A ressignificação da fé e a nova época axial. Conferência de Vito Mancuso

Em conferência promovida pelo IHU, dentro do Ciclo de Estudos Manifesto Terrano – construindo uma geofilosofia de Gaia, teólogo aponta que a finalidade do que chama como 'fé filosófica' é a unificação de si com o mundo

Foto: Pixabay

Por: Edição: João Vitor Santos | Tradução: Patrizia Cavallo | 27 Janeiro 2023

Todos e cada um de nós já deve ter sentido a sensação de estarmos como que fora de eixo, desalinhado e com a perda de um referencial, uma sustentação. Para o teólogo italiano Vito Mancuso, isso é bem mais do que uma sensação, o que o leva a desenvolver o que chama de fé filosófica. É a forma de buscar este referencial de sustentação que parecemos ter perdido. “Os seres humanos, desde sempre e em praticamente todos os lugares, sentiram a necessidade da existência desse eixo. Isso significa que se não existir fora de nós, com certeza existe dentro de nós, dada essa necessidade”, destaca, na conferência realizada em 14-11-2022.

Segundo o teólogo, “quando um indivíduo constrói de forma responsável e consciente a própria existência, ele percebe a necessidade de um eixo”. Tal eixo é chamado por ele como axis mundi. Consiste em uma força vital potente que nos move para o bem e confere sentido à nossa própria existência. “A tarefa da busca espiritual contemporânea é fazer com que os seres humanos, primeiramente, entendam a si mesmos e, se conseguirmos isso, fazer com que as pessoas entendam também que o axis mundi não é externo, mas é interno”, detalha.

Logo, tal força pode também ser compreendida como Deus, afinal, Mancuso mesmo reporta que desde sempre a humanidade buscou uma conexão com as divindades para dar sentido à própria existência. Em grande medida, essa pode ser uma linha de resposta para a ideia de que, em nossos tempos, Deus está morto e não consegue mais nos conferir tal sentido para nossa existência. Porém, a novidade que traz e na qual insiste é que esse Deus, esse eixo do mundo, habita em nós. “Nessa passagem aqui dentro [do peito], do eixo do mundo, temos, depois, a possibilidade de nos conectarmos com o mundo não visto como um encontro e desencontro de forças e seleção natural, mas como um cosmos. Podemos, a partir de nós mesmo, ver o mundo como um cosmos que, em grego, de onde o termo deriva, significa mundo, mas também ordem, beleza”, completa.

Como fazer isso? O teólogo aponta que há muitos caminhos possíveis. Inclusive o da própria religião, como o cristianismo. É preciso, porém, pensar um cristianismo não já morto, dogmático e preso a um individualismo. Um cristianismo que se abre para outros caminhos concebidos a partir de outros credos ou filosofias. “Deus ou a divindade que se encontra por trás de todas as buscas espirituais da humanidade e com base na qual todas essas buscas são como indicações, fragmentos, caminhos, mas nenhuma delas tem a verdade. Então, o último ponto dessa minha fala visa apresentar minha fé filosófica”, anuncia.

Para ele, “a finalidade da fé filosófica é essa unificação profunda entre si mesmo e o mundo, entre micro e macrocosmos. Essa é a finalidade, que é muito antiga, mas que é também muito nova com relação a nossos dias”. E, de novo, é apenas uma trilha possível, que Vito Mancuso chega a apresentar como um laboratório pessoal. “O que é realmente importante é que essa fé filosófica, na sua finalidade de unir Deus com sua alma, seu método de honestidade intelectual e nos seus nove conteúdos, tudo isso, é uma espécie de grande laboratório dentro do qual eu tento criar e recriar um axis mundi, aquele eixo do mundo sem o qual eu não poderia ter uma orientação e energia motivacional para caminhar. Preciso desse axis mundi, de um eixo do mundo para o qual caminhar”, reflete.

Vito Mancuso

Foto: Site Vito Mancuso

Vito Mancuso é teólogo. Foi professor de teologia moderna e contemporânea na Faculdade de Filosofia da Universidade San Raffaele de Milão, Itália, de “História das Doutrinas Teológicas” na Universidade de Pádua, também na Itália, e colaborou com o jornal italiano La Repubblica e atualmente colabora com o jornal La Stampa. Entre suas publicações, destacamos: L'anima e il suo destino [A alma e seu destino, em tradução livre] (Raffaello Cortina, 2007), Io e Dio. Una guida dei perplessi [Deus e eu: um guia para os perplexos, em tradução livre] (Garzanti, 2011), Il principio passione. La forza che ci spinge ad amare [A força do princípio da paixão que nos leva a amor, e tradução livre] (Garzanti, 2013) e Deus e seu destino (Garzanti, 2015). Seu mais recente livro é I Quattro Maestri [Os quatro mestres, em tradução livre] (Garzanti, 2020). Das obras traduzidas em português, destacamos A obra Eu e Deus. Um guia para perplexos (São Paulo: Paulinas, 2014) e A Força de Sermos Melhores - Tratado sobre as virtudes Cardeais (São Paulo: Paulus, 2022).

 

A conferência foi publicada originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no dia 05-12-2022.

 

Confira a transcrição da palestra.

Gostaria de começar pelo título de minha fala, “Axis mundi. Construindo novos caminhos para a vida no Antropoceno”. Axis mundi é uma expressão em latim que significa eixo do mundo. Existe um eixo do mundo? Provavelmente não, no sentido físico do termo. Porém, os seres humanos, desde sempre e em praticamente todos os lugares, sentiram a necessidade da existência desse eixo. Isso significa que se não existir fora de nós, com certeza existe dentro de nós, dada essa necessidade.

Acredito que todo ser humano necessita de um ponto fixo no qual pode se apoiar e construir. Mas construir o quê? Construir a própria existência e, por conseguinte, construir a sociedade. Vejam bem, cada um de nós é indivíduo e pessoa, ou seja, cada um de nós é solidão, pois quando falamos de indivíduo indicamos algo de indivisível, incomunicável. Até mesmo podemos dizer que é nossa peculiaridade, nossa solidão. E cada um de nós é pessoa e, com isso, indicamos nossa dimensão social. Persona, que vem do latim, indica a máscara que os atores colocavam no próprio rosto para serem uma personagem. Então, personagem, persona, pessoa. Isso indica a nossa dimensão relacional, social.

É como nosso coração, nós somos sístole [fase de contração do coração, onde o sangue é bombeado para os vasos sanguíneos] e diástole [fase de relaxamento, fazendo com que o sangue entre no coração]. Como nossos pulmões também, somos inspiração e expiração. Cada um de nós é, também, recolhimento e solidão. Cada um de nós apresenta essa dinâmica instável, mas, mesmo assim, quando funciona, é harmoniosa também. E pelo fato de sermos uma dinâmica instável, sentimos a necessidade de um ponto de referência, axis mundi, um eixo.

É como quando construímos um prédio, uma catedral ou mesmo uma casa, temos um eixo de sustentação. Da mesma forma, quando um indivíduo constrói, de forma responsável e consciente, a própria existência, percebe a necessidade de um eixo. E é por isso que todos os serem humanos de todos os tempos, desde as antigas civilizações, sentiram a necessidade desse axis mundi.

A busca do ‘eixo’

Na maioria das vezes esse eixo do mundo foi buscado fora de nós. Por isso, teríamos a montanha cósmica, a árvore cósmica, o pilar cósmico, realidades nas quais se pensava que o mundo pudesse se apoiar e, então, edificar, construir. Deus, e os deuses também, tiveram e ainda tem essa função de eixo de sustentação, pois os seres humanos sentem a necessidade de ter uma realidade que não é apenas a árvore, a montanha, o pilar. Então, é uma realidade diferente em relação à própria interioridade, sentem a necessidade de um eixo no qual podem apoiar a própria existência que seja pessoal, que se possa reconhecer, que se tenha a mesma sensibilidade, uma possibilidade de comunhão real com esse eixo do mundo graças ao qual é possível construir a própria vida.

E é por isso que desde sempre os seres humanos pensaram em Deus, em deuses, em personificações das forças da natureza. Também em nível político funciona assim. Temos a necessidade de um eixo, de uma realidade maior de um símbolo, de um Estado, de uma região maior na qual se apoiar. E por isso temos o ideal do comunismo, do socialismo, o ideal da raça perfeita, o da superioridade da raça ariana em relação às outras espécies humanas, e ainda temos o desejo de acreditar num líder carismático e numa pessoa só, que se torne um eixo da própria visão de mundo.

Hoje, no progresso gerado pela tecnologia, muitos sonham com um novo mundo que chamam de metaverso. E acham que é essa dimensão tecnológica que pode constituir o eixo de sustentação da própria existência e daí às redes, telas, realidades virtuais, as próprias emoções mais íntimas, assim como os antigos conferiam à árvore cósmica ou aos deuses as suas emoções mais íntimas. Eu, na verdade, estou com medo desse metaverso, desse tipo de confiança que faz confiar a própria liberdade a uma tela, um algoritmo que é anônimo, mas que está configurado com base em interesses específicos e são interesses dirigidos a finalidades específicas. De qualquer forma, isso tem a ver com a busca espiritual da humanidade. Essa busca pode ser resumida com uma expressão: a necessidade de um axis mundi, de um eixo de mundo, a necessidade de um ponto de referência.

O eixo é interior

Um segundo ponto é a identificação desse ponto de referência não dentro de si mesmo, mas fora, na realidade natural, na realidade dos deuses, na realidade política, na realidade tecnológica, de qualquer forma, fora de nós. A tarefa da busca espiritual contemporânea é fazer com que os seres humanos entendam, primeiramente, a si mesmos e, se conseguirmos isso, fazer com que as pessoas entendam também que o axis mundi não é externo, mas é interno.

Como vocês chamam a interioridade de vocês? Àquela dimensão feita de inteligência e de sentimentos, de cognição e de emoção ao mesmo tempo, porque está aqui no peito o que nos determina, que nos faz bater o coração, nos apaixonar, que nos faz ser o que somos. Afinal, somos também o nosso corpo, a nossa externalidade, nosso corpo animado e que vibra. Somos, então, primeiramente, a nossa interioridade. Como vocês chamam essa dimensão?

Podemos chamar de alma, de espírito, podemos chamar de mente, podemos chamar de si mesmo, de consciência ou até mesmo de coração, não fazendo referência ao músculo cardíaco, mas àquela interioridade vibrante quente, àquela esfera emocional. Penso que a grande aposta da busca espiritual dos nossos tempos é entender e, depois, fazer com que as pessoas entendam que esse eixo do mundo está aqui dentro [Mancuso faz uma indicação com a mão no peito].

Nessa passagem aqui dentro [do peito], do eixo do mundo, temos, depois, a possibilidade de nos conectarmos com o mundo não visto como um encontro e desencontro de forças e seleção natural, mas visto como um cosmos. Podemos, a partir de nós mesmo, ver o mundo como um cosmos que, no grego, de onde o termo deriva, significa mundo, mas também ordem, beleza. Cosmos, cosmesis, cosmético.

Caminhos para o antropoceno

Seguindo o título, temos “novos caminhos para o antropoceno”. Esses novos caminhos, na verdade, são muito antigos e consistem no entendimento, dentro de nós, de que somos corpo, psique e espírito. São Paulo já falava isso, na Primeira Carta aos Tessalonicenses, quando apresenta uma tripartição, não uma bipartição. Não alma e corpo. Mas, corpo, alma e espírito.

Alma e espírito, em grego, era psychí e pnévma. Esses dois termos dizem respeito à profundidade de nossa interioridade. Mas, cuidado. Quando tocamos o pnévma, estamos tocando algo íntimo aqui dentro, nosso espírito, nossa liberdade, a nossa capacidade de entender e, ao mesmo tempo, de vibrar, de entender e nos apaixonarmos. Tocamos esse espírito, mas, quando tocamos nesse espírito, tocamos também na força que suporta o mundo, pois o espírito não é só uma realidade interna, mas também externa. É o espírito que dá a vida, como no credo niceno-constantinopolitano. É o espírito que dá a vida para o mundo e para nós.

O grande trabalho que temos de fazer é unir essa busca exterior com essa interna, a busca espiritual com a busca científica, não no sentido das ciências exatas, mas de filosofia da ruptura. E isso é muito urgente, pois sem um axis mundi, sem um eixo, uma direção para a qual caminhar e pela qual caminhar os seres humanos estão abandonados a si mesmos. Sem o espírito, estão abandonados apenas a própria alma, mas a alma, nesse caso, se torna animalidade, voracidade, se torna também um sentimento de ganância. E sem o espírito e com alma que se torna, então, animal, não tem a possibilidade de se libertar do ego.

Sofrimento e falta de superego

Há alguns dias aconteceu de eu ter uma conversa, muito interessante, com um amigo psicanalista, Stefano Bolognini, que foi o primeiro italiano a ocupar o cargo de presidente da Sociedade Psicanalítica Internacional, associação fundada há cem anos por Freud em Viena. Bolognini me falou o seguinte: “Olha, Vito, no início de minha atividade, da minha carreira, os pacientes vinham ao meu consultório porque estavam mal devido ao superego, devido às imposições externas da sociedade, da religião, da política, devido a preceitos de algo forçado que os outros colocavam para dentro dessas pessoas e não permitiam ao sujeito se sentir livre”.

Então, sofria-se pelo superego. Mas hoje, continuou ele, “os pacientes estão vindo até mim, continuam sofrendo, mas sofrem pelo contrário”. Ou seja, pela falta de superego. E eu diria que pela falta de um axis mundi, de um critério maior do que minha simples ganância ou desejo de felicidade, de riqueza, poder. Afinal, é isso que os seres humanos, em nível de superfície, querem. No fim das contas, é a falta de um critério maior, falta algo que seja super em relação ao ego.

E qual é o resultado? Ego super, ou seja, um ego ganancioso, cada vez mais voraz, cada vez mais engordado, um ego super no sentido de grande, enorme, pois falta o superego, falta um critério que seja mais luminoso, mais nobre, mais elegante, que não seja simplesmente uma busca pelo próprio limitado prazer ou sucesso. Essa falta de superego gera também uma carência política enorme, pois quando falta uma dimensão maior de si mesmo, o que acontece? Temos muitos egos autocentrados, a impossibilidade de formar uma sociedade.

Sociedade é uma palavra que vem do latim, societas e tem a ver com sócios. Temos sociedade quando temos sócios, e podemos ser sócios realmente quando temos um interesse superior em relação ao pessoal, estritamente individual. É assim que acontece também na economia, onde há sociedades por ações, temos empresas fundadas como sociedades e essas empresas funcionam quando os acionistas, os proprietários, se dedicam à sociedade, quando tem um interesse maior pela sociedade do que um próprio interesse individual. E o que vale na economia, vale na política também. Mas, hoje, vivemos exatamente desprovidos de um eixo do mundo, de um interesse maior em relação a si mesmos, desprovidos de um superego.

Desprovidos de Deus

E, diante de tudo isso, vivemos também desprovidos de um Deus, pois falar em axis mundi, superego, falar de algo maior do que nós, tudo isso é a tradução existencial subentendida ao sujeito de Deus. Se o conceito de Deus nasceu na mente humana, isso aconteceu porque os seres humanos se deram conta, experimentaram e tocaram como é estar diante de uma força maior do que a própria individualidade. Uma força como se sentia algo familiar e, também, que oprimia, mas que ao mesmo tempo atrai porque é familiar. É nessa dinâmica que nasce o conceito de Deus.

Nós ocidentais, e ainda mais na Europa, estamos vivenciando a morte de um Deus, como Nietzsche falava no final do século XIX e antes mesmo, com Hegel, no início no século XIX. O que era uma profecia de alguns filósofos hoje se tornou uma realidade de fato. É extremamente importante, em nível político, psicanalítico e existencial, a possibilidade de encontrar novamente um axis mundi, um novo Deus, uma nova religião, enfim, um novo superego, algo maior do que nós.

Antropoceno e a superação do antropocentrismo

Todo o sentido de minha busca espiritual está aqui, está no entendimento da necessidade da religião e, ao mesmo tempo, declarar a impossibilidade de a religião tradicional continuar prestando esse serviço, de verdadeiro axis mundi, esse concentro central de força energética de que nós humanos precisamos. Precisamos de algo novo. A tudo isso, acrescenta-se o conceito de antropoceno, além do conceito de morte, de Deus, de fim do superego, da falta de um axis mundi. É um conceito que, creio eu que para todos, tem uma conotação negativa, porque antropoceno fala desse domínio cego e voraz pelos seres humanos sobre a natureza e fala, também, no pesadelo no qual estamos vivenciando, de uma mudança climática que pode transformar nosso planeta azul e um planeta vermelho e, depois, preto. Vermelho devido às chamas, à combustão, e preto pelas cinzas que tudo isso acaba produzindo. Então, é um pesadelo.

Porém, o remédio para tudo isso, tanto falando de busca espiritual quanto de transformação do antropoceno em algo positivo, não pode ser encontrado fora de nós. Ainda, mais uma vez, como o axis mundi não pode ser encontrado fora de nós, também o remédio do antropoceno não está fora de nós. Eu não acredito naquelas configurações naturalistas que consideram que possa surgir uma filosofia de Gaia, da natureza que prescinde do humanitas. Fico feliz que este instituto em que estamos se chame Humanitas, pois é a dimensão mais preciosa que temos.

Tenho a convicção de que precisamos de uma filosofia da natureza renovada, mas não podemos fazer isso em detrimento da humanidade. Podemos fazer isso somente aprofundando a humanidade. Nós humanos somos o veneno do planeta e de nós mesmos, mas nós humanos, juntos, também somos o antídoto em relação ao envenenamento do planeta e de nós mesmos. O termo grego phármakon significa tanto fármaco quanto veneno. Isso indica que onde há perigo, cresce também o que salva. Somos o perigo, mas somos também a salvação.

Por uma nova época axial

E como, de que forma fazer isso? Aqui está o que sinto como necessário: que o axis mundi, esse axis mundi de que precisamos, possa surgir aqui e agora a partir de um novo Axenzeit. É um termo alemão, axis mundi é um termo em latim, mas essas duas expressões compartilham a ideia de eixo. Axenzeit é um termo que significa época axial.

É uma expressão que o filósofo alemão Karl Jaspers criou na primeira metade do século XX para indicar uma época axial, aquele período que vai do VIII ao II séculos a.C. e que tem como seu centro os séculos V e VI a.C. É um período no qual foram cunhados os conceitos filosóficos e éticos decisivos para a história da humanidade. Naquele período, na Índia, os primeiros Upanishads [textos védicos sânscritos tardios que forneceram a base da filosofia hindu posterior] foram escritas provindas de profundidades filosóficas e é também naquela época, na Índia, que Buda vivia e deu origem àquela religião e àquela busca espiritual, àquela filosofia extraordinária que é o budismo e que muito pode dar, e dá, ao nosso mundo.

Naquele mesmo período no território indiano, viveu Mahavira, o fundador do jainismo. Na China, naquele mesmo período viveu Confúcio. Então, Lao Zi também, independentemente do fato de que eles sejam figuras míticas e históricas como alguns acham. Naquela época, na Pérsia, vivia Zaratustra, então vemos o surgimento do pensamento e da filosofia do zoroastrismo. Naquele período ainda, em Israel, temos a passagem da religião dos clãs, uma religião universal, aquela passagem com o nascimento da profecia, nascimento de Isaías, Jeremias, Amós, Miqueias. E nessa mesma época, na Grécia, temos os sete sábios, os primeiros filósofos: Pitágoras, Tales, Heráclito, Sócrates, Platão e Aristóteles.

O que tudo isso significa? Existe um conceito central que nos faz entender o que é essa época axial? Para mim sim, existe. É a passagem do primado da força ao primado da justiça, o que as buscas espirituais dos Upanishads e de Buda dizem, o que o taoísmo e o confucionismo falam, o que Zaratustra fala, o que os profetas do hebraísmo falam, o que os sete sábios gregos e todos os outros filósofos falam é a primazia da ética, da justiça e do bem sobre a força. E essa é a transição decisiva para a humanização.

Nós vivemos um momento em que está terminando a religião oficial, nosso cristianismo, que está vivenciando primeiramente uma dificuldade intelectual. Há toda uma série de razões que não posso enumerar aqui, mas que especifiquei em meus livros, sobretudo Eu e Deus (Paulinas, 2016). A dificuldade do cristianismo, hoje, é cognitiva, intelectual. Nós sentimos essa morte de Deus, a ausência de um axis mundi, a ausência de algo super em relação ao ego, e temos muitos egos super, todas as coisas que eu mencionei antes. Por isso, também hoje estamos diante da possibilidade do nascimento de uma nova época axial.

Por nova época axial não me refiro a algo que diga novos conteúdos em relação àquela época axial antiga, pois não podemos dizer nada mais elevado e nobre, mais verdadeiro do que aquele conceito que mencionei antes, ou seja, a superioridade de ética, o primado da ética sobre a política, a economia. Então, trata-se de uma superioridade do bem em relação à força, do indivíduo em relação à casta, à raça. Tudo isso nasceu no coração da época axial antiga e nós não vamos conseguir encontrar nada diferente.

Um agir pelo bem, sempre

Chegando ao amadurecimento da nova época axial, é outra a questão, não é o conteúdo, mas a motivação, pois o que está faltando é a motivação em relação ao bem, à justiça. E os seres humanos não sabem mais porque o bem deveria ser preferido em relação ao mal. Esse é o ponto, essa é a questão. Cada um tem a possibilidade de responder na própria consciência essa pergunta: por que deveria ser justo e me comportar bem sempre, mesmo quando o mal, por si só, é mais conveniente, quando o meu interesse me levaria a me comportar de forma justa e correta, sobretudo quando ninguém pode descobrir meu comportamento injusto? Essa é a pergunta decisiva, não somente do ponto de vista de ética, mas também da espiritualidade, daquela dimensão do espírito.

Esse espírito é diferente do corpo, que também é diferente da alma psíquica. Uma alma psíquica elabora raciocínios com base nos próprios interesses e desejos, mas é só quando chegamos ao espírito que esse desejo se converte e, daí, não é somente um desejo de si mesmo, mas é um desejo do bem, da beleza, da justiça, da verdade. Essa é a dimensão profunda para a qual sinto que a busca, a pesquisa deveria chegar.

Para mim, hoje, há as condições para uma nova época axial, ou seja, para encontrar novamente aquela energia que leva nós seres humanos a querer o bem, a justiça, independentemente dos interesses pessoais. Nunca como hoje tivemos à disposição os textos da busca espiritual de outros seres humanos. Nunca como hoje conhecemos as religiões de outros seres humanos e sabemos que não são inimigas em relação à nossa religião, mas como companheiros desse caminho. Hoje podemos ler os textos dos chineses, dos hindus, dos judeus, dos árabes. Aliás, não falei do Alcorão, peço desculpas, mas é claro que existe também o Islã a ser abraçado.

Então, podemos ler esses textos e podemos senti-los como companheiros nesse caminho. Tudo isso, é óbvio, exige a transformação da nossa fé, especialmente de uma fé dogmática, que considera que a sua própria religião seja a mais importante, absoluta em relação às outras que são menos importantes. Desse tipo de configuração é preciso passar a uma fé filosófica, como eu a chamo.

Trilha para uma fé filosófica

A partir de agora, trago uma ilustração muito rápida, sistemática de minha espiritualidade, daquela que chamo de fé filosófica. É algo que consegui construir e que estou ainda construindo a cada dia para criar dentro de mim esse laboratório. O meu peito, minha mente, minha consciência, aquela nova época axial que eu sinto a necessidade e que me permite e vai me permitir ter um novo axis mundi, o novo superego, ou até mesmo um novo Deus. E esse novo não quer dizer inédito, original, mas quer dizer também muito antigo. Deus ou a divindade que se encontra por trás de todas as buscas espirituais da humanidade e com base na qual todas essas buscas são como indicações, fragmentos, caminhos, mas nenhuma delas tem a verdade. Então, o último ponto dessa minha fala visa apresentar minha fé filosófica.

Eu analiso, em primeiro lugar, a finalidade, o método e, depois, o conteúdo. Qual é a finalidade de minha fé filosófica? Em outros termos, poderíamos dizer: por que eu cultivo essa fé filosófica? A resposta é uma frase antiga de Santo Agostinho, daquele Agostinho jovem, aquela obra que contém os diálogos consigo mesmo. No começo dela, Agostinho diz: “Eu desejo somente conhecer a Deus e a alma”. A finalidade dessa minha fé filosófica é exatamente isso, Deus e a alma. Onde alma indica aquela dimensão mais profunda da relação psíquica, que também podemos chamar de espírito. Aqui, Agostinho apresenta uma antropologia bipartida: corpo e alma. Eu sustento e apoio uma antropologia dividida em três.

Quando falo de algo espiritual, falo de algo mais profundo do que a relação psíquica. Acredito que a finalidade de toda a busca espiritual é o entendimento de que o axis mundi está dentro de cada um de nós e consiste na própria alma e no próprio Deus. Quando entramos para dentro de nós mesmos, não estamos tocando apenas em nossa interioridade, mas também o nosso Deus. É aqui [bate no peito com a mão espalmada] que mora o próprio Deus. Santo Agostinho dizia que a verdade mora no lugar interior. Ele dizia: “Não saias fora de ti, volte para dentro de ti, pois a verdade habita no homem interior.”

E é interessante que essa coincidência, nessa profundidade da alma e da presença de Deus, seja universal, esteja presente em todas as religiões, nos Upanishads, na pregação do Buda, onde ele fala de identificação entre ilha do ser e darma. A mesma coisa no taoísmo, na religião clássica. Sêneca dizia a Lucílio que não buscasse Deus fora de si, pois Deus está dentro. Também temos outros textos que poderíamos mencionar, como o poeta sufi, de fé muçulmana. [Jalaladim Maomé] Rumi, um grande poeta persa, que apresenta essa identificação entre a profundidade do ser e eu. A finalidade da fé filosófica é essa unificação profunda entre si mesmo e o mundo, entre micro e macrocosmos. Essa é a finalidade, que é muito antiga, mas que é também muito nova com relação a nossos dias.

Método para uma fé filosófica

O segundo ponto é o método. Descrevo o método por meio de uma frase de Albert Schweitzer, Prêmio Nobel da Paz de 1952, um teólogo renomado, médico, grande músico. Tocava Bach no órgão. Em sua autobiografia fala que “a sinceridade é o fundamento da vida espiritual”. A busca espiritual começa com esse método: de nunca mentir, de não ter dolos, não precisamos servir a dogmas, a doutrina instituída. Falo sobretudo aos teólogos: temos um dever mais importante em relação à doutrina instituída pela Igreja e o dever para a própria consciência, que não deve e não pode ser traída, e também para a consciência da humanidade que não pode ser enganada de nenhuma forma. Esse é o método. É a mais limpa e transparente honestidade intelectual, na medida do possível para um ser humano.

O conteúdo para um trilhar na fé filosófica

Depois, o conteúdo. Tenho nove itens de forma esquemática, cada um desses deveria ser aprofundado, mas preciso encerrar minha fala e vou somente enumerar de forma esquemática:

1. O primeiro ponto de minha fé filosófica diz respeito à alma. Se não consideramos que dentro de nós mesmos tem uma disposição e uma energia inteligente e criativa e diferente em relação à energia que vemos agir no mundo, em relação à matéria, então, do contrário, não teríamos as condições para essa busca espiritual. O que significa acreditar na alma? Significa crer nessa simples equação: EU - MUNDO = X. Há uma incógnita aqui, algo que permanece, se tirarmos a dimensão material, que é a dimensão espiritual. É o que me torna livre. Se eu fosse só matéria, se fosse: EU - MUNDO = 0, não teria a possibilidade da liberdade, não teria a possibilidade da criatividade, da autodeterminação. Teríamos simplesmente uma ação que deriva de um estímulo, uma ação como reação. Mas se existir a possibilidade de uma ação livre, um actus de uma ação originária e criativa, isso acontece porque dentro de cada um de nós há uma dimensão diferente do que o simples mundo e a simples matéria, que é a alma. Na época antiga, chamava-se alma, mas poderíamos chamar de outra forma.

2. O segundo ponto é Deus. E por Deus poderíamos usar a mesma equação, ou seja, a totalidade do ser, SER - MUNDO MATERIAL = X. Se a totalidade do ser tirar a dimensão material, encontraríamos alguma outra coisa segundo essa minha fé filosófica. O mundo não é só matéria, o mundo é também ideia, força, intelectual, no fundo é também espírito. Esse espírito, essa alma do mundo que podemos chamar de Deus.

3. Onde experimentamos Deus, o ponto de encontro com a dimensão espiritual que chamamos Deus não é externo, é interno a nós. É na interioridade humana que está a verdade, como Agostinho falava. Algo mais importante do que a história, a revelação histórica, algo mais importante que a Bíblia, os sacramentos, tudo isso faz sentido, tem sentido, mas precisa depender da espiritualidade do indivíduo. O mistério divino exige uma busca para dentro de nós mesmos, é aqui dentro que buscamos a Deus como Jesus. Dizia no Evangelho de João: “É no espírito de verdade que estão os verdadeiros adoradores”. É o encontro com o samaritano. Pode ser aqui ou em Jerusalém que precisamos adorar a Deus, mas chegou a hora de os verdadeiros adoradores adorarem a Deus em espírito e verdade. Isso está dentro de nós, nessa dimensão do ser que mencionei antes, que constitui o verdadeiro axis mundi, esse eixo interior da vida de cada um de nós.

4. A essência de Deus. Qual é a essência de Deus? É uma inteligência cheia de amor, é a mesma essência que cada um de nós experimenta em alguns momentos tão delicados, tão preciosos. Quando se reúne para dentro da própria interioridade, sente a palpitação do próprio coração de forma diferente, mais quente, mais afetiva, mais verdadeira, mais honesta. Acredito que é lá que estamos em comunhão com o mistério de Deus. A essência divina é isso, é amor. É o amor inteligente, não é só amor, é uma inteligência boa, bondosa. Bondade inteligente, é isso.

5. Jesus é uma manifestação, uma epifania do divino, e é isto na sua plenitude, porque Jesus ensinou que Deus é amor e que é preciso amar de forma profunda para encontrar o divino, para encontrar a Deus. Amar até mesmo os inimigos. Mas acredito que Jesus não seja a única, ou a mais absoluta, manifestação dessa força do divino. Temos outras manifestações também que são igualmente fortes. Por exemplo, Buda, Confúcio, Sócrates. Jesus é o verdadeiro caminho, mas não é o único. Precisamos nos libertar desse extinto, dessa primazia da exclusividade, de sermos primeiros, mais importantes e, então, abraçarmos o desejo de estar relacionados, de estarmos juntos. A verdade é que ou se é universal ou não se é. Se eu falar que a mensagem de Deus está presente com força também nos grandes pesquisadores espirituais da humanidade, não estou diminuindo a importância da mensagem de Jesus. Pelo contrário, estou elevando essa mensagem ao universal. Eu faço para que seja algo presente da história da humanidade, partindo daquele Axenzeit que mencionei antes, daquela busca dos seres humanos que a partir VI século a.C. colocam a primazia da ética e do bem. Dizer que Jesus é um dos profetas da humanidade não significa dar importância menor, significa dar a máxima importância à sua mensagem, pois estou dizendo que é universal e é verdadeiro.

6. Soteriologia. Do que depende a salvação? A salvação de nossa alma, do centro pessoal capaz de liberdade de consciência depende do exercício de nossa liberdade enquanto capacidade de justiça e de dedicação.

7. Revelação. Qual é a postura daqueles que foram educados no cristianismo com relação a outros? Tenho a convicção de que a Bíblia não é a palavra de Deus, a Bíblia contém a palavra de Deus. O que é a palavra de Deus? Deus fala como estou falando agora? E se falar, em que língua fala? Deus não fala com a palavra dos homens. A palavra de Deus é uma força, uma energia. É uma força que coloca informações no caos e cria harmonia. Essa é a palavra de Deus, que do caos inicial surge o cosmos, a beleza, surge um mundo ordenado e nós também somos cosmos, o mundo ordenado graças a essa palavra de Deus. É essa força que entra para dentro de nós. Assim, somos menos caos e mais cosmos, mundo ordenado, gentio, bondoso. Essa é a palavra de Deus que a Bíblia contém, pois há páginas da palavra de Deus que suscitam essa força e energia que é a palavra de Deus. Assim como também há outros livros que contém essa força de Deus. Até diria que não só livros, mas forças naturais, árvores, ondas do oceano, músicas que podem ser a palavra de Deus porque desenvolvem, dentro de nós, essa força do bem, essa força inteligente do bem que é a palavra de Deus.

8. No que consiste a espiritualidade? Ela consiste na escuta, na contemplação, no silêncio, no contato com essa beleza, com tudo aquilo que produz harmonia. Eu penso que a palavra de Deus, e que o próprio Deus, seja harmonia. O que é o sentido da Trindade se não a ideia de que a vida de Deus é harmonia? A ideia da trindade eleva a lógica da relação harmoniosa para a lógica primordial do ser. Essa é a grande valência do conceito teológico ou da Trindade. É tudo aquilo que realmente é consistente, está se movendo, se movimentando conforme um dinamismo que se chama relação harmoniosa. E isso é o que nos é transmitido pelo conceito de Trindade. Se soubermos entender como força radical desse conceito, a espiritualidade só pode ser tudo aquilo que favorece a relação, o contato com a harmonia e, então, o silêncio, a contemplação, a escuta.

9. Ética. O que é a ética? É a explicitação, a tradução exterior desta lógica constitutiva do ser, que é a relação harmoniosa. Neste momento, estou falando e sendo ouvido. Neste momento, o que está acontecendo em meu corpo e no corpo de vocês? Está acontecendo que nossas partículas subatômicas estão se relacionando, formando nossos átomos, que também estão se relacionando entre eles formando nossas moléculas e ainda as moléculas formam uma série de pequenos órgãos que derivam as células, nossos tecidos, o sistema de órgãos, nosso organismo, que é capaz de ser inteligente, de emotividade, sensibilidade. Tudo isso só é possível graças à lógica da harmonia, da harmonia relacional. E a ética, a moral, nada mais é do que a tradução, em nível consciente e responsável, dessa dinâmica da física de onde nós viemos, de onde nós estamos vindo e que se chama, dentro de nós, de vida e saúde.

Essa é mais ou menos minha fé filosófica, assim como a consegui expor aqui. O que é realmente importante é que essa fé filosófica, na sua finalidade de unir Deus com sua alma, seu método de honestidade intelectual e nos seus nove conteúdos, tudo isso é uma espécie de grande laboratório dentro do qual tento criar e recriar um axis mundi, aquele eixo do mundo sem o qual eu não poderia ter uma orientação e energia motivacional para caminhar. Preciso desse axis mundi, de um eixo do mundo para o qual caminhar. Isso é o sentido do que tentei transmitir aqui.

Assista o vídeo da conferência na íntegra:

 

Confira mais outras conferências do Manifesto Terrano.

 

Entrevistas realizadas pelo IHU com Vito Mancuso

 

Artigos de Vito Mancuso publicados pelo IHU

Reportagens com Vito Mancuso publicadas pelo IHU