03 Outubro 2024
Esta incursão israelense no Líbano e, caso ecloda, uma guerra aberta com o Irã envolvendo os Estados Unidos também poderá lançar as sementes de mais ódio futuro.
A reportagem é de Trinidad Deiros Bronte, publicado por El País, 02-10-2024.
Com o apoio dos Estados Unidos e com a ONU paralisada pelo sistema de veto, nenhum ator internacional foi capaz de impedir os planos do governo de direita de Netanyahu.
A história das últimas décadas de Israel no Líbano é uma das muitas batalhas vencidas que deram lugar a derrotas estratégicas, do tipo que leva à perda de guerras. Em 1982, as tropas israelitas conseguiram expulsar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) do país árabe, mas essa invasão levou ao nascimento do Hezbollah, cuja guerra de guerrilha forçou em parte a retirada israelense em 2000 e a sua nova retirada após a breve guerra de 2006.
Os golpes desferidos nas últimas duas semanas por Israel àquela organização, que culminaram na sexta-feira com o assassinato do seu líder, Hasan Nasrallah, e com a nova invasão terrestre do Líbano abrem agora um cenário imprevisível, após o lançamento pelo Irã esta terça-feira de cerca de 200 mísseis em território israelense. Se a anunciada retaliação israelense desencadear uma guerra regional aberta, esse conflito não só condenaria o colapso da ordem mundial pós-Segunda Guerra Mundial aos olhos de muitos habitantes do planeta. Também enterraria definitivamente a utopia da equidade e do Estado de direito internacional nas relações entre os Estados, das quais até agora o Ocidente se apresentava como campeão.
Desde o início da guerra de Israel em Gaza, que já causou mais de 41 mil mortes, "nenhum ator", especialmente no Ocidente, "foi capaz de deter um governo extremista e belicista como o israelense, que se dedica a atacar os seus vizinhos”, afirma Haizam Amirah Fernández, analista especialista em relações internacionais no Oriente Médio. Esta situação sublinha a diferença entre o “apenas grito no céu” que a comunidade internacional levantou após a invasão russa da Ucrânia e o “silêncio estrondoso” após o anúncio israelense de uma agressão semelhante contra o Líbano, algo que, no Sul Global, “É visto e observado” como um flagrante “duplo padrão” que aprofunda o descrédito ocidental.
Nem os Estados Unidos que deram “apoio total” a Israel, nem uma União Europeia paralisada pelo igualmente forte apoio da Alemanha a esse país e “regimes como o de [Viktor] Orbán”, sublinha o especialista – nem a organização supranacional que surgiu da ordem mundial agora em questão, as Nações Unidas – conseguiram conter Israel. Isto apesar de este país “ter cruzado todas as linhas vermelhas” prosseguindo o objetivo, sublinha o especialista, de “evitar uma paz justa” no Oriente Médio que respeite o direito à livre autodeterminação dos palestinos, reconhecido pelo ONU.
A paralisação do órgão executivo daquela organização, o Conselho de Segurança — ao qual a Espanha solicitou esta terça-feira uma reunião urgente sobre o Líbano — é o resultado desta distribuição de poder agora em declínio, na qual os cinco vencedores da Segunda Guerra Mundial — os Estados Unidos, França, Rússia, China e Reino Unido – bloqueiem qualquer condenação que vá contra os seus interesses ou os dos seus aliados, exercendo o seu privilégio de veto. No caso dos Estados Unidos, para proteger Israel, algo que tem feito repetidamente desde o início da guerra em Gaza. Este bloqueio deixou as Nações Unidas impotentes para pôr fim a esse conflito. O direito de veto, diz Amirah Fernández, “impede as Nações Unidas de cumprir o seu mandato principal, que é preservar a paz e a segurança internacionais”.
O “grito global” por um cessar-fogo humanitário em Gaza reflete-se, no entanto, no apoio majoritário expresso nas votações da Assembleia Geral das Nações Unidas. Nesse fórum, “a maioria dos habitantes do planeta” apoiou esta cessação das hostilidades que Washington vetou posteriormente no Conselho de Segurança. Mesmo nos Estados Unidos “há uma maioria de eleitores democratas que apelam a um cessar-fogo humanitário, de acordo com as sondagens”. Se rebentar uma guerra no Oriente Médio, “esse será o legado de [Joe] Biden”, um legado que pode “contribuir para uma vitória de Donald Trump [nas eleições] de 5 de novembro”, prevê o especialista.
Entretanto, as potências que aspiram a contrariar o poder hegemónico de Washington, especialmente a Rússia e a China, “estão fazendo planos para aproveitar a oportunidade que lhes é apresentada”, afirma Amirah Fernández. Num certo nível já obtiveram uma grande vitória: o discurso. A narrativa ocidental sobre os direitos humanos é agora considerada uma mera manifestação de “hipocrisia” por muitos no Sul Global.
Em 5 de Setembro, o primeiro-ministro da Malásia, Datuk Seri Anwar Ibrahim, deu um exemplo. Na presença do satisfeito presidente russo, Vladimir Putin, em Vladivostok, ele aludiu à forma como os ocidentais “já não estavam autorizados” a ensinar lições de “direitos humanos” aos países do sul, ao mesmo tempo que toleravam o “genocídio” em Gaza. Aquilo que o historiador especialista em Oriente Médio Jorge Ramos Tolosa, autor de vários livros sobre a Palestina, define como o “cinismo” de um Norte que protege a “impunidade de um Estado capaz de atacar cinco países simultaneamente — Palestina, Líbano, Iémen, Síria e Iraque— sem que haja resposta”, demonstra na sua opinião “a fraqueza dos Estados Unidos e da UE”, impotentes face àquele que é considerado o governo mais extrema-direita da história de Israel, o de Benjamin Netanyahu.
“As atrocidades de Israel em Gaza e agora no Líbano”, analisa o historiador, estão “destruindo ainda mais a reputação [dos países] do Atlântico Norte, baseada em grande parte no seu poder político-militar”. Perante isto, “gradualmente, o poder do Sul Global, especialmente [o grupo de países emergentes] os BRICS ou a Organização de Cooperação de Xangai [à qual pertencem a Rússia e a China], está a fortalecer-se”. Moscou “condenou firmemente o ataque ao Líbano” na terça-feira e instou Israel a retirar as suas tropas do território libanês, indo muito mais longe do que qualquer país ocidental. Até mesmo um Estado pária como a Coreia do Norte, que procura laços mais estreitos com o Irã, condenou o que descreveu como “os crimes de guerra de Israel no Líbano”.
Mesmo que o ataque iraniano não desencadeie a retaliação israelense que Netanyahu ameaçou e a extensão do conflito seja evitada, a invasão do seu vizinho pode não ter o resultado esperado para Israel. Esse país “tem um histórico de incursões militares no Líbano que apenas serviram para fortalecer os seus adversários no longo prazo”, destaca uma análise das cientistas políticas Vanessa Newby e Chiara Ruffa, publicada no The Conversation. Estes especialistas recordam que, nas suas sucessivas invasões, “Israel mostrou-se incapaz de ocupar com sucesso a menor porção do território libanês”.
Com o assassinato do líder do Hezbollah, Hasan Nasrallah, com as comunicações do grupo infiltradas e centenas dos seus militantes e civis mutilados pela explosão de dispositivos eletrônicos, o partido-milícia sofreu um dos golpes mais graves da sua história. Isto não é o mesmo que assumir que esta organização, profundamente enraizada nas instituições, na economia e na sociedade libanesas, foi erradicada. Não foi em 2006, durante a incursão de 34 dias das tropas israelenses, apesar da esmagadora superioridade militar de Israel. E agora, destaca Amirah Fernández, a milícia está mais bem armada.
Na manhã de terça-feira, o porta-voz árabe do exército israelense, Avichay Adraee, reconheceu na rede social que o resultado da invasão terrestre israelense não é claro. Dele não podemos esperar, sublinha o especialista, um novo Oriente Médio “onde Israel faz e desfaz o que bem entende”.
Esta incursão israelense no Líbano e, caso ecloda, uma guerra aberta com o Irã envolvendo os Estados Unidos também poderá lançar as sementes de mais ódio futuro. Nick Paton Walsh, analista da CNN, lembrou em 23 de setembro que o Ocidente deveria “ter em conta a lição que a OTAN aprendeu gradualmente no Afeganistão”: que matar inimigos deixa muitas “crianças irritadas e radicalizadas” com as quais mais tarde será impossível negociar. Israel, sublinhou Walsh, “ostenta a sua magia na guerra e é capaz de impor custos implacáveis, ao mesmo tempo que faz vista grossa às vítimas civis”. No entanto, “não está claro que caminho ele vê pela frente”. O historiador Ramos Tolosa descreve aquele país como um “Golias desorientado” que, ao manter o seu “genocídio em Gaza” e atacar os seus vizinhos, “ameaça a sua própria sobrevivência”.
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Invasão israelense do Líbano acelera o descrédito do Ocidente no Sul Global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU