27 Junho 2022
Nádia não quer mais falar em inglês. Ela o ensinava em uma escola primária em Mariupol. Ouvi-lo isso agora a faz pensar na classe que não existe mais. Volodymyr, seu marido, era um técnico especializado na siderúrgica Azovstal. Ele admite que não consegue mais separar a raiva do ódio. Ele tem palavras de amor apenas para Nádia e Diana, sua única filha, ferida mas milagrosamente salva. Eles estarão entre as principais testemunhas na investigação dos crimes de guerra russos. Eles aceitaram em nos encontrar junto com um investigador ucraniano que coleta os testemunhos e os envia ao Procurador-Geral de Kiev e ao Tribunal Penal Internacional. Deve permanecer anônimo porque tem conhecidos e fontes nas áreas ocupadas pelos russos: "Ouvi 250 testemunhos, os piores vêm dos sobreviventes de Mariupol".
A reportagem é de Nello Scavo, publicada por Avvenire, 24-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mykolaiv, na Ucrânis (Foto: Wikimedia Commons)
Sentados em frente ao teatro de Odessa, no dia em que a fonte volta a jorrar novamente, mas as trincheiras de areia permanecem no lugar, eles contam o horror por horas. Somente ao som das sirenes, durante o enésimo ataque com três mísseis nas proximidades de Mykolaiv e dois - estes interceptados - sobre Odessa, eles param, procurando com os olhos um abrigo. Perderam tudo quando esperavam que o ajuste das contas já fosse coisa do passado. Em 2 de maio de 2014, cerca de 50 pró-russos foram mortos nos confrontos na Casa dos Sindicatos em Odessa.
Odessa, na Ucrânia (Foto: Yarl.PL | Wikimedia Commons)
Em 24 de janeiro de 2015, um foguete russo foi lançado em Mariupol: mais de 50 mortos. Olho por olho, o jogo poderia ter terminado ali. Seu testemunho é preciso e detalhado. Eles têm fotos e imagens porque querem ser acreditados: "No começo, quando chegamos, nem mesmo aqui acreditaram no que a gente estava contando, depois todo mundo viu o que fizeram com a nossa cidade". Eles moravam no apartamento 106 de um condomínio no "Distrito 17". No nono e último andar, aquele com a melhor vista. O pior é correr até os porões, quando as rajadas de baixo e as bombas de cima são direcionadas para a cidade. Subindo e descendo as escadas a cada chamada das sirenes.
Mariupol, na Ucrânia (Fonte: Olegzima | Wikimedia Commons)
Então, em 12 de março, às 4h13 da manhã, um míssil atingiu o prédio. O relógio na única parede ainda de pé parou naquele momento. E também sua vida anterior. Farpas nos braços, fragmentos na barriga, a filha com uma costela quebrada. O vizinho do apartamento 105 foi o que ficou pior. Todos os funcionários da siderúrgica se conheciam. Uma cidade dentro de uma cidade onde ninguém era verdadeiramente um estranho. Apesar do pulso sangrando e da dor de cabeça provocada pelo deslocamento de ar e pelo trauma, Volodymyr protege sua esposa, filha e depois leva ao abrigo seu vizinho, que morrerá no hospital dias depois.
Certa manhã, os militares russos, diz sua esposa em lágrimas, levaram os soldados ucranianos feridos que estavam hospitalizados. Eles os levaram para o gramado lá fora. "Eles os fizeram cavar algumas covas, talvez para assustá-los", especula Nádia. Escondidos no porão com centenas de outros deslocados, não conseguiam ver mais nada.
"No dia seguinte - acrescenta – as covas haviam sido todas tapadas e os soldados feridos desaparecido". Certa noite, talvez alguns militares chechenos ou da Ossetia abriram caminho entre os civis apontando as armas. Eles deram uma volta e então viram um menino de 12 anos. "Uma criança linda como um anjo, com olhos azuis e cabelos loiros", relata a professora. Foi a única vez que conseguiram parar as armas com as mãos: "Os soldados disseram que gostavam daquele menino e por isso o pegaram para levá-lo embora". Uma revolta nasceu, e também poderia terminar em carnificina. Então algo atraiu os militares para fora. E eles desistiram”.
“Tínhamos que sair de lá. Estávamos na lista de pessoas a evacuar. Tínhamos que esperar o ônibus de evacuação número 112, mas depois de um mês eles ainda estavam no 57”, explica Volodymyr como para se justificar por ter fugido no dia seguinte à tentativa de sequestro daquela criança. Encontraram um velho carro abandonado, com os vidros quebrados, mas ainda funcionando. Porém não tinha combustível suficiente. Um mecânico vendeu-lhes 20 litros de gasolina. Preço: 8.000 grívnias, 250 euros. Não tiveram outra escolha e pagaram. Finalmente, fora de Mariupol, abandonaram o carro que ficou sem combustível e percorreram caminhando grande parte da estrada para Zaporizhya. Nove dias para 227 quilômetros.
Um percurso que Volodymyr cobria antes da guerra em menos de 3 horas. De lá, eles foram transferidos para Odessa. “Não temos casa, não temos roupa, não temos emprego. Nem sabemos como fazer Nádia estudar. Mas estamos vivos e ainda juntos”. Vocês retornariam para Mariupol se fosse liberada? "Enquanto existir Putin, ninguém aqui pode se sentir seguro."
Para eles está claro de quem é a responsabilidade. Mas não será fácil prová-lo perante o Tribunal Penal Internacional. Também graças à hipocrisia proverbial de muitos estados. Os países que pediram a intervenção da justiça internacional para apurar os crimes de guerra ignoraram deliberadamente um detalhe. Como a Rússia e a Ucrânia não são países signatários do TPI, o Tribunal Penal de Haia (Kiev iniciou o processo de adesão submetendo-se à jurisdição internacional) iniciou investigações apenas porque, de acordo com o estatuto, um certo número de estados membros solicitou isso.
No entanto, "a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão perpetrado na Ucrânia ainda não foi apoiada e endossada por pelo menos um dos Estados Partes", denuncia David Donat Cattin, secretário da organização internacional de parlamentares "Parlamentarians for Global Action", que pediu aos países que compensem esse descuido. De momento ninguém respondeu, pelo que "a competência do TPI - adverte - atualmente não permite levar à incriminação dos dirigentes que planejaram, ordenaram e levaram a cabo a guerra de agressão". Garantindo que Vladimir Putin durma sonos tranquilos.
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“Nós, espectadores do horror. Eis a verdade sobre Mariupol” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU