08 Janeiro 2015
"O empedramento mental e espiritual denunciado pelo Papa Francisco como doença número 3 nada mais é do que a consequência de como nos séculos foi interpretada a figura do sucessor de Pedro. Portanto a reforma da cúria só pode conduzir a uma reforma do papado", escreve Vito Mancuso, teólogo, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 23-12-2014. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
Viva o Papa e abaixo a Cúria!, gostaria espontaneamente gritar após o magnífico e severo discurso que o Papa Francisco dirigiu ontem aos responsáveis da Cúria romana. O discurso, com uma análise admirável e corajosa elenca bem quinze doenças que, segundo o Papa, agridem o organismo de poder vaticano, mas, na realidade se trata de uma análise perfeitamente estendível a todas as outras nomenclaturas, a todas as cortes que no mundo se formam inevitavelmente em torno de quem detém o poder. Ontem o Papa se dirigiu à Cúria romana, mas suas palavras atingem praticamente todos os órgãos de poder da hodierna sociedade, da política à economia, das universidades aos tribunais, na Itália e por toda parte no mundo. Entre as doenças da mente e do coração dos burocratas vaticanos ou não, o Papa coloca em primeiro lugar o que define (1) a “doença do sentir-se imortal ou indispensável”, vale dizer a identificação do próprio eu com o poder.
Seguem (2) a doença da excessiva operosidade e (3) “o endurecimento mental e espiritual”, entendendo com isso o comportamento daqueles que “perdem a vivacidade e a audácia e se escondem sob as cartas, tornando-se máquinas de práticas”. As outras doenças do poder, elencadas pelo Papa frequentemente com termos coloridos, são: (4) a excessiva planificação, (5) a má coordenação que transforma uma esquadra “numa orquestra que produz barulho”, (6) o “Alzheimer espiritual” que faz perder a memória do encontro com o Senhor e consigna em ama-de-leite das paixões, (7) a rivalidade e a vanglória, (8) a esquizofrenia existencial que leva a viver uma vida dupla, das quais a segunda está sob a insígnia da devassidão, (9) as tagarelices e os mexericos que chegam a um verdadeiro e próprio ”terrorismo” das palavras, (10) a divinização dos chefes em função do carreirismo, (11) a indiferença com os colegas que priva da solidariedade e do calor humano e que até faz alegrar-se com as dificuldades alheias, (12) a face funérea de quem é duro e arrogante e não sabe o que sejam o humorismo e a auto-ironia, (13) o desejo de acumular riquezas, (14) os círculos fechados e enfim (15) o exibicionismo.
Estas são as numerosas enfermidades que segundo o Papa agridem a Cúria romana e os seus responsáveis. Mas, uma pergunta se impõe: é realmente tão simples separar o Pontífice de sua administração? A Cúria romana é uma criatura dos Papas, é uma expressão daquilo que por séculos foi o Papado, governada pelos infalíveis sucessores de Pedro, dos quais, entre outros, quase todos aqueles que reinaram no século vinte foram proclamados santos ou beatos. Como é, pois, possível o paradoxo de Papas tão próximos a Deus e, no entanto, incapazes de por ordem entre os mais estritos colaboradores, escolhidos por eles próprios? Como se concilia o esplendor dos pontífices canonizados com uma cúria que deles depende diretamente e que é tão enferma?
A Cúria não choveu do céu no Vaticano, não foi colocada ali por qualquer potentado estrangeiro, mas saiu como lógica emanação da política eclesiástica papal que fez do Vaticano um centro de poder absoluto, e não um órgão de serviço como hoje quereria o Papa Francisco. Se se quer a coerência do raciocínio, indispensável à coerência da vida justamente tão cara ao Papa Francisco, é preciso concluir que os males da Cúria não podem não ser exatamente os males do próprio poder pontifício.
O Papado por séculos concebeu a si próprio como poder absoluto, sem espaço para uma mínima forma de crítica e, menos que nunca, de oposição, traduzindo fisicamente esta impostação em precisos sinais de espetacular efeito, como o beijo da pantufa, a sedia gestatória, e a tiara pontifícia também chamada tri-reino, repleta de pedras preciosas. Quem trabalhava na cúria respirava cotidianamente este ar e não há nada a se maravilhar, se depois, em sua vida privada, tendesse a reproduzir esta lógica circundando-se em sua volta de luxo e de poder. Tem sido assim por séculos e, como faz entender o discurso do Papa Francisco, é assim ainda hoje. Emblemático é o caso do cardeal Bertone, por anos na chefia da Cúria romana e que agora se auto-premiou com um luxuoso super-ático no qual certamente circula orgulhoso contemplando os frutos de um fiel serviço à lógica do poder.
O empedramento mental e espiritual denunciado pelo Papa Francisco como doença número 3 nada mais é do que a consequência de como nos séculos foi interpretada a figura do sucessor de Pedro. Portanto a reforma da cúria só pode conduzir a uma reforma do papado. Terá a força, o Papa Francisco, para seguir este caminho? A vontade, certamente, sim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os quinze pecados da Igreja segundo Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU