08 Abril 2020
Um novo mundo ao ritmo da pior pandemia dos últimos 100 anos. Novos valores, nova ordem, com uma globalização em crise, a ameaça do autoritarismo como consequência, o declínio dos partidos, a nova economia e os riscos em uma sociedade pós-coronavírus. O novo racismo antichinês e contra os turistas empesteados, a solidariedade como único caminho para frear um novo despotismo.
O doutor Michel Wieviorka é um dos sociólogos mais prestigiosos e que pode contribuir para redesenhar o marco deste novo mundo, que irá crescer como consequência do coronavírus e seu devastador efeito social e econômico. Um pensador de uma manhã tão incerta, como inquietante. Por muito anos, diretor da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris, e atual titular da Fundação Maison des Sciences de l’Homme, é uma referência indispensável em dias de absoluta convulsão social. Seu último livro “Por uma democracia de combate” é como uma antecipação desta crise.
“O que me faz muito pessimista, para falar de maneira direta, é o fato de não ver novas forças políticas. Não consigo ver atores que sejam capazes de pensar, de estruturar e organizar politicamente um novo mundo. O que eu mais consigo ver são as forças populistas, nacionalistas, extremistas, que são mais fortes hoje em dia. O futuro será o que estivermos preparando hoje, o que atores políticos serão capazes de dizer, com o apoio, talvez, de intelectuais”, diagnosticou, de sua casa em Paris, em uma conversa telefônica com Clarín.
A entrevista é de María Laura Avignolo, publicada por Clarín, 04-04-2020. A tradução é do Cepat.
Com esta pandemia global, estamos frente a um novo mundo? Como será este novo paradigma? Como renascerá esta sociedade pós-vírus?
Não se sabe. Há pessoas que dizem: “Depois da crise, vão esquecê-la e a vida será como antes”. Há outros que dizem: “A vida será totalmente diferente e não podemos imaginá-la porque as coisas serão muito diferentes”. Entre os dois extremismos, há pessoas que dizem: “Muitas coisas mudarão, mas há coisas que não mudarão”.
Pessoalmente, penso que, após esta crise, muitas coisas mudarão, incluindo diferentes níveis: o nível geopolítico ou internacional. Todos os dias se nota como os Estados fecham as fronteiras. Todos os dias é possível ver o egoísmo dos Estados, as mentiras de certos Estados. A imagem da China é uma coisa muito interessante e muito importante. Antes da crise, a China era muito forte. Hoje, já se diz muito mais. Diz-se: “Os outros países são dependentes da China”, por sua indústria farmacêutica, automotora. Isso de certa maneira irá introduzir mudanças em nossos conceitos da globalização. Não penso que a globalização irá acabar. Acredito que irá modificar, mas o que irá mudar: o tema da industrialização de certos países.
Há temas tabus?
Há outras coisas que não se falam: o que acontece no Oriente Médio. Hoje, o ISIS está mais forte que nunca nesta parte do mundo porque os estados que ajudam o Iraque e a Síria a combater o ISIS não querem participar. Há dimensões geopolíticas e sociais dentro de cada país. Há dois temas muito importantes em um país como o meu. Por um lado, agora, estamos totalmente na era digital, na que Manuel Castells chamou de “a sociedade da comunicação, a sociedade das redes”.
Estamos confinados, não podemos sair de casa, mas podemos nos comunicar com o mundo inteiro de maneira permanente com o Skype, WhatsApp, Zoom, o celular, Internet. Estamos em comunicação e isolados ao mesmo tempo. As crianças que hoje não podem ir para a escola têm muitos programas a distância. As empresas onde não se pode ir trabalhar aplicam o teletrabalho, que faz com que eu possa trabalhar em minha casa e estar conectado com outros que trabalham comigo. Por milhares de razões, vivemos muito mais fortes que antes em uma era numérica, digital.
O sociólogo Ulrich Beck fala de “uma catástrofe emancipadora”. Em sua avaliação, será assim ou haverá perdedores e ganhadores nesta crise?
Fui muito amigo de Ulrich Beck e compartilho muitas de suas ideias. Ulrich era um otimista. Sua ideia de “catástrofe emancipadora” é que, quando há uma crise como a de hoje, não há somente coisas negativas, também positivas. Talvez estejamos vivendo em um mundo onde há mais solidariedade. Na França, é muito claro que hoje as pessoas dizem: “Não queremos mais o egoísmo do neoliberalismo”. A brutalidade, as desigualdades, o fato de haver pessoas riquíssimas, que são muito poucas, e que haja muitas pessoas que não têm nada para comer. Mais e mais pessoas dizem: “Queremos um Estado forte para introduzir políticas públicas de educação, de saúde, de segurança, de redistribuição”. A ideia do retorno do Estado providencial. É importante. Há coisas positivas.
Contudo, não se pode ser muito otimista, há muitas coisas negativas. Há outro aspecto muito importante nesta crise. É o fato de que, se por um lado entramos na era digital, ao mesmo tempo entramos em uma era onde há pessoas que trabalham de maneira muito concreta. Na França, fala-se muito das mulheres que trabalham nos supermercados, porque se você quer comer, precisa de pessoas que trabalhem nos supermercados. Nunca se falou destas pessoas antes da crise. Hoje, já se fala muito delas. Precisamos de pessoas para limpar as ruas. Hoje, já sabemos que se estas pessoas não trabalham, a epidemia não será somente com o vírus.
Descobrimos a importância do trabalho concreto, ao mesmo tempo em que entendemos mais que estamos na era digital. As duas coisas existem ao mesmo tempo. Isso deve gerar influência sobre a vida política, que é um tema muito importante. Estamos em um mundo de populismo, de “fake news” e de crise dos sistemas políticos. Com esta crise, penso que estas coisas vão mudar. As pessoas vão dizer: “Queremos outras coisas” desta crise dos sistemas políticos.
Existe uma possibilidade de utopia, de refundação, com novos valores, com uma nova economia, ou novamente vencerão os piores?
Em 1931, 1932, no mundo havia uma crise econômica terrível. De um lado do Atlântico tínhamos Adolf Hitler e do outro lado Roosevelt e o New Deal. Da crise podem sair fórmulas políticas terríveis. Hitler ou se formula políticas muito interessantes e positivas, como Roosevelt. As coisas serão o que estivermos preparando hoje. E o que me faz muito pessimista, para falar de maneira direta, é o fato de não ver novas forças políticas. Não consigo ver atores que sejam capazes de pensar, de estruturar e organizar politicamente um novo mundo. O que eu mais consigo ver são as forças populistas, nacionalistas, extremistas, que são mais fortes hoje em dia. O futuro será o que estivermos preparando hoje, o que atores políticos serão capazes de dizer, com o apoio, talvez, de intelectuais.
Neste momento, estamos diante de um capítulo darwiniano da vida? Que papel terá a saúde, a proteção social, nessa sociedade que vem?
Quero dizer que o que você disse é a verdade, mas existe também o contrário. Formas muito admiráveis de solidariedade, de humanidade, pessoas que ajudam os outros. Há coisas maravilhosas em todo o mundo. É verdade que há uma dimensão um pouco darwiniana, um pouco egoísta, um pouco suja, às vezes. O tema da saúde hoje aparece como central porque a saúde é a vida. O resultado desta crise será diferente, se temos ou não temos em um país um sistema de saúde que funcione bem. Meu país tem um sistema de saúde que funciona não tão ruim, não perfeitamente, mas não tão ruim, com muitas pessoas que trabalham com técnicas muito modernas.
A saúde hoje em dia é um tema nacional existente dentro de cada país, no qual podemos ver se somos capazes de atuar. Mas o conhecimento médico, o conhecimento científico, é global. Hoje em dia, precisamos mudar o sistema internacional para produzir vacinas, para produzir os meios de enfrentar uma epidemia como esta. E o conhecimento científico com “open access”, com a capacidade de comunicar em nível mundial, com todos os que trabalham neste campo, também faz parte da capacidade de salvar vidas humanas. Os sistemas de saúde pública serão centrais, serão muito importantes e a ciência em sua capacidade de atuar globalmente será também muito importante. Por isso, as organizações internacionais são muito importantes.
E a moral? Porque falamos da solidariedade, será possível construir equidade ou acabaremos em uma concentração econômica nas mãos de poucos, como até agora, que de alguma maneira gerou esta crise?
Eu não vou dizer que a crise é antes de tudo econômica. A crise é antes de tudo natural, é um vírus que vem de animais. Então, a crise não é humana quando começa. Mas você tem razão. Depois que começa a crise, seus efeitos são econômicos, financeiros, sociais, são humanos. É importante discutir que tipo de sociedade e em que tipo de mundo queremos viver. Penso que se não estamos em democracia, ou seja, com a capacidade de discutir, de negociar, de chegar a compromissos e de saber o que queremos na maior parte de um país como políticas de saúde, poderes autoritários vão decidir. Por outro lado, as forças econômicas sempre serão mais brutais. Por isso, precisamos de muito mais democracia para fazer com que a crise natural não seja também uma crise econômica e social, claramente.
Tem alguém pensando como será a ideologia, qual será o papel do populismo? Trump e Boris Johnson sairão fortalecidos ou enfraquecidos? Qual será o papel da ultradireita e da ultraesquerda? Essas são as perguntas que irão construir o futuro?
Em todo o mundo, mas não sabemos exatamente o que acontecerá. Porque não sabemos se a crise acabará dentro de um mês ou dentro de seis meses. Não sabemos se as coisas, após a crise, terão uma certa continuidade com lógicas que apareceram antes ou se novas lógicas totalmente distintas irão surgir. Há muitas coisas que não sabemos. O que sabemos com muita clareza é que as forças populistas ou nacional-populistas, direitista extremista – eu não critico a direita clássica, eu critico as forças extremistas –, são mais e mais fortes. Porque estes atores são capazes de falar em nome da nação, que é um tema muito forte quando as fronteiras são fechadas. Mas também são capazes de falar em nome do apoio social aos mais pobres. Se há muitas pessoas, por exemplo, na Polônia, que estão com o governo populista-nacionalista antissemita daquele país, estes governos sabem tomar medidas sociais. Essa mistura de medidas sociais, de distribuição e nacionalismo é muito forte e é por isso que funciona. Se não houver outras respostas à crise, seremos como a Hungria ou Polônia, claramente.
Após a saída do confinamento, como avalia que será a xenofobia, o racismo, a anti-imigração nesta nova sociedade que irá nascer?
Esses são temas que existem hoje em dia de maneira nova. Hoje, em muitos países, há mais antissemitismo que nunca, em partes muito distintas da população. Não somente em setores muçulmanos. Há muito antissemitismo. Há muito racismo antichinês. Pessoas que não querem comprar coisas que venham da China, que dizem coisas muito sujas sobre os chineses. O racismo, o antissemitismo e a xenofobia se desenvolvem no mundo todo. Na China, há problemas para as pessoas que vem desta região da China, onde apareceu o vírus. Há um racismo contra as pessoas de Wuhan e em Hong Kong há racismo antichinês do continente. Há muitas formas de racismo que se desenvolvem. Se após a crise entramos em uma era de nacionalismo, de populismo, também entramos em uma era de racismo, de xenofobia e de antissemitismo. É o mesmo problema com formas distintas.
Existe também um outro movimento contrário aos turistas. Em todos estes países que querem se defender do vírus, ninguém aceita os estrangeiros, que antes eram recebidos de braços abertos. Todos são considerados como se trouxessem a peste.
Isso é a verdade em nível global, como em nível local. Na França, há pessoas que vivem no campo, longe da cidade e em lugares onde os moradores da cidade têm a sua casa para as férias. No confinamento, estas pessoas vão para esses povoados. Os moradores dos povoados às vezes dizem: “Não queremos estas pessoas. Estas pessoas são perigosas”. É uma forma de xenofobia. Isso se dá em nível global, como em nível mais local.
Outro fenômeno desta crise é o controle social. A China controlou toda a sua população, inclusive com os drones. Será uma sociedade mais vigiada pelos Estados? Os cidadãos serão mais controlados por seus Estados?
Hoje em dia, é útil controlar para lutar e enfrentar a crise. Mas há países como Taiwan ou como a Coreia do Sul que utilizam também o celular e coisas muito digitais para controlar o país. Mas o controle é para um momento preciso. Não é um controle para sempre. É possível desenvolver um controle que talvez não será muito politizado, se posso dizer assim. O problema é que é um perigo para o mundo inteiro transformar momentos em que é necessário saber quem está doente, onde se vive e com quem se fala. Talvez seja necessário para lutar e enfrentar o vírus.
Outra coisa é utilizar essas possibilidades de controle para fazer com que haja menos liberdades em geral. Que existam grupos – os pobres, as pessoas idosas ou os migrantes – muito mais controlados que outros. Que a liberdade de sair, de ver quem você deseja, de opinar seja cada vez mais difícil. Então, o problema não é tanto o hoje, mas, sim, o amanhã. O que acontece quando a crise acabar e surja a possibilidade de controlar muito mais a população. Esse é o tema. Eu me sinto do lado de todas as organizações, redes e grupos que estão mobilizados para dizer que é preciso tomar cuidado e não aceitar medidas de exceção muito duras.
A China será um modelo, após esta crise sanitária, ou as pessoas vão abandoná-la e recuar em cada país, em termos industriais, em termos de produção, de fornecimentos?
Hoje em dia, para o mundo inteiro, a China está seduzindo e há muitas críticas. Dizem que a China é muito eficaz e há outros que dizem que sim, mas a China é muito liberticida, mata as liberdades. A imagem da China é muito ambivalente hoje. Se olhamos para a história da crise, na China começa com “o mentiroso”. Começa, se vocês se lembram, com este doutor que em dezembro, antes de todos os outros, disse: “Há um problema, talvez há uma epidemia que está chegando”. E o governo disse: “Este tipo é muito perigoso, é preciso colocar este sujeito na prisão”. E o sujeito morreu com esta epidemia. Então, o governo chinês começa com mentiras, com práticas que não são aceitáveis em uma democracia, mas depois aparece como mais eficaz. Hoje, se diz que talvez não seja tão eficaz, que talvez existam muitas mais pessoas que morrem do que é dito pelo governo da China.
A imagem da China não é estável e há outros temas que são temas econômicos. Há países que dizem: “Eu não quero ser mais dependente da China, não quero mais saber de que quando necessito de certas coisas, devo comprar da China”. Hoje, já temos um problema com um avião, que já estava pronto para a França, com máscaras. Pagamos duas vezes mais. E as máscaras foram para os Estados Unidos. Essas coisas por parte de países que são civilizados não são aceitáveis. Então, o que é exatamente a diplomacia da China? É um país útil para seus habitantes, mas também para o mundo inteiro? Tudo isso será muito mais discutido no futuro.
Temos outro fenômeno, que é o do negacionismo. Boris Johnson demorou semanas para implantar a quarentena porque privilegiou a economia. Donald Trump negou durante muitas semanas o vírus. Que papel terão tais tipos de atitudes e, além disso, essa decisão deles em privilegiar a economia sobre a vida, suspender a quarentena em favor da manutenção de sua economia e das finanças?
Esse é o problema de todos os governos no mundo. É preciso saber como articular, quando possível, como lidar com a contradição entre a economia e as vidas humanas de hoje. É um tema muito difícil. Todos os governos estão olhando como fazer para salvar a economia, sem que as vidas humanas estejam muito em risco. Essa é uma contradição, é muito difícil. O que aconteceu do meu ponto de vista com Donald Trump é que ele disse coisas totalmente falsas quando começou. Depois, disse outras coisas, mas todo mundo sabe que Donald Trump é assim. E que o problema de líderes de tipo populista é que eles não perdem apoio popular quando dizem coisas totalmente contraditórias.
Você e eu estamos com as pessoas de razão. Não podemos dizer uma coisa e seu contrário. Mas quando você é um líder populista, pode dizer uma coisa e seu contrário e não irá perder vozes na opinião. Nas pesquisas na América do Norte, hoje, não se diz que Trump está perdendo as eleições. É dito que ele tem o seu apoio popular. Por isso, ele pôde dizer um dia que “não é tão grave” e, no dia seguinte, disse que “será muito grave” e disse que “é preciso salvar as vidas ou salvar a economia”. “Ele pode dizer coisas muito contraditórias. Isto nunca é um problema para esse tipo de líder.
Ao mesmo tempo, retornaram as fronteiras, cada país impõe sua fronteira. A União Europeia está em perigo com esta resposta dada à crise, não como união, mas como os 27 países atuando individualmente na crise de saúde?
A União Europeia não foi capaz de propor qualquer maneira de enfrentar coletivamente o problema, é muito central quando começa. A primeira decisão foi a de fechar fronteiras dentro da União Europeia, que é um pouco o contrário de Europa. Mas, depois, a União vem atuando muito em termos econômicos. Está apoiando ou tomando medidas para que muito dinheiro possa ser injetado no sistema financeiro. Então, hoje, há uma ação econômica da União Europeia.
Contudo, não é o suficiente e o tema italiano é muito importante. É preciso apoiar, é preciso salvar a economia italiana, que é uma situação terrível. Amanhã será o mesmo com a Espanha, penso eu, que são dois países onde há muitos mais mortos que em outros. Contudo, para isso é necessário que os Estados estejam de acordo, e hoje em dia não são todos os Estados que realmente concordam. Esta crise será um momento decisivo para saber se a União Europeia é capaz realmente de ser uma União ou se é apenas um sistema tecnocrático, com um certo poder econômico e pouco mais.
A reação de Emmanuel Macron foi uma reação gaullista quase marcial. Você acredita que ele está exercendo a liderança ou não?
Penso que agora não é o momento de criticar um dirigente como Emmanuel Macron. Amanhã, após a crise, vemos o que devemos criticar. Mas, hoje, seu governo fará o que pode e ele é um destes líderes que é capaz de falar em nome de seu país, mas também em nome de valores em nível de Europa [...] há poucas vozes deste tipo em nível de Europa. Então, hoje, não vou criticá-lo, amanhã, talvez depois da crise, porque há problemas em seu governo. Mas isso é para amanhã, não é para hoje.
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“Depois desta crise, muitas coisas mudarão no mundo, com novos valores a nível global”. Entrevista com Michel Wieviorka - Instituto Humanitas Unisinos - IHU