12 Janeiro 2016
O livro-entrevista com o Papa Francisco é uma amostra exemplar da espiritualidade de Bergoglio: a vida é uma guerra, há muitos feridos, a Igreja é um hospital de campanha, os seus ministros devem operar como médicos e enfermeiros. A misericórdia de que o papa fala se configura, portanto, como uma operação estritamente eclesiástica.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 10-01-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não se deve pedir aquilo que não pode dar esse livro-entrevista com o Papa Francisco com Andrea Tornielli, de cujas 120 páginas impressas mais de um terço são brancas ou de instrumentos redacionais. O que o livro pode dar e efetivamente dá é a sabedoria vivida de um homem de Deus que crê profundamente no Evangelho e na sua capacidade de renovar a vida. Da sua longa experiência, o papa traz uma série de anedotas, uma mais cheia de frescor do que a outra, contadas sempre com graça e delicadeza.
Existe a velhinha argentina, que diz que Deus perdoa sempre, porque, senão, o mundo não existiria; a mulher solteira que, para manter os filhos, se prostitui e que agradece por, mesmo assim, ser chamada de "senhora"; o homem devoto que não perde uma missa e tem uma relação com a empregada e se justifica dizendo que as empregadas domésticas também existem para isso; a mulher que não se confessa desde que tinha 13 anos, porque na época o padre lhe perguntou onde ela mantinha as mãos enquanto dormia; a senhora à qual são pedidos, em primeiro lugar, 5.000 dólares para a causa de nulidade matrimonial; a garota que, no prostíbulo, encontra o homem com que talvez vai casar e, por isso, vai em peregrinação; e outros exemplos vivos de uma humanidade muito concreta.
Todo o progresso do livro é marcado pela experiência do pecado, a qual o papa dá uma importância decisiva, tornando-a quase uma condição indispensável da experiência espiritual: se o nome de Deus, de fato, é misericórdia, só quem precisa de misericórdia, isto é, o pecador, pode encontrá-la.
O pecado, a partir do pecado original considerado "algo que realmente aconteceu nas origens da humanidade" (p. 58), funciona, portanto, como um pré-sacramento paradoxal. Por isso, aqueles que não têm remorso disso são o verdadeiro alvo polêmico, ao qual o papa chega até mesmo a desejar que pequem: "A algumas pessoas tão rígidas seria bom um um deslize, porque, assim, reconhecendo-se pecadoras, encontrariam Jesus" (p. 82).
O outro aspecto sobre o qual o livro se detém longamente é o sacramento da confissão, que, para o papa, é o lugar concreto para encontrar a misericórdia de Deus e a cujo respeito não faltam conselhos aos confessores.
O livro é uma amostra exemplar da espiritualidade de Bergoglio: a vida é uma guerra, há muitos feridos, a Igreja é um hospital de campanha, os seus ministros devem operar como médicos e enfermeiros. A misericórdia de que o papa fala se configura, portanto, como uma operação estritamente eclesiástica.
Mesmo o seu Deus é o da mais tradicional doutrina católica baseada no nexo entre pecado original e redenção por meio do sacrifício: "O Pai sacrificou Seu Filho".
Em vez disso, o que não se deve pedir ao livro porque ele não o dá? Não se deve pedir a discussão, nem mesmo apenas como menção, das capitais questões filosóficas e teológicas subjacentes ao assunto tratado. Quanto à dimensão filosófica, a questão do pecado e do seu perdão remete à relação entre consciência, liberdade e julgamento moral.
E as perguntas que surgem do contexto contemporâneo são: existe realmente a consciência? Somos verdadeiramente livres e, portanto, responsáveis pelo bem e pelo mal cometidos? O bem e o mal existem como algo objetivo ou se trata de convenções culturais que o homem mais evoluído pode superar indo "além do bem e do mal"?
Quanto à teologia, a principal questão concerne à relação entre graça e liberdade: a misericórdia de Deus se dá de forma totalmente gratuita ou, para torná-la eficaz, é necessário um primeiro passo do homem? A doutrina eclesiástica condenou como herética (definido-a, especificamente, como semipelagiana) a perspectiva segundo a qual a misericórdia divina depende de um primeiro e pequeno passo do homem. Porém, essa é exatamente a tese defendida várias vezes pelo papa (nas páginas 15, 50 e 72), alinhado com a tradição da teologia jesuíta que, entre o fim do século XVI e o início do XVII desencadeou uma violenta e inconclusa polêmica com os dominicanos mais tradicionais, chamada "controversia de auxiliis".
Depois, há a questão da vida futura: se a misericórdia é realmente o nome de Deus, como justificar a condenação eterna do inferno? Mesmo que fosse apenas para uns poucos, ou mesmo somente para o anjo decaído que se tornou o Diabo, a existência do inferno eterno torna aporética a afirmação da misericórdia como nome de Deus. Se a tese do papa, como eu acredito, é verdadeira, ela impõe logicamente a doutrina chamada de "apocatástase", ou seja, o perdão final para todos. Esta, ao longo da história, foi defendida por grandes teólogos, mas, infelizmente, é herética para a doutrina oficial da Igreja.
Tais questões não devem ser feitas a essa publicação de ocasião, mas eu considero que, sim, devem ser feitas ao papa e à sua sabedoria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Do infiel devoto à prostituta forçada: anedotas papais de misericórdia. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU