24 Agosto 2020
Refletir sobre a Espiritualidade e o Sagrado na perspectiva da temática da 6ª Semana Social Brasileira, que ao longo de três anos (2020-2022), pretende aprofundar o tema “Mutirão pela Vida, por Terra, Teto e Trabalho”, tem reunido numa conversa ao vivo representantes de diversas tradições religiosas e espirituais. Em representação das religiões de matriz africana, Iyalorixa Jô Brandão, Coordenadora do Coletivo Dan Eji, partilhando a reflexão dos povos indígenas, Marcivana Sateré Mawé, e junto com elas, Marcelo Barros, Monge Beneditino.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Não podemos esquecer que as Semanas Sociais Brasileiras são instrumentos de reflexão e transformação, presentes na Igreja do Brasil desde o início da década de 90. Neste tempo de pandemia a Semana Social Brasileira está se servindo de meios diferentes para ajudar na reflexão, que neste encontro virtual abordava uma questão que “é parte da nossa vida, da nossa ação pastoral”, segundo Carla de Oliveira Guimarães, das Pastorais Sociais do Regional Sul 4 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mediadora do encontro.
Frame do vídeo dos participantes da 6ª Semana Social Brasileira
Nas diferentes tradições o sagrado tem um papel em destaque, que deveria contribuir com as lutas diárias por terra, teto e trabalho. No caso das religiões de matriz africana, segundo Iyalorixa Jô Brandão, destaca a profunda relação com a natureza, que segundo ela, “nos move para os diferentes vertentes de luta que abraçamos”. Daí a importância da luta pelo território, algo que vai além da terra. Nesse sentido, as religiões de matriz africana são baseadas numa visão de mundo que nasce da relação simbiótica com a natureza e a igualdade de gênero. Isso aparece nas origens da própria humanidade, segundo os relatos dessa tradição religiosa, que coloca no barro a origem da humanidade. Essa realidade se traduz no zelo pela natureza e pela terra, pelo território, na relação espiritual e religiosa com a terra.
Iyalorixa Jô Brandão
Um elemento importante para falar de espiritualidade indígena é que cada povo tem diversas formas espirituais, segundo Marcivana Sateré. Ela insiste em que “mesmo que no Brasil muita gente pense que todos os indígenas somos iguais, somos diferentes culturalmente”. Mesmo sendo dizimados ao longo da história, “a espiritualidade foi o que segurou nossa vida até hoje”, insiste Marcivana, quem afirma que diante da pandemia da COVID-19, os povos indígenas têm se defendido com seus elementos de proteção. Segundo a liderança indígena, a espiritualidade presente na terra, nas águas, nas matas, nos animais, ajudam contra o retrocesso nos direitos, contra um sistema que tem se colocado contra os povos indígenas.
Marcivana Sateré
Como acontece nas religiões de matriz africana, nas cosmovisões indígenas também existe uma ligação profunda do corpo de cada um com a terra, segundo a auditora no Sínodo para a Amazônia, que destaca a importância dos ancestrais. Essa espiritualidade leva o indígena a lutar pela preservação da Mãe Terra, pela demarcação dos territórios, lutar pela vida dos povos frente aos madeireiros, garimpeiros, grandes projetos. Mesmo estando na cidade, em Manaus moram 35 mil indígenas, a presença dos elementos culturais nas assembleias é algo que fortalece a espiritualidade, destacando a presença dos pajés, das parteiras, dos anciãos. Um elemento que não pode ser esquecido é a importância da luta coletiva, da espiritualidade partilhada, pois, segundo Marcivana, a convivência coletiva incentiva a luta.
Desde uma perspectiva cristã, Marcelo Barros afirmava que o ponto de partida da espiritualidade cristã é reconhecer o espírito no outro, na outra. Ele destacava que segundo Querida Amazônia, o primeiro elemento da espiritualidade numa Igreja que se amazoniza, é escuta das espiritualidades originárias. Daí a importância de aprender da espiritualidade dos povos indígenas e das religiões afro-brasileiras.
Marcelo Barros
Na verdade, espiritualidade é uma palavra moderna, segundo o monge beneditino, “de certa forma separa, porque dá a entender que existe uma coisa que não é espiritual”. Ele afirma que na Bíblia não existe essa palavra, porque tudo é espiritual, tudo está interligado, uma ideia que recolhe a Laudato Si´. Se faz necessário distinguir entre espiritualidade e espiritualismo, que é algo que divide, dualista. Segundo Marcelo Barros, na espiritualidade tudo é sagrado, na vida tudo é divino. Frente a isso, ele vê uma contradição no fato de que “o Cristianismo parte do princípio da encarnação, mas a gente se desencarnou, a gente pensa que vai encontrar Deus subindo para o mundo do aéreo”. O monge insiste em que “Deus desce para onde estão os pobres, os oprimidos”, o que leva a viver em tensão permanente. Enquanto isso, ele afirma que “as pessoas buscam uma espiritualidade alienada”.
Para Marcelo Barros, as comunidades indígenas são exemplo de resistência. Ele entende a espiritualidade como “poder escutar, acolher, amar o que é estranho”, rejeitando a ideia de que é espiritual “uma religião voltada para dentro, narcisista, como se Deus gostasse de ser bajulado, Deus não precisa da nossa adoração”. Frente a isso, ele entende que a espiritualidade cristã é a fé profética, alguém que fala para o outro, o porta-voz do Divino, do Espírito. O monge também insistia em que as comunidades indígenas, negras, nos ajudam a descobrir o espiritual na criação. Ele questionava sobre o que a gente quer, “aprender dos pequeninos ou ficar com as elites?”
Junto com isso, o monge beneditino se perguntava onde descobrir a mística. Nesse sentido, ele colocava como exemplo a irmã Dorothy Stang e o recentemente falecido Dom Pedro Casaldáliga, a quem considera referência de pessoas místicas. Na perspectiva da 6ª Semana Social Brasileira, Marcelo Barros a vê como algo que pode nos ajudar a retomar um diálogo amoroso, humilde, de discípulos e discípulas, com as tradições indígenas e afro-brasileiras e descobrir aí o que o Espírito de Deus tem a nos dizer.
Uma realidade cada vez mais presente na sociedade brasileira é o fundamentalismo religioso. No Brasil se faz presente “uma sociedade racista, xenófoba, que não respeita a diversidade e encontra apoio no judiciário e na mídia”, segundo Jô Brandão. Isso é algo que “sempre houve, mas que hoje encontra maior ressonância nos meios de comunicação e na gestão pública, que usa o nome de Deus, equivocadamente, para fundamentar expressões de violência e disseminar discursos de ódio”.
Segundo a representante das religiões de matriz africana, “se tornou comum os ataques nos canais de comunicação contra as religiões de matriz africana, que alimenta o fundamentalismo e as mentes que não entendem a diversidade religiosa”. Isso veio à tona na tentativa da justiça brasileira de tirar da mãe a tutela de uma criança que estava sendo iniciada na religião de matriz africana. Jô Brandão chega afirmar que “uma sociedade que não protege suas crianças, não pode discutir o futuro, nem falar de Deus”.
O fundamentalismo religioso está motivando as tentativas de contato de algumas igrejas pentecostais com os povos indígenas em isolamento voluntário, segundo Marcivana Sateré. Ela denuncia que algumas igrejas não respeitam a forma de ser dos povos indígenas, algo que também fez a Igreja católica no passado. A auditora sinodal destacava o pedido que os povos originários fizeram no Sínodo de “uma Igreja que acompanhe, que esteja conosco na luta”. Nesse sentido, ela afirma que muitas Igrejas entram nas comunidades indígenas, constroem templos, mas não acompanham as lutas por direitos.
Isso é contra a cosmovisão dos povos indígenas, que não separa as lutas da espiritualidade. Marcivana insiste em que o Brasil precisa respeitar a forma de ser dos povos indígenas. Ela relatava a experiência de Manaus, onde acontecem celebrações conjuntas, das quais participam diferentes expressões religiosas e espirituais. A líder indígena lembrava que na celebração final do Sínodo, ela ofertou uma cuia com terra e sementes levadas da Amazônia, que ao longo da Assembleia Sinodal tinham germinado, expressando assim o sentido sagrado que a terra tem para os povos originários. Mas também, Marcivana insistia em que a espiritualidade parte do diálogo com o diferente, uma atitude que nem sempre está presente na Igreja católica, lembrando algumas situações vivenciadas nas celebrações do Sínodo.
Existe fundamentalismo na Igreja católica, nas pastorais sociais, em cada um de nós, segundo Marcelo Barros. Ele afirma que se faz necessário aprofundar a reflexão entre fé e luta, insistindo em que Deus é Amor e que a fé da gente só pode ser solidariedade, que ninguém vai lutar por convencer ninguém, colocando como exemplo disso Francisco de Assis. O monge beneditino enfatiza que “sou eu que tenho que ser bom, amoroso, viver o amor, a solidariedade, a entrega de mim e aí vou mudando a realidade”.
Superar o fundamentalismo religioso é responsabilidade de todos nós, de todas as Igrejas, segundo Marcelo Barros. Para isso, precisamos “nos conscientizarmos que a espiritualidade começa quando a gente cuida do outro”, insistindo na necessidade de defender as religiões de matriz africana e as espiritualidades indígenas. Diante do momento atual, “a gente reage na esperança, que não é apenas passiva, e sim revelar, biblicamente, a esperança no agir”, afirma o monge, que encerrava sua fala com as palavras de Pedro Casaldáliga, “saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar”.
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“A espiritualidade começa quando a gente cuida do outro”, afirma Marcelo Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU