entre os países do BRICS e seus parceiros comerciais. A empresa estatal russa de desenvolvimento e investimento já assinou acordos com a China e a África do Sul para concessão de linhas de crédito em moedas locais. Os Estados membros também concordaram em testar a viabilidade de estabelecer uma plataforma independente de pagamentos e reservas (BRICS Clear). No entanto, não se espera que um sistema de pagamentos BRICS seja introduzido tão em breve. O grupo pediu unanimemente o levantamento das sanções econômicas impostas unilateralmente.
Embora a maioria dos membros do BRICS (exceto o Irã) não compartilhe a posição da Rússia sobre a guerra contra a Ucrânia e deseje que o conflito termine o mais rápido possível, este tema não foi uma prioridade para a maioria dos participantes da cúpula. Porém, ao menos, a declaração final afirma: "Lembramos as respectivas posições nacionais sobre a situação na Ucrânia e seus arredores, que foram expostas nos órgãos pertinentes, incluindo o Conselho de Segurança da ONU e a Assembleia Geral da ONU. Destacamos que todos os Estados devem agir em conformidade com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas como um todo e em suas inter-relações. Acolhemos positivamente as ofertas pertinentes de mediação para garantir uma solução pacífica para o conflito por meio do diálogo e da diplomacia". Foi dada muito mais atenção às situações no Oriente Médio, Sudão, Haiti e Afeganistão. As ações de Israel foram duramente criticadas, enquanto o Hamas foi chamado (sem ser nomeado especificamente) a libertar os reféns israelenses restantes. Reforçou-se a necessidade urgente de um cessar-fogo imediato, integral e duradouro na Faixa de Gaza.
Embora o Sul Global seja o grupo destinatário da maioria das iniciativas do BRICS, a Rússia, a Índia e a China constituem o núcleo original e forte do grupo. Sob a perspectiva de Moscou, o estabelecimento do formato RIC (Rússia, Índia e China) em São Petersburgo, em 2006, pavimentou o caminho para a plataforma de intercâmbio do BRICS, algo que o assessor presidencial russo, Yuri Ushakov, destacou na sessão de imprensa da cúpula do BRICS. Putin pode considerar como um sucesso diplomático o fato de os chefes de Estado da Índia e da China se reunirem bilateralmente na Rússia após uma era de gelo de cinco anos devido a um conflito fronteiriço.
Dada a crescente influência global da Índia, não se pode descartar que Nova Déli também queira desempenhar um papel cada vez mais destacado no BRICS como a voz do Sul Global, o que poderia influenciar o equilíbrio de poder interno. O mais recente acordo entre a Índia e a China sobre patrulhas militares de ambas as partes ao longo da linha de demarcação no Himalaia representa um passo em direção à desescalada da disputa fronteiriça, e isso poderia contribuir para melhorar suas relações bilaterais e, consequentemente, para uma maior cooperação no BRICS.
O peso do Oriente também se reflete na lista publicada de países parceiros do grupo, uma nova categoria que permite aos países cooperar com o BRICS sem, no entanto, se tornarem membros plenos. Em junho de 2024, foi anunciado que os países BRICS haviam decidido, por esmagadora maioria, não admitir novos membros plenos por enquanto. Entre os novos países parceiros estão: Argélia, Belarus, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã.
De maneira geral, a cúpula reflete as prioridades da política externa russa estabelecidas na concepção de 2023: construir a Grande Associação Euroasiática e expandir as relações com o Sul Global. Não é por acaso que a Rússia tenha sido a anfitriã da reunião em Kazan. A capital da República do Tartaristão, localizada na Europa, é desde 2009 sede do fórum "Rússia-Mundo Islâmico". A escolha do local foi um gesto em direção ao continente asiático e ao mundo islâmico, onde a Rússia pode contar com aliados importantes. Em 2014, tanto o The Guardian quanto a Time Magazine proclamaram: "Esqueçam o BRICS". Dez anos depois, dizia-se que o BRICS era um "desafio geopolítico". Sem dúvida, existe uma dinâmica no desenvolvimento do BRICS, tanto em termos de conteúdo quanto institucionais. O denominador comum após a cúpula de Kazan continua sendo que, apesar de todas as diferenças entre membros e parceiros, o BRICS é uma coalizão de potências médias em grande parte emergentes que estão superando o domínio ocidental, especialmente na arquitetura comercial e financeira global, e que buscam alcançar uma maior diversidade de vozes na política mundial.
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O BRICS como uma coalizão de potências médias. Artigo de Alexandra Sitenko - Instituto Humanitas Unisinos - IHU