13 Julho 2022
"As histórias de algumas figuras proeminentes da igreja de Moscou nos indicam a profundidade das mudanças que ocorreram nos últimos meses", escreve Pasquale Annicchino, jurista, pesquisador do departamento de direito da Universidade de Foggia, foi Professor Adjunto de Direito na St. John's Law School, em Nova York, e Bolsista de Pesquisa no Robert Schuman Center for Advanced Studies na EUI, em artigo publicado por Domani, 08-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja Ortodoxa Russa desempenhou um papel decisivo ao oferecer argumentos e cobertura teológica em apoio à agressão da Federação Russa contra a Ucrânia. A polêmica sobre a influência da igreja de Moscou e seu patriarca Kirill engajou numerosos comentaristas que tiveram oportunidade de ressaltar o papel do fator religioso no conflito em curso e o aspecto identitário oferecida pela religião na Rússia e em muitos países do mundo ortodoxo.
Em 23 de fevereiro deste ano, Kirill já havia antecipado o que aconteceria em breve: "Vivemos em tempos de paz, mas também há ameaças em nossas fronteiras". Em 6 de março interveio para criticar os "chamados valores que são oferecidos hoje por aqueles que reivindicam o poder mundial", ou "os pedidos dirigidos a muitos para organizar uma parada gay" que "são uma prova de lealdade àquele mundo muito poderoso, e sabemos que se as pessoas ou os países recusam esses pedidos, então não entram naquele mundo, tornam-se estranhos a ele”. Foi também a insistência de Kirill no papel dos valores tradicionais que levou a Rússia a abandonar o Conselho da Europa e a construir uma narrativa da identidade russa necessariamente oposta aos países ocidentais, ao liberalismo e à democracia.
Por anos, as pesquisas do Pew Forum sobre o tema sugerem uma correlação muito forte entre identidade religiosa e identidade nacional em muitos países ortodoxos. Provavelmente não é coincidência que, em consequência ao conflito russo-ucraniano, tenhamos testemunhado vários movimentos sísmicos em vários países nos quais a religião ortodoxa desempenha um papel de liderança. Eles são obviamente um caso de estudo relevante, com suas divisões ortodoxas internas, a própria Ucrânia e a Macedônia do Norte em relação aos recentes desenvolvimentos que afetaram o país e que abordaremos em breve.
Como já tivemos a oportunidade de lembrar em Scenari, 2018 e 2019 são os anos recentes mais importantes para enquadrar o conflito teológico e político em curso. A concessão de autocefalia à Igreja Ortodoxa Ucraniana por Bartolomeu, Patriarca Ecumênico de Constantinopla, contribuiu decisivamente para a deslegitimação da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia e no contexto global da Ortodoxia. Isso também se deve às reações instáveis de Moscou.
Outro movimento recente de Bartolomeu, que colocou as estratégias de Moscou em crise, deve ser encontrado em sua capacidade de pressionar a Igreja Ortodoxa Sérvia (que sempre esteve próxima de Moscou) s garantir a plena independência da Igreja Ortodoxa da Macedônia-Arquidiocese de Ohrid. Esse resultado foi obtido no final de uma liturgia de reconciliação celebrada em maio na Catedral de São Clemente em Ohrid.
Naquela ocasião, o Patriarca sérvio Porfirije anunciou que a assembleia dos bispos da Igreja Ortodoxa Sérvia havia decidido por unanimidade conceder a autocefalia da Igreja Ortodoxa da Macedônia-Arquidiocese de Ohrid. Essa decisão foi uma surpresa porque poucos esperavam um salto tão rápido. O comunicado oficial da Ortodoxia Sérvia confirma a abertura relativa a um status canônico de ampla autonomia "com a plena independência interna" e o estabelecimento de "uma plena comunhão litúrgica e canônica".
A Igreja Ortodoxa Sérvia provavelmente quis evitar o cenário russo de 2018-2019, quando o Patriarca Ecumênico de Constantinopla havia reconhecido a autocefalia da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, embora estivesse sob a autoridade legal de Moscou. Porfirije provavelmente acelerou porque em 9 de maio o patriarcado ecumênico de Constantinopla já havia reconhecido a "canonicidade" da Igreja Ortodoxa da Macedônia com o nome de "arquidiocese de Ohrid", possivelmente com esse nome para não ofender as sensibilidades gregas. Antecipando o patriarcado de Constantinopla, Porfirije provavelmente evitou ser encurralado como acontecera com Kirill e, ao mesmo tempo, evitou a crise política e de imagem que se seguiria.
Além disso, as reações russas após a iniciativa de 9 de maio foram muito duras. Numerosos expoentes da Igreja Ortodoxa de Moscou qualificaram a iniciativa de Bartolomeu como uma intrusão grosseira com uma clara conotação política. Tal leitura parece ser confirmada também pelo comunicado da ortodoxia sérvia que em um parágrafo parece criticar as ações de Constantinopla, reiterando que o estatuto definitivo da igreja macedônia teria sido determinado apenas por considerações de natureza canônica e eclesiológica e não de caráter geopolítico.
Como testemunha o episódio da Igreja Ortodoxa da Macedônia, a dimensão geopolítica é intrínseca à ortodoxia e ao papel que as diferentes Igrejas Ortodoxas desempenham nos contextos nacionais em nome do princípio da "sinfonia" entre poder temporal e poder espiritual. De outra forma, não seria possível entender a luta pela independência de Moscou que Poroshenko e a Igreja Ortodoxa da Ucrânia travaram também após os eventos de 2014 na Praça Maidan, e a escolha e decisão de Bartolomeu de conceder o Tomos com o reconhecimento formal da autocefalia ucraniana de 2019 que representou um duro golpe para Moscou.
Bartolomeu foi descrito como um fantoche nas mãos dos Estados Unidos e seus aliados, uma descrição que muitas vezes ressurge mesmo nas polêmicas atuais. A recente agressão russa contra a Ucrânia só agravou o conflito religioso tanto dentro dos dois países envolvidos, mas também no contexto da ortodoxia global.
Quanto à Ucrânia, é provável, em caso de vitória de Moscou, que a recente e autônoma Igreja Ortodoxa da Ucrânia seja suprimida com a transferência das paróquias para a Igreja Ortodoxa Russa em nome da unidade tão evocada no contexto da doutrina do "mundo russo”. Em caso de sucesso da resistência ucraniana, parece evidente que a Igreja Ortodoxa Ucraniana ainda fiel a Moscou deveria encontrar um necessário modus vivendi com a Igreja independente, mesmo que existam rachaduras internas e a situação parece mudar rapidamente. Cerca de 400 padres da igreja fiel a Moscou criticaram de fato Kirill e 400 paróquias abandonaram os pró-moscovitas. O sínodo de 7 de junho da Igreja Ortodoxa Russa também decidiu "aceitar as dioceses de Dzhankoy, Simferopol e Feodosiya em subordinação canônica e administrativa direta ao patriarcado de Moscou e de toda a Rússia e ao santo sínodo da Igreja Ortodoxa Russa".
Em essência, a Crimeia, que havia permanecido sob a direção do Metropolita Onufrij e, portanto, da Igreja Ortodoxa Ucraniana pró-Rússia, e posta sob a proteção direta do patriarcado de Moscou. Provavelmente este seria o mesmo destino que recairia sobre os territórios de Donbass no caso de uma vitória definitiva dos russos.
De 27 de maio, com que se tomavam as distâncias de Moscou e se decidia proceder a uma modificação dos estatutos. Para o sínodo da Igreja Ortodoxa Russa, "qualquer discussão sobre a vida da Igreja Ortodoxa Ucraniana deve ocorrer dentro dos limites da normativa canônica", isso para reafirmar a primazia do controle de Moscou também para "evitar novas divisões na igreja".
Em março, o Verkhovnaya Rada, o parlamento ucraniano apresentou dois projetos de lei relativos à atividade da Igreja Ortodoxa, que permaneceu fiel a Moscou. O primeiro, relativo à "proibição do patriarcado de Moscou no território da Ucrânia", permitiria que a comunidade religiosa mudasse sua jurisdição eclesiástica (por exemplo, passando do patriarcado de Moscou para Kiev) com um voto de maioria simples da assembleia paroquial. O segundo está relacionado com a “liberdade de consciência e as organizações religiosas”, e visa proibir a atividade daqueles grupos religiosos que têm seu centro de governo fora do território ucraniano e “em um estado reconhecido pela lei como agressor militar contra a Ucrânia”.
Essa lei significaria que esses grupos religiosos seriam forçados a assinar um acordo com o Estado no qual se comprometem a "respeitar a soberania, a integridade territorial e as leis da Ucrânia". Uma vez obtido o registro como grupos religiosos, eles deveriam concordar com as nomeações de sua hierarquia central e regional com as autoridades estatais.
No fundo, trata-se de um modelo não muito diferente daquele que o Partido Comunista Chinês propõe na China e que, justamente, tem sido tão criticado no Ocidente. Por enquanto, a aprovação desses projetos de lei está suspensa, mas os sentimentos que os inspiram nos permitem entender as dificuldades da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia.
As histórias de algumas figuras proeminentes da igreja de Moscou nos indicam a profundidade das mudanças que ocorreram nos últimos meses. Hilarion Alfeyev, que durante anos foi chefe de relações exteriores do patriarcado de Moscou, recentemente tentou defender a atuação de Kirill enfatizando que a Igreja Ortodoxa Russa não pode assumir responsabilidade por decisões políticas e ações do exército russo.
Falando com a televisão austríaca Orf reiterou que a igreja "tem apenas a arma da oração".
No entanto, em 7 de junho, o sínodo dos bispos da igreja de Moscou decidiu removê-lo de seus encargos e nomeá-lo metropolita de Budapeste. Uma sede, aquela húngara, porém, relevante no contexto dos atuais equilíbrios internacionais da Rússia. A ação de Orbán foi de fato fundamental para evitar que Kirill acabasse na lista dos oligarcas sancionados pela União Europeia. Além disso, a Hungria é hoje, em escala global, um centro nevrálgico do conservadorismo intelectual mundial com forte presença também dos Estados Unidos.
É impossível não compreender também nesse episódio o significado geopolítico dos conflitos internos e externos da ortodoxia russa. O metropolita Antonij, que assumiu o lugar de Hilarion à frente do Departamento de Relações Exteriores do Patriarcado de Moscou, reiterou isso. Para Antonij, “a unidade universal da Igreja enfrenta uma série de ameaças, porque tentam impor-nos uma nova ordem da própria existência da Igreja, destruindo a anterior em que viveu durante tantos séculos. Querem nos impor uma eclesiologia alheia à ortodoxia”.
Parece antecipar por pouco as palavras de Kirill de 3 de julho passado, segundo as quais: “A Rússia não fez nenhum mal a ninguém, o mundo está se voltando contra ela por puro ódio, inveja e indignação”. Talvez não pensem assim no Vaticano, apesar de todos os esforços empreendidos para manter aberto algum canal diplomático.
O Papa Francisco e a Santa Sé fizeram todos os esforços para tentar manter um canal de comunicação aberto com Moscou. Muitas vezes, algumas declarações geraram acesas polêmicas e contestações por parte de alguns políticos ou intelectuais ocidentais.
Recebendo em audiência no Vaticano uma delegação do patriarcado ecumênico de Constantinopla por ocasião da solenidade dos Santos Pedro e Paulo, o pontífice pôde reiterar que os nacionalismos e as conquistas armadas “não têm nada a ver com o reino que Jesus anunciou”. Enfatizando a importância da unidade entre os cristãos, convidou a não ceder à tentação de "transformar o Pai de todos no Deus das próprias razões e das próprias nações". Esta é provavelmente também uma resposta à proclamação apocalíptica do dogma do "mundo russo" que em nome dos "valores tradicionais" deu ao mundo as valas comuns de Bucha e Mariupol.
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A deflagração geopolítica no mundo ortodoxo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU