27 Julho 2023
Ele tinha os maneirismos de uma criança travessa, uma curiosidade indomável e um sorriso contagiante. Cunhou o conceito de “não lugar”, mas em seus textos há um universo a explorar, incluindo suas preocupações em imaginar o futuro quando tudo parece puro presente.
A reportagem é de Silvina Friera, publicada por Página/12, 26-07-2023. A tradução é do Cepat.
“Escrever é morrer um pouco, mas um pouco menos sozinho”, afirmou Marc Augé no final de Autobiografia e etnologia de si mesmo, texto incluído em El tiempo sin edad (Adriana Hidalgo). O etnólogo e antropólogo francês, que faleceu na segunda-feira, dia 24 de julho, aos 87 anos em Poitiers, cidade do centro da França onde nasceu em 2 de setembro de 1935, foi muito mais do que o ideólogo do “não lugar”, conceito que cunhou em um de seus livros que curiosamente se popularizou nos anos 90 para dar conta daqueles espaços onde os indivíduos estão em trânsito, como os aeroportos, as rodovias ou os supermercados.
Antes dessa inesperada “fama”, ele explorou o comportamento dos alladianos na Costa do Marfim, anotou detalhes, questionou seus informantes e conviveu com eles durante a década de 1970. Depois dessa experiência, no final dos anos 80, decidiu tomar o rumo da América Latina, onde conheceu os Ya-Ruro-Pumé da Venezuela e um grupo de umbandistas dos bairros de Belém, no Brasil. O seu objeto de interesse oscilava entre o universo pagão da África – as práticas de feitiçaria, os profetas curadores e os fetiches – e a observação e o estudo das sociedades ocidentais, dos mundos contemporâneos e da “supermodernidade”.
Embora El Viejo – como o chamavam na Costa do Marfim quando tinha apenas 40 anos, termo que era um elogio, uma espécie de título honorário – reclamasse de seu espanhol “um pouco maltratado”, ele o praticava cada vez mais em suas frequentes visitas à Argentina. Sua escrita sempre tentou fugir da antropologia para as margens da literatura. De fato, em uma entrevista ao Página/12 de 2016, quando participou de La noche de la filosofía no Centro Cultural Kirchner, confirmou ter escrito e publicado três romances em francês, que ainda são inéditos em espanhol: La Mère d'Arthur (A mãe de Arthur, publicado pela Fayard, 2005), Quelqu'un cherche à vous retrouver (Alguém procura encontrá-lo novamente, publicado pela Le Seuil, 2009) e La Sacrée Semaine qui changea la face du monde (A Semana Santa que mudou a face do mundo, publicado pela Odile Jacob, 2016).
A Semana Santa… se desenrola em 2018; o Papa Francisco pronuncia a tradicional bênção “Urbi et orbi” e declara: “Deus não existe”. Tudo isso é visto pelos olhos de um professor aposentado, que acompanha os acontecimentos pela televisão, segundo comentava o antropólogo. Augé, sem dúvida o mais literário dos etnólogos franceses, inaugurou a segunda edição do Festival Internacional de Literatura de Buenos Aires (Filba), em setembro de 2010.
Para o autor de Não Lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade (Papiros Editora), Espacios del anonimato. Hacia una antropología de los mundos contemporáneos, El tiempo en ruinas, Ficciones de fin de siglo, La guerra de los sueños, Travesía por los jardines de Luxemburgo e El viajero subterráneo: un etnólogo en el metro, entre outros livros, “escrever é criar uma experiência ambivalente do tempo”, frase que parece captar os mundos que frequentou. “Há uma diferença radical entre o antropólogo e o escritor. Uma boa antropologia deve ser escrita porque essa é sua direção final. E essa escrita tem relação com o tempo. O que quero dizer com criar uma experiência ambivalente do tempo é que existe uma experiência de vida que é usada tanto pelo antropólogo quanto pelo escritor, mas que só tem sentido na perspectiva do fim. Quando escrevo, espero que pelo menos um leitor – basta que seja um – me leia. Porque se escrevo quero ser lido. Escrever e ler são experiências profundamente antropológicas. Nem todos os antropólogos têm uma ‘escrita de escritor’, mas na medida em que procuram comunicar algo – que é uma constatação objetiva, mas também uma experiência subjetiva –, eles se conectam com o ofício do escritor”.
O antropólogo que aspirava à “escrita de escritor” foi aluno da École Normale Supérieure, formou-se em Letras Clássicas e depois doutorou-se em Letras e Ciências Humanas. “A imaginação é importante em todas as disciplinas, inclusive nas científicas. Não há ciência sem imaginação, porque os cientistas precisam elaborar hipóteses. E uma hipótese também é uma projeção. Precisamos brincar com a imaginação, mas quando interpretamos as palavras e as teorias que atribuímos aos outros devemos ser cuidadosos, porque às vezes temos muita imaginação. O mais difícil é tentar imaginar o que os outros estão imaginando. É como imaginar os personagens de uma peça de teatro que não criamos”, comparou Augé, que em 1985 foi eleito diretor da École des Hautes Études en Ciências Sociais (EHESS) e também foi responsável e diretor de diferentes pesquisas no Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS).
O antropólogo francês que inventou o termo “etnoficção” com a ideia de tornar as coisas mais perceptíveis aos leitores dizia que escritores do século XVIII como Voltaire ou Montesquieu tinham personagens menos importantes por sua psicologia do que pelo que conseguiam destacar das sociedades em que viviam. “O etnólogo pode chegar a se desdobrar e se considerar a si mesmo o objeto de estudo, como eu fiz em El viajero subterráneo. Un etnólogo en el metro, onde indaguei sobre a alteridade e a identidade no metrô e não tinha melhor informante do que eu mesmo”, explicou, acrescentando que num livro anterior, La travesía por los jardines de Luxemburgo, a ideia da “etnoficção” já estava latente.
O que é a literatura? Essa questão interessou a Augé porque estava convencido de que o romance era frequentemente entendido como literatura. Ou Voltaire, Rousseau ou Montesquieu não são escritores?, acrescentava, com outra pergunta, para estimular a reflexão ao afirmar que hoje cada um dos integrantes desse “trio” fundamental da cultura francesa seria considerado cientista, humanista, filósofo. “São escritores que escreveram ficção, embora nem sempre”, esclareceu.
“Existe uma frase do romancista Julien Gracq que se refere a esse problema em relação à filosofia. Ele diz que está claro que Kant não é um escritor, mas Nietzsche sim. Hoje temos uma ideia muito pobre sobre a escrita literária. A literatura é mais que ficção. Não basta escrever ficção para ser escritor. Muitas vezes se confunde literatura com ficção”, alertou. “A sociedade de consumo introduz, por interesses próprios, essa confusão, sugerindo que só a ficção é literatura. O que não é verdade. Quando pensamos na literatura do século XIX, há muita informação nas obras de romancistas, como em Balzac.
Em um dos capítulos de Futuro, ele mostra sua confiança no que chamou de “utopia da educação”, “única esperança de reorientar a história dos homens em direção aos fins”. Neste ensaio, o antropólogo francês coloca a lupa sobre uma ideia cujos significados parecem esquecidos devido à perda de perspectiva histórica: as complexidades do futuro foram apagadas num mundo amputado pela crença de que se vive numa espécie de “eterno presente”. “Temos um problema sério de imaginar o futuro, estamos vivendo uma ‘ideologia do presente’ devido ao regime de repetição de imagens e mensagens que são veiculadas pelos meios de comunicação”, refletiu Augé. “É verdade que estamos mais informados do que nunca, mas informados de quê? Notícias que são parciais e que se combinam para sugerir uma situação geral do mundo. Cada um de nós também está alienado em nossos meios de comunicação, de tal forma que finalmente há uma existência que parece completamente ligada à ideia do ‘puro presente’”.
As dificuldades em imaginar o futuro preocupavam o antropólogo. “O paradoxo é que a ciência avança muito rápido e não sabemos quais são os conhecimentos daqui a 30 anos, não podemos imaginar. Há um efeito de exaustão do futuro. Eu sei que existe uma ‘literatura de antecipação’, mas o que você pode antecipar, o que você pode observar, muda tão rapidamente que é muito difícil imaginar as consequências, exceto de maneira completamente fantástica. Nos filmes de ficção científica, imaginava-se a partir do passado. Mas o passado não nos interessa mais, agora vivemos no presente. Nesse paradoxo de não saber usar o tempo, não podemos combinar o passado e o futuro”, especificou Augé em sua última visita à Argentina. Assim, além de participar de La noche de la filosofía, apresentou os livros que já vinham sendo publicados no país: O antropólogo e o mundo global (Vozes, 2014), Para onde foi o futuro? (Papirus Editora), Futuro (Adriana Hidalgo) e El tiempo sin edad (Adriana Hidalgo).
Em El metro revisitado postula que escrever um livro é uma experiência de morte, como o amor em Marcel Proust; que um livro, uma vez publicado, segue o caminho imposto pelos leitores. Mais de trinta anos após a publicação de Não lugares, Augé escreveu que se um lugar pode ser definido como um lugar de identidade, relacional e histórico, “um espaço que não pode ser definido nem como um espaço de identidade nem como relacional nem como histórico, definirá um não lugar”.
O antropólogo destacou que “a supermodernidade é produtora de não lugares”. Na contracapa da primeira edição do livro em espanhol, publicado pela Gedisa em 1993, antecipa-se o impacto que este texto irá gerar: “Se depois de ler Proust as madalenas já não têm o mesmo sabor, depois deste livro as esperas nos aeroportos, nas filas, adquirem um novo significado, num mundo que podia sentir-se sufocante na sua evolução, mas que não parecia perturbador nas andanças cotidianas”.
A expressão não lugares fez alguma fortuna, mas também gerou um pouco de perplexidade em quem cunhou o conceito. “Usei uma palavra que correspondia a um sintoma e que serviu para vários motivos, mesmo em diferentes disciplinas como urbanismo, arquitetura, arte e literatura. Claro que existem relações que poderiam ser estabelecidas, como negar. Mas é um termo que me escapou totalmente das mãos”, reconheceu o etnólogo francês em entrevista ao Página/12.
“Tomar consciência de pertencer à espécie humana muda a pergunta a que a idade nos submete, substitui o ‘que sou?’ por ‘quem sou?’. Essa substituição permite escapar das lamentações do ego ferido e das insignificâncias do egocentrismo”, argumentou no final do ensaio Todo mundo morre jovem. O antropólogo do cotidiano tinha os trejeitos de criança travessa, uma curiosidade indomável e um sorriso contagiante. “A idade encurrala cada um de nós entre uma data de nascimento que, pelo menos no Ocidente, temos certeza e uma data de validade que, via de regra, gostaríamos de adiar”, confessou Augé. “O tempo é uma liberdade; a idade, uma limitação”.
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Marc Augé, o antropólogo do cotidiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU