21 Mai 2019
"Não tenho nenhuma dúvida de que nos ambientes da hierarquia e do clero católico, há muita gente boa, séria, consagrada ao seu ministério, que não merece esse tipo de acusação feita pelo livro de Martel. Posso garantir que, entre bispos e padres, tanto mais velhos como jovens, muitos vivem a fé e o testemunho do reino com toda consagração. Tanto no episcopado, como no clero e institutos religiosos, seja entre conservadores, seja entre os mais abertos, há muita doação e generosidade missionária", escreve Marcelo Barros, monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro, em artigo publicado por Religión Digital, 20-05-2019.
Sodoma (Foto: Divulgação)
Não é a primeira nem a última vez que vem ao prelo um livro-bomba sobre escândalos ligados ao Vaticano ou ao clero. Agora, na Itália e em outros países, um dos best-sellers mais vendidos é o livro: Sodoma, Escândalo e Poder no Vaticano, do jornalista francês Frédéric Martel.
Na missão permanente de teimar que um novo jeito de ser Igreja é possível, precisamos enfrentar a realidade complicada e compreender melhor como enfrentar esses problemas morais e humanos que, pelo mundo inteiro, explodem nos ambientes eclesiásticos. Para exorcizar o pessimismo e anunciar ressurreição onde impera morte, é preciso enfrentar o embate. Às vezes, é necessário se colocar o dedo nas feridas para aplicar bem o remédio. Por isso, ao receber por zap esse livro, me senti na obrigação de ler. Agora, depois de concluir a leitura, escrevo algumas considerações, a partir de um olhar de fé e de reflexão espiritual.
Durante quatro anos, Frédéric Martel, com uma equipe de jornalistas amigos de várias nacionalidades e procedências, pesquisou o tema da homossexualidade na hierarquia da Igreja e no clero católico. Centrou sua pesquisa nos ambientes da Cúria Romana e do Vaticano. Entrevistou mais de 40 cardeais que vivem em Roma e muitos arcebispos e eclesiásticos de todos os continentes. Viajou por 30 países e se encontrou com muitas pessoas, católicas e não, sempre procurando compreender melhor os ambientes do clero e da hierarquia. Através de entrevistas e conversas com cardeais, com monsenhores e padres, além de outras pessoas envolvidas no assunto, o livro relata que na Cúria Romana e em ambientes do clero e da hierarquia católica, em vários países, existiria uma atitude de duplicidade e hipocrisia que, de um lado, mantém um discurso homofóbico e moralista e, do outro, a portas fechadas, desenvolve uma estrutura não somente homossexual, como promíscua e devassa.
Frédéric não esconde sua condição de gay e deixa claro que o seu objetivo não é denunciar a homossexualidade que, segundo ele, é predominante na hierarquia e sim a hipocrisia e duplicidade escandalosa entre o que esses eclesiásticos vivem e o que exigem dos outros.
De acordo com esse livro, na Igreja Católica, desde algumas décadas, (se um dia foi diferente), parece que a qualidade normal para alguém ser padre e mais ainda bispo ou cardeal é ser homoafetivo, praticante ou não. O extraordinário é ser hetero. Conforme o autor, é como se, dentro das instituições eclesiásticas, o celibato existisse unicamente para impedir relação com mulheres. Fora disso, tudo é possível.
Outro elemento que o livro salienta é a relação entre essa estrutura, ao mesmo tempo homofóbica e, contraditoriamente homofílica de um lado e do outro, um profundo conluio com a elite econômica e os ambientes mais anti-éticos da direita política no mundo. Quanto mais membros importantes da Cúria Romana e alguns cardeais levam uma vida dupla, de comportamento sexual promíscuo e devasso, mais devotamente se entrelaçam com grupos políticos de extrema direita. O vínculo que os une é o amor ao dinheiro e ao poder daí decorrente. O livro revela que o mal está tão enraizado e tranquilamente aceito pelos que dominam o sistema eclesiástico católico que não se resolverá nada, sem uma transformação estrutural e radical.
Para qualquer pessoa que conhece ambientes de cúrias diocesanas, seminários e conventos, o livro não traz novidade. No Brasil e em outros países, quem tem contato com seminários, conventos e sacristias, sabe que, frequentemente, nesses ambientes, por trás das fachadas de conservadorismo eclesiástico e rigorismo litúrgico, predomina um estilo de frivolidade que junta certa cultura gay com posicionamentos tradicionalistas e de direita.
A leitura do livro me parece incômoda e em muitos pontos simplista. O autor toma como ponto de partida dividir a humanidade em quem é e quem não é. Na hierarquia católica, ele classifica quem é homofóbico e já vê nessa pessoa um homossexual enrustido (o que, em muitos casos, tem razão). Por outro lado, quem não é homofóbico, automaticamente é considerado gay friendly, expressão usada para indicar alguém que defende os direitos dos gays, mas também em alguns casos, define a pessoa como pertencente ao mundo gay.
Compreendo que se denuncie a hipocrisia de quem assedia jovens, abusa de migrantes pobres e, se encastelando no poder do dinheiro, se esconde por trás das honras eclesiásticas. Aceito que se rasgue o véu que encobre a duplicidade de bispos e padres que pregam contra o uso de preservativos e chegam a confundir homoafetidade, pedofilia e abuso de vulneráveis. No entanto, não considero ética a forma como o autor expõe alguns outros padres e bispos sobre os quais pesam apenas suspeitas e boatos. Não concordo com o carreirismo e peço a Deus a graça de me preservar de qualquer sistema que confunda ministério com poder divinizado. (Em minha vida, já sofri e tive perdas dolorosas porque tomei essa posição). No entanto, acho antiético destruir a honra de bispos e padres, que esperavam ser promovidos a cargos superiores e foram colocados na geladeira, porque não conseguiram esconder suficientemente alguma fragilidade moral. No fundo, por mais alienados e cooptados pelo sistema que esses irmãos sejam, mais do que tudo, são vítimas de uma estrutura visceralmente desumana, cuja crueldade é apontada como divina.
Minha primeira reação é a de profunda tristeza e pena por tantos irmãos e irmãs que vivem submersos nessa grande mentira vital que é a estrutura de qualquer Igreja cristã, que muda o seguimento de Jesus pelo culto e serviço ao poder divinizado como ídolo. Infelizmente, na história, essa perversão é quase inevitável, quando qualquer religião se liga ao poder social e político dominador de uma sociedade, seja o Budismo na antiga Birmânia, seja o Islã na Arábia Saudita, seja o Cristianismo católico ou evangélico em países do Ocidente.
O mais triste é que essa estrutura que, nos tempos medievais era ligada ao “sacro império romano-germânico”, se perpetua nos tempos de hoje, nos quais os Estados escrevem em suas instituições que são laicais, mas os presidentes tomam posse fazendo juramento com a Bíblia nas mãos e governos fazem o que querem, desde que digam: “Deus acima de todos”.
No caso da Igreja Católica, desde séculos antigos, se tornou doutrina oficial que padres e bispos recebem uma ordenação que lhes dá poder sagrado através da sucessão apostólica, como se, com exceção de Judas Iscariotes, algum apóstolo tivesse tido sucessor.
A ceia de Jesus, que seria sacramento de unidade e serviço (significado no lava-pés do quarto evangelho) é transformada em culto de ostentação do poder e, não poucas vezes, do narcisismo de não poucos celebrantes. O mínimo que se pode observar é que o seu estilo contradiz a simplicidade e o gesto de doação generosa que foi o de Jesus na ceia. Quem quiser verificar se tenho razão em dizer isso, basta elencar todos os símbolos litúrgicos usados em uma missa pontifical ou de paróquia (paramentos do padre, incenso, acólitos, etc) e ver quantos desses elementos vêm do evangelho e quantos são resíduos da antiga religião imperial romana ou quando não é assim, ao menos do sacerdócio do Antigo Testamento.
Essa transformação da ceia de Jesus em cerimônia de corte me parece mais grave e mais triste do que todas as intrigas sexuais do Vaticano. Essa transformação dos gestos de amor de Jesus em ritual de corte medieval e de poder sagrado ostensivo é até mesmo pior do que a terrível hipocrisia que mascara a crise moral que assola muitos ambientes clericais. Quando se reduz a fé e a aliança com Deus a um mundo de ritos e convenções exteriores e públicas, é quase inevitável o esvaziamento da interioridade que Jesus recomendou: “Ao orares, entra em teu quarto em segredo e teu Pai que vê o que é secreto...” (Mt 6, 1ss). Essa interioridade não se opõe à dimensão comunitária da fé expressa na oração do Pai Nosso que, conforme Mateus, Jesus nos dá na mesma exortação do Sermão da montanha (Mt 6, 9).
A interioridade se opõe à frivolidade de uma ostentação narcisista do poder, que é tentação de todas as religiões, mas que o evangelho tantas vezes nos advertiu: “Gostam dos primeiros lugares, usam vestes longas...”. Não fui eu nem o autor do livro “Sodoma” que afirmou isso. Foi Jesus (Mt 23). Quando se abre a porta para a ostentação idolátrica de um poder narcisista em nome de Deus, não se pode depois lamentar quais e quantos demônios entram por ela.
Desculpem usar essa expressão quase vulgar para dizer a impressão que me ficou desse livro. É como o paciente que vai ao médico tratar de uma pneumonia e o médico descobre que ele está com câncer de pulmão. O livro do Frédéric Martel me deixa a impressão de que ele denuncia a estrutura homossexual mal disfarçada pela hipocrisia homofóbica de parte do clero e da hierarquia, mas o que está por trás é uma estrutura que transformou a Igreja Católica em um império que rejeita mudanças e insiste em continuar elitista, preconceituoso e dominado pela desigualdade. É um mundo no qual mulher realmente não entra a não ser como leitora dos textos litúrgicos considerados menos importantes e, no espaço profano, cozinheira e camareira de casas eclesiásticas. Essa misoginia chega a ser tão ou mais estrutural nos ambientes eclesiásticos do que a homofobia. Se não se ataca de vez o patriarcalismo do sistema eclesiástico e se moldam novas relações de gênero nas Igrejas, não se atinge a raiz do que Frédéric Martel denuncia em seu livro.
A Igreja Católica, como está organizada hoje, mantém o modelo da velha Cristandade que sobrevive no Vaticano, nas cúrias, catedrais, seminários e ambientes onde a nostalgia dos velhos tempos é vivida em uma quase necrofilia cultural, já que mantém a casca, sem retomar a vitalidade. O que fica é a coreografia de corte, em ambiente decadente, no qual infelizmente, de modo inocente ou ingênuo, não poucos bispos e padres mergulham, sem perceber que o resultado geral acaba sendo esse cenário felliniano que Martel denuncia.
No Brasil, na Argentina atual, na Bolívia da insurreição indígena, no Equador da antiga “revolução cidadã” e na Venezuela da ainda resistente “revolução bolivariana”, muitos se assustam com a quantidade bispos, padres e fieis que declaram seu apoio à extrema-direita. Infelizmente, alguns deles são casos doentios de funcionários da religião que, podemos nos perguntar, se guardam a fé ou ao menos que tipo de fé vivem. No entanto, a maioria dos bispos e padres que fazem essa opção pela direita vive a fé e tende à direita porque essa é mais conatural e coerente com o modelo de Igreja e com a imagem de Deus todo-poderoso que eles perpetuam. Em resumo e falando claro: A tal “síndrome de Sodoma” antes de ser sexual, é cultural, social, política e, nesse sentido mais profundo, espiritual.
Quando se opta por um modelo de Cristandade, piramidal, essencialmente hierárquico e autocentrado (o contrário da Igreja em saída, proposta pelo papa Francisco) automaticamente se abre a caixa de Pandora da qual sairá tudo o que não presta.
Apesar que o poder está inerente a toda relação social, no conjunto de casos que o livro apresenta, se podem distinguir:
1º - um tipo de problemas que vem da fragilidade humana e das carências (muitas vezes, os comportamentos sexuais impróprios cabem nessa categoria. Não devem suscitar rejeição e sim compaixão).
2- atitudes que têm como miolo simplesmente a egolatria, expressam a maldade humana refinada e a desumanidade de um poder que não tem de prestar contas a ninguém.
A maioria dos que agem assim são homens que vivem o que Hannah Arendt chamou de “a banalidade do mal”. Em toda essa realidade de um sistema iníquo, erigido em nome de Deus, não se pode negar a responsabilidade pessoal e o mal objetivo de cardeais que colaboraram com ditadores, ou se ligaram a milícias de direita e participam de grupos fascistas. Uma pergunta difícil de responder é por que, ou como pessoas com tal perfil (pensem no cardeal Lopez Trujillo, nos fundadores dos Legionários de Cristo e do Sodalício), como homens, visivelmente doentes, puderam ser os escolhidos e os mais protegidos dos papas mais recentes (João Paulo II e Bento XVI) e dos cardeais mais poderosos?
Vou arriscar um palpite:
Antigamente na teologia escolástica, se ensinava que os sacramentos têm sua eficácia salvífica, não porque quem celebra é santo, nem porque o rito é bem celebrado. Também não depende em si da fé e do fervor dos que participam. Sua eficácia vem pelo fato do sacramento ser realizado. Na linguagem tomista se dizia: “é ex opere operato”. (Quando estudei teologia, o professor repetia: Se for o apóstolo Pedro que batiza, é o Cristo que batiza. Se for Judas Iscariotes que batiza, é o Cristo que batiza).
Parece que essa noção de uma eficácia mágica e quase mecânica do sacramento passou a valer para toda a estrutura da Igreja. O que vale para subir na estrutura não é a autenticidade interior, nem o ardor missionário, ou mesmo a profundidade de fé e sim a capacidade de ser útil ao sistema e entrar nos esquemas.
Não acredito na tese que o livro de Martel sustenta “que nesses círculos do clero e da hierarquia (Vaticano e cúrias), o mais importante é que a pessoa seja homossexual”. Não parece ser esse o problema. Prefiro pensar que a qualidade mais necessária é que a pessoa adore o poder e seja um bom soldado da direita política. Nesse caso, seria o mais adequado à instituição que funciona como voo com piloto automático. Basta ligar. A estrutura usa as pessoas que usam a estrutura e com o seu poder usam outras pessoas. A lei serve de guarda-chuva de proteção para uma vida sem Espírito. (Os problemas afetivo-sexuais vêm por acréscimo).
O que o livro mostra é que, nesses centros da Igreja Romana, o deus é o poder da instituição, que se traveste e é apresentado como sendo o Deus da fé cristã, travestido do Deus de Jesus. Esse tipo de religião não é muito diferente do Deus da teologia da prosperidade, adorado no templo de Salomão, construído por Edir Macedo e pela Igreja Universal do Reino de Deus em São Paulo.
“A mão do Senhor me colocou no meio de um vale que estava cheio de ossos. Vi que estavam sequíssimos. O Senhor me perguntou: Filho do homem, por acaso, esses ossos poderão reviver? Respondi: Senhor, só Tu o sabes. Então, ele me falou: Profetiza aos ossos. Invoca o Espírito sobre eles e eles reviverão. Fiz isso e eles se juntaram, formaram pessoas e recobraram a vida. Tornaram-se como um grande e organizado exército”
(Ezequiel 37).
Em 1966, um ano depois do Concílio Vaticano II, Dom Helder Camara, então arcebispo de Olinda e Recife, escreveu ao papa Paulo VI uma carta pessoal, na qual propunha ao papa que ele deixasse o Vaticano, entregasse os edifícios da cúria à ONU, renunciasse a ser chefe de Estado, acabasse com as nunciaturas e fosse viver como bispo de Roma na antiga basílica do papa, a Igreja de São João de Latrão. Alguns dias depois, recebeu uma correspondência da Secretaria de Estado. Nela havia uma breve carta do Cardeal Jean Villot, secretário do papa. Ele escrevia: “O santo padre recebeu a sua carta e lhe agradece. Mas, recorda à Vossa Excelência que nós não estamos mais nos tempos do Evangelho”.
É exatamente esse o problema. O único remédio para a doença que atinge a Igreja é voltar ao Evangelho. Como dizia o papa João XXIII, não se trata de retroceder no tempo e sim de “voltar às fontes”, mas atualizando em um exercício permanente e profundo de “aggiornamento”, isso é, atualização da linguagem e do conteúdo da fé e do jeito de ser Igreja.
O assunto tratado no livro de Frédéric Martel (o ambiente desregrado no plano moral) é expressão de uma Igreja fechada em si mesma e que existe em função de sua autoadoração. Não há solução se não simplesmente acabar com os privilégios e ambientes fechados de cúria e do clero, como classe superior na Igreja.
O papa Francisco afirmou publicamente que o Clericalismo é um câncer. Se o tumor é canceroso, tem de se extrair o órgão. O papa só não explicitou que o clericalismo não é um abuso ou desvio ocasional do sistema e sim o próprio sistema que divide os cristãos em duas classes: clérigos e leigos, ordenados e não ordenados. Essa instituição que o Concílio Vaticano II não conseguiu transformar (LG 10) divide os cristãos em duas categorias e como se fosse instituição divina. Nessa realidade, não há perspectiva de gêneros (homem e mulher) que se completam e juntos dão o testemunho de Deus Amor.
Na realidade, hoje, como nunca, a Igreja Católica e todas as Igrejas cristãs têm urgência em voltar ao evangelho e reafirmar para si mesmas e para o mundo que, em uma comunidade de discípulos e discípulas de Jesus, só tem uma ordem: a dos batizados em Cristo. Dessa dependem e devem depender como serviços e funções todos os ministérios dos quais as comunidades precisam. E esses ministérios vão surgir e se desenvolver a partir das comunidades.
Acabar com a separação entre clero e leigos não significa que se desvalorize ou se desvirtue os ministérios. Toda Igreja é ministerial. Em seu seio, serviços como diaconia, presbiterato e episcopado serão sempre dons de Deus na comunidade e para a comunidade. Isso supõe retomar e inclusive reforçar mais a eclesiologia das Igrejas locais como Igrejas de direito pleno, com autonomia e em comunhão com todas as outras Igrejas locais e no caso da comunhão católico-romana, presidida pela Igreja de Roma. Essa é representada pelo papa e a sua diocese. Não é o caso da Cúria Romana que pode ser extinta ou muito reduzida, já que, em uma Igreja descentralizada, o serviço de articulação e unidade entre as Igrejas que o papa realiza será bem melhor executado com pessoas, homens e mulheres de cada continente.
Um amigo, ao ler o livro me perguntou:
- Depois disso, o que sobra?
E eu respondi:
- Sobra a Igreja que nasce do povo por obra do Espírito.
Não tenho nenhuma dúvida de que nos ambientes da hierarquia e do clero católico, há muita gente boa, séria, consagrada ao seu ministério, que não merece esse tipo de acusação feita pelo livro de Martel. Posso garantir que, entre bispos e padres, tanto mais velhos como jovens, muitos vivem a fé e o testemunho do reino com toda consagração. Tanto no episcopado, como no clero e institutos religiosos, seja entre conservadores, seja entre os mais abertos, há muita doação e generosidade missionária.
Na América Latina e um pouco por diversas regiões do mundo, há comunidades e pequenos grupos, como também organizações leigas, que ligam a fé com a vida e com o projeto de transformação do mundo. Às vezes, essa Igreja de base é mais visível. Outras vezes, esses grupos do evangelho parecem invisíveis e subterrâneos, mas sempre sinais da presença divina no mundo. Neles, se encontram verdadeiros epíscopos e epíscopas, que mesmo sem esses títulos, são consagrados pelo batismo e conduzidos pelo Espírito. Esses ministros e ministras velam pela unidade e trabalham nas bases para que um novo mundo e uma nova humanidade sejam possíveis. E contam com o apoio de padres e mesmo de alguns bispos para prosseguir a caminhada.
Se esses padres e ministros vivem a fragilidade humana e, claro, podem ter falhas e pecados, o importante é que não se fixam nisso e não fazem de erros que podem ser meros acidentes de percurso o destino da viagem. À medida que se entregam à inserção e ao serviço generoso ao povo mais pobre, padres e bispos que aceitam são “convertidos e salvos” pelas comunidades. Em décadas passadas, pastores como Dom Helder Camara, dom José Maria Pires e Dom Antonio Fragoso, entre outros, afirmavam terem sido convertidos pelo povo mais pobres. Até hoje, padres e bispos continuam a ser salvos e reintegrados em si mesmos e no serviço do reino. E para eles, (e elas), o importante não é a estrutura religiosa e sim o serviço libertador à humanidade.
Mais de 50 anos depois de Medellín, o novo arcebispo de Lima (Peru), na celebração em que assumiu a arquidiocese no dia 9 de março de 2019, afirmou explicitamente que queria retomar as opções da conferência de 1968 e concluiu: “Vamos dar à nossa Igreja o rosto de uma Igreja pobre, servidora e pascal, comprometida com a libertação de toda humanidade e de cada ser humano por inteiro” (Med 5, 15).
Os grupos de base e muitas Igrejas locais que se colocam em uma direção correta e profética não se deixam afundar no atoleiro e permitem que possamos continuar dizendo: Cremos na Igreja, ou Cremos como Igreja.
Os profetas e profetizas das comunidades continuam dizendo como João Batista: “Deus é capaz de fazer até dessas pedras filhos e filhas para Abraão” (Mt 3, 9). Essa Igreja das catacumbas é o sinal visível e atual da presença e atuação do Espírito que nos faz escutar novamente a voz do Pai ou Mãe de Amor que continua afirmando: Vejam que eu faço novas todas as coisas (Ap 21, 5).
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"Um olhar de fé para além dos escândalos". Artigo de Marcelo Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU