08 Outubro 2024
"Não se deve confundir globalização com interdependência: mesmo que o mundo se separe ou se fragmente, permanece interconectado e, de fato, essas conexões se tornaram os canais de transmissão para a raiva, o ressentimento e a frustração com que os três universos se comunicam entre si", escreve Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 06-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
De acordo com Giovanni Orsina, atento observador do que acontece no lado direito do espectro político, tanto na Itália quanto na Europa, a política da raiva - transformada em uma onda de protesto populista - está diminuindo, apesar do que está acontecendo na ex: Alemanha Oriental.
As emoções são volúveis e nada duradouro pode ser construído com base nelas, sob pena de evaporação política. O cansaço, a resignação e o refluxo emocional, de acordo com Orsina, marcariam a cultura política atual na Itália e na Europa. A única exceção: uma eventual vitória de Donald Trump poderia embaralhar o quadro atual.
Na verdade, há muito tempo se discute a raiva como uma força motriz crucial: os esquecidos e os excluídos (geralmente de classe média) da política tecnocrática trilhada pelos ultraliberais aliados a esquerdas intimidadas e sem ímpeto social se rebelaram e sua raiva foi interceptada por movimentos de direita, populistas ou soberanistas, dependendo do caráter nacional em que o fenômeno ocorreu.
Mas agora, de acordo com Orsina, chegou a hora do realismo e do pragmatismo que impelem a voltar a conselhos mais brandos e correspondem ao desafio de Giorgia Meloni. Para além dos eventos nacionais, algo mais pode ser acrescentado a esses argumentos. Observamos que a força da raiva pode se transformar em algo muito pior: ódio e vazio.
Não podemos deixar de considerar esse perigo, que é particularmente real por causa das duas grandes guerras em andamento: o conflito na Ucrânia e a guerra em Gaza, e agora no Líbano. Como engrenagens perversas, as duas guerras (como todas as guerras) conseguem produzir mais ódio do que se possa imaginar. Esse ódio permanece, solidifica-se e desfigura a arquitetura espiritual e humana de gerações inteiras, transformando-as para pior por tempos muito longos. Como esses conflitos ainda estão (um pouco) distantes, nós os “sentimos” pouco, mas, como um veneno silencioso, intoxicam a nossa cultura e o ar que respiramos, em outras palavras, a nossa vida civil. Ninguém escapa do lento envenenamento da cultura - tanto da alta quanto da popular - e da convivência social: mudam os projetos de vida, os gostos, as prioridades e as perspectivas. Muda também a maneira de pensar: ficamos mais resignados e presos no presente, menos preparados para refletir sobre o futuro, geralmente percebido como ameaçador e cheio de perigos.
No início de 1933, quando Hitler tinha acabado de subir ao poder, o escritor Heinrich Mann publicou um livro presciente chamado L’Odio no qual ele contava como o ódio e o belicismo estavam tomando conta da Alemanha. É uma lição que ainda hoje é útil. Mann escreveu: “Na mente das pessoas civilizadas, a guerra (...) é uma obsessão da qual não conseguem se livrar nem mesmo por exaustão (...) quanto menos respeito próprio elas têm, mais intenso é seu ódio pelos outros: ‘não podemos lutar, pelo menos queremos odiar!’ (...) o ódio nacional é o mais vazio, o mais incompreensível de todos os sentimentos (...)”. Sabemos como isso acabou. Esse clima de ódio e guerra é ruim principalmente para os jovens, que se encontram em um contexto em que o futuro desaparece, apagado pelas ameaças, quando deveria ser seu horizonte natural. Nossos jovens são mal-amados porque são os portadores de demandas que não são mais admitidas, especialmente aquela do futuro. Mas a geração mais adulta não tem respostas ou tem apenas respostas autoritárias.
A “morte do futuro” é uma das características de nossa sociedade: como Marc Augé, nós nos perguntamos “o que aconteceu com o futuro?”. Um presentismo imóvel e sufocante se abateu sobre nossas sociedades ocidentais, obliterando o horizonte histórico e os pontos de referência habituais. O que resta é uma vida a ser consumida, como escreve Monsenhor Vincenzo Paglia em sua última obra Destinati alla vita: se esforçar para satisfazer as emoções enquanto o futuro evapora em uma cultura anestesiada e anestesiante.
Esse vazio deveria nos preocupar: a temporada de raiva se transforma em um estreitamento do eu pessoal em busca de conforto, sozinho, isolado por opção, sem querer ser incomodado. Entende-se a reação: se o mundo é tão ameaçador, por que enfrentá-lo? É melhor não se arriscar a acolhê-lo ou desafiá-lo: é mais confortável e reconfortante se encasular.
Essa é a estratégia assumida com o Covid: fechados em casa, tentando sair o mínimo possível, recebendo o que se precisa no máximo na porta, grudados na frente de monitores (tanto para séries de TV quanto para videochamadas), distantes do encontro real. Podemos nos acostumar com essa estratégia de isolamento em que a política aparece como uma ferramenta distante, válida para outros. O abstencionismo eleitoral também se origina disso. Assim, da raiva se passa ao sonambulismo vazio. Mas, de outras formas, o ódio pode permanecer ativo, com as guerras alimentando suas absurdas razões.
Dominique Moisi descreve sua evolução mortal em seu A Geopolítica Das Emoções: ao medo, à esperança e à humilhação que definiam a antiga ordem emocional global, acrescentam-se hoje o ódio, a raiva e a fúria extrema que desfiguram os povos.
Essa é uma “nova ordem emocional global”, diante da qual o autor franco-estadunidense se pergunta: “Além da rivalidade entre China e Estados Unidos, talvez também possamos ver o surgimento de uma nova ordem tripolar entre o Sul global, o Oriente global e o Ocidente global?” Esses três universos estariam se distanciando por causa da psicologia diferente com que olhar para o mundo, mesmo que permaneçam unidos pela interdependência econômica ou tecnológica.
Não se deve confundir globalização com interdependência: mesmo que o mundo se separe ou se fragmente, permanece interconectado e, de fato, essas conexões se tornaram os canais de transmissão para a raiva, o ressentimento e a frustração com que os três universos se comunicam entre si.
Esse contexto é favorável às extremas direitas, àqueles que não buscam - como Orsina esperaria - o pragmatismo da convivência razoável, mas, em vez disso, apostam tudo numa política destrutiva que destroce os equilíbrios democráticos. Esse é o desafio da democracia e da Europa, unidas pela mesma luta e destino.
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Não há mais apenas raiva, o ódio desafia a democracia. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU