24 Abril 2020
Se alguém contribuiu para difundir mundialmente o conceito de resiliência - ou seja, a capacidade de superar a adversidade -, é o neurologista e psiquiatra francês Boris Cyrulnik, de 82 anos. Acaba de publicar Escribí soles de noche (Gedisa), onde se aprofunda na criatividade humana para superar o trauma. É decano da Universidade de Toulon e assessor de Emmanuel Macron na política educacional.
A entrevista é de Carlos Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal, 21-04-2020. A tradução é do Cepat.
A incerteza se apoderou da humanidade. Diga-me: como saímos desta?
Temos uma vantagem. Não estamos entrando em um território desconhecido. Desde que o ser humano surgiu sobre a Terra, padecemos epidemias: peste negra ou bubônica, cólera, encefalites virais... E avançamos. Como espécie, sabemos do que se trata.
E como indivíduos?
O confinamento esmaga psicologicamente. Resistem melhor os que já tinham uma boa disposição. Sua fortaleza se baseia em três fatores: confiança em si mesmos, um domínio da linguagem que permite contar que está acontecendo com eles. E ter alguém a quem contar, ou seja, uma rede afetiva de familiares e amigos.
Nem todos se adaptam...
Bom, também ajudam elementos externos, como ter uma moradia espaçosa, um jardim... Evidentemente, nem todo mundo desfruta dessas vantagens. Por isso, é muito importante ter um mundo interior rico. Estar acostumado a meditar, a ler, a escrever, desfrutar a música... A espiritualidade também ajuda. Inclusive, cozinhar.
O que diria para os que se veem excedidos?
Que todo mundo tem medo. Em um contexto como este, é difícil manter a serenidade. Mas o medo é um mecanismo de defesa. Caso não se apodere de você, lhe mantém em alerta.
Desejamos recuperar nossas vidas, mas não sabemos se tudo voltará a ser como antes...
Se não avaliarmos as causas que nos conduziram ao desastre, estamos condenados a que se repitam. Os napolitanos, após a erupção do Vesúvio, voltaram a construir suas casas no caminho dos rios de lava. Durante uma crise, é preciso se proteger. Mas não basta. É preciso compreender as causas. E essa compreensão nos levará a organizar nossa vida em comum de uma maneira diferente.
Muito diferente?
Olhe, após cada catástrofe há uma revolução cultural, inclusive biológica. Toda evolução, seja de animais, plantas ou pessoas, acontece mediante saltos para o desconhecido. Uma estrela que se apaga é o final. Nesse caso, não há resiliência possível. Mas sempre que restam pedaços dispersos, podem voltar a se unir. A vida é retomada após um desastre. Mas serão outra flora, outra fauna, outra maneira de ver o mundo que vão dominar a partir desse momento.
Estamos diante de uma crise existencial, no sentido em que ameaça a própria existência da sociedade conforme estava organizada?
Sim. Mas lembre-se que neste planeta ocorreram cinco extinções em massa que destruíram 95% das espécies vivas. Passamos por glaciações e aquecimentos. O aumento do nível dos mares já acabou com plantas, animais e alguma civilização.
Quando as águas se retiram, encontramos fósseis de organismos marinhos na montanha, ou restos de culturas desaparecidas. Mas o ser humano se adapta. Durante os períodos de frio, tornou-se caçador, nas épocas temperadas, agricultor. Depois do coronavírus, haverá mudanças profundas, novas leis e valores. É a regra.
Podemos tirar alguma lição de tudo isso?
Durante a vida do ser humano, não faltam traumas. Algumas pessoas não conseguem superá-los. As que acabam com estresse pós-traumático ficam ancoradas nos acontecimentos de seu passado. Já não conseguem desfrutar a vida, amar, trabalhar. Ao contrário, outros transformam sua desgraça em uma experiência. Tornam-se escritores, psicólogos, educadores ou filósofos, e dão sentido ao que viveram. Compartilham isto e ajudam outros.
Sinceramente, acredita que o coronavírus trará algo positivo?
Sem dúvida, quando a pandemia for superada refletiremos. E discutiremos a maneira como construir uma nova forma de viver juntos. Temos a referência da peste negra. Em poucos anos, morreram a metade dos europeus. Já não era possível plantar, não havia suficiente mão de obra. Desapareceram vinhas e campos de cereais.
Até mesmo algo tão terrível como aquilo teve efeitos inesperados. A mão de obra dos sobreviventes se tornou algo tão caro que os servos desapareceram. Antes da peste de 1348, a maioria dos seres humanos se vendia como parte da terra. As cidades perderam população, mas as casas ficaram mais baratas e isto facilitou o êxodo rural.
Quando eu nasci, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, não havia Seguridade Social, nem um sistema de pensões. Mas após cada crise, há mudanças culturais. Depois, olhando em perspectiva, as consideramos inevitáveis, ainda que agora o que nos chega é confusão e desconcerto. Depois do coronavírus, acredito que a família e os casais se verão reforçados.
Emmanuel Macron disse que estamos em guerra.
Eu prefiro falar em resistência. A humanidade se reorganiza. Talvez vivamos uma mudança com uma profunda raiz ecológica. Uma vida mais pausada. A economia mundial, em estado de hibernação, já provocou uma diminuição da poluição. Na China, nesses meses, calcula-se que houve uns 10.000 casos a menos de câncer.
A própria vida de Boris Cyrulnik é uma epopeia. De família judia, seu pai desapareceu em Auschwitz. Sua mãe, também vítima do Holocausto, enviou Boris para uma pensão para que não fosse detido. “Quando tinha seis anos, caí em uma revista com outras 1.700 pessoas, mas escapei graças a uma mulher que me escondeu. Fomos os dois únicos sobreviventes... Minha tia me encontrou depois da guerra. Tinha apenas começado no colégio, mas recuperei o atraso. Os primeiros anos de vida são decisivos, assim como os primeiros movimentos de uma partida de xadrez. Contudo, isso não quer dizer que não seja possível superar um começo ruim”, resume.
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“Após uma catástrofe, há uma revolução cultural”. Entrevista com Boris Cyrulnik - Instituto Humanitas Unisinos - IHU