08 Junho 2022
"O cristianismo ferido por uma justificação insensata da guerra, poderia inventar um gesto de extraordinária profundidade profética para a futura harmonia nas Igrejas e no continente", escreve Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, em artigo publicado por Domani, 07-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A guerra na Ucrânia, que não mostra sinais de diminuir, coloca muitas coisas em movimento para o futuro. Menciono duas delas:
a) ainda será possível afirmar os valores morais tradicionais após sua identificação com os motivos da guerra de agressão de Putin pelo patriarca de Moscou, Kirill?
b) A guerra fere a credibilidade do cristianismo. Em Kiev morrerá também o ecumenismo, isto é, o diálogo entre as Igrejas cristãs, particularmente na Europa?
Para Kirill, se a guerra pode ser qualificada como "metafísica", como confronto entre o bem e o mal, como um chamado ao "martírio" para a Igreja russa, é também pela imoralidade e decadência do ethos ocidental. Aborto, ataque à família tradicional, teorias de gênero, engenharias sociais (melting pot) são “ideias perigosas baseadas na negação da herança cristã e na aceitação do relativismo moral como uma espécie de princípio sobre o qual construir as relações entre as pessoas”.
"Na situação atual da política mundial, a preservação dos valores tradicionais é chamada a se tornar a direção estratégica da Federação Russa" (Kirill no Encontro com os parlamentares, 17 de maio).
“Tempos especiais estão chegando para o nosso povo e especialmente para a nossa Igreja. Que Deus nos conceda nessas circunstâncias responder ao nosso chamado de acordo com a nossa promessa, como hierarcas, como sacerdotes, e ser fiéis ao Senhor e Salvador até a morte” (aos hierarcas de sua Igreja, 24 de maio).
A questionável conexão entre a afirmação da fé, a prática moral e o ethos coletivo é encontrada em muitos textos da Ortodoxia Russa. Nos fundamentos do ensinamento da Igreja Ortodoxa Russa sobre dignidade, liberdade e direitos humanos passa-se da afirmação do homem como imagem de Deus chamado à "deificação" para a afirmação da "relação direta entre dignidade humana e moralidade".
Reconhecendo o valor da liberdade, a Igreja defende que tal liberdade “inevitavelmente desaparece quando a escolha é feita pelo mal”.
Estamos livres para o bem, determinado pela fé, e não para o mal. É a (suposta) contradição dos direitos humanos ocidentais que não levam em conta "a dimensão moral da vida e da liberdade do pecado".
É previsível que tudo isso seja entregue ao saudosismo diante da evidente contradição de afirmar o bem e justificar uma guerra de agressão. Mas a reivindicação dos valores morais tradicionais e sua expressão jurídica também é apoiada pelos episcopais católicos da Europa Central, em particular da Polônia, República Tcheca e Hungria.
Na súplica à Nossa Senhora de Iasna Gora (2 de maio), o presidente dos bispos poloneses disse: “Estamos vivendo uma nova fase de descristianização de nossa sociedade, cultura, ciência, educação e mídia, favorecida por organizações supraestatais que não têm legitimidade democrática. Em nome do bem da humanidade e da autodeterminação formal, procuram introduzir o aborto, as relações homossexuais, a mudança de sexo ou a sexualização precoce das crianças. E o objetivo é desintegrar a natureza corporal e espiritual do homem e despojá-lo de seu ser ‘pessoa’".
A assonância é evidente em um documento conjunto polonês-russo assinado em Varsóvia em 2012.
A censura da posição russa arrastará a dos países de Visegrad na irrelevância, apesar das posições duras dos bispos contra Putin e sua guerra?
Na realidade são dois modelos argumentativos diferentes. Para Kirill, a identificação da fé com a ética pessoal e o ethos coletivo impede de fato qualquer discussão.
Os episcopados reconhecem o espaço entre fé e valores "naturais", mas reivindicam que a Igreja interprete seus limites intransponíveis. Estes são os chamados "princípios não negociáveis".
Um terceiro modelo interpretativo, ao qual o Papa Francisco se refere, parte não da doutrina, mas do Evangelho, reconhecendo o desenvolvimento histórico das indicações morais. E, sem abrir mão de nada, atribui ao debate social (do qual a Igreja faz parte), o progressivo reconhecimento de sua normatividade. A cultura leiga ocidental deveria levar isso em conta para não cair em um triunfalismo acrítico e perder preciosas interlocuções.
A guerra dividiu as Igrejas Ortodoxas entre o tronco eslavo (em particular a Rússia e a Sérvia) e o helênico, dividindo também a diáspora ortodoxa no mundo. Isolou a Igreja Russa da Igreja Católica e das Igrejas Protestantes e Anglicanas.
O ecumenismo também estará entre as vítimas da guerra, após um século de paciente crescimento? A decisão da Igreja Ortodoxa pró-Rússia na Ucrânia (Metropolita Onufrio) de cortar as pontes institucionais com Moscou não a aproximou da Igreja "autocéfala" local. Ódios e ressentimentos antirrussos são profundos demais para uma fácil reconciliação.
No entanto, a Igreja Greco-Católica, claramente alinhada com a guerra de defesa, tem na sua história um depósito de credibilidade e uma hipótese para uma solução que poderá emergir no pós-guerra. Hoje não é mais motivo de divisão em relação à Ortodoxia local.
Há décadas os principais arcebispos (a mais alta autoridade entre os greco-católicos), de Slipy a Husar, até o atual, Sviatoslav Shevchuk, cultivaram a expectativa em um único patriarcado cristão em Kiev, capaz de unificar a ortodoxia local e compreender a comunidade greco-católica.
A unidade de rito, língua e história permitiria uma dupla jurisdição e uma dupla obediência, a Constantinopla e a Roma.
Em uma declaração de há dez anos atrás, Schevchuk disse: “Não haverá um passo adiante na unidade se ignorarmos a unidade daqueles que são herdeiros da única Igreja em Kiev. Quando Husar anunciou o retorno do arcebispado de Lviv a Kiev, proferiu um discurso histórico sobre o ‘um único povo de Deus nas sagradas montanhas de Kiev’, no qual expressou uma visão sobre a construção de uma única igreja, passando do exclusivismo confessional a uma comunhão de confissões. Posso dizer que compartilho de sua visão”.
Uma hipótese semelhante foi expressa do lado ortodoxo pelo Centro de Estudos Ecumênicos de Salônica (Cemes) em um apelo em 12 de abril passado. A Ucrânia, que é o centro do atual cisma entre as Igrejas Ortodoxas, poderia desencadear o início de uma experimentação surpreendente: um único patriarcado com uma dupla obediência eclesial entre Oriente e Ocidente.
O cristianismo ferido por uma justificação insensata da guerra, poderia inventar um gesto de extraordinária profundidade profética para a futura harmonia nas Igrejas e no continente.
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Ucrânia, que espaço haverá para os valores tradicionais após a guerra abençoada pelo Patriarca Kirill? Artigo de Lorenzo Prezzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU