03 Dezembro 2015
A misericórdia solidária não é bondade adocicada, é aplicação da lei ética fundamental da humanidade. Que, por sua vez, é reprodução da harmonia relacional que informa a energia primordial caótica, levando-a a compor sistemas cada vez mais complexos sob a forma de átomos, moléculas, células, órgãos, aparelhos, organismos, até o esplendor da mente que pensa e do coração que ama.
A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 02-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As palavras-chave são duas: Jubileu e misericórdia. A pergunta, ao contrário, é uma só: existem razões sensatas hoje para que uma mente racional assuma a perspectiva de viver sob a insígnia do júbilo e da misericórdia?
Ao dizer "hoje", não me refiro apenas ao clima de medo dentro do qual estamos imersos a cada dia mais; refiro-me, também e sobretudo, à filosofia de vida que permeia a mente ocidental há alguns séculos, tornando-a incapaz de gerar paz, porque concebe a existência como "guerra de todos contra todos" (Hobbes), "luta pela sobrevivência" (Darwin), "vontade de poder" (Nietzsche).
Hoje, estamos principalmente convencidos de que pensar de modo rigoroso leva necessariamente ao conflito, porque a natureza, na sua íntima essência, já é considerada como conflito, enquanto toda perspectiva que convida à harmonia é sentida como evasão e incapacidade de compreender a realidade.
Da direita liberal à esquerda neodarwinista, o pensamento ocidental hoje se move sob a insígnia do ditado de Heráclito: "O conflito é o pai de todas as coisas e de todas é rei" (fr. 14). Esquecemo-nos, porém, aquilo que o grande filósofo acrescentava, isto é, que, "a partir de elementos que discordam, tem-se a mais bela harmonia" (fr. 24) e que "a harmonia invisível é melhor do que a visível" (fr. 27).
O Jubileu Extraordinário da Misericórdia convocado por Francisco é uma celebração daquela harmonia invisível nomeada por Heráclito e da qual todos os seres humanos, se abrirem o coração e a mente, podem participar. Na bula de convocação, o papa escreve que a misericórdia "é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida" (Misericordiae vultus). São palavras de intenso otimismo, segundo as quais todo ser humano, se levar a sério a luz que permeia o olhar do outro, se abre para a dinâmica da relação interpessoal e pode superar o conflito que habita a superfície do ser.
Francisco fundamenta o apelo à misericórdia em perspectiva cristã, dizendo que "Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai". Mas não se trata de uma exclusividade cristã. A Bíblia hebraica institui a Jubileu no Levítico e celebra a misericórdia divina nos Salmos.
O Islã abre cada uma das 114 suras do Alcorão "em nome do Deus clemente e misericordioso". O budismo ensina a misericórdia mediante a doutrina das quatro moradas divinas: gentileza amorosa para com todos, compaixão infinita pelos sofredores, alegria compartilhada, equanimidade. Todas as religiões genuinamente interpretadas tem no seu centro o ideal de paz e misericórdia.
Trata-se de uma perspectiva à qual a razão pura também pode chegar. Olhar para os outros com olhos sinceros, de fato, significa praticar o imperativo categórico kantiano: "Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio" (Fundamentação da metafísica dos costumes, BA 67).
A misericórdia solidária não é bondade adocicada, é aplicação da lei ética fundamental da humanidade. Que, por sua vez, é reprodução da harmonia relacional que informa a energia primordial caótica, levando-a a compor sistemas cada vez mais complexos sob a forma de átomos, moléculas, células, órgãos, aparelhos, organismos, até o esplendor da mente que pensa e do coração que ama.
O Papa Francisco é uma mente que pensa e um coração que ama, e, por isso, as suas palavras e os seus gestos chegam como um bálsamo nas feridas da desanimada mente ocidental. Ele convida a cuidar dos pobres: fazendo isso, talvez, descobriremos que a verdadeira pobreza não diz respeito aos bolsos, mas aos olhos e à sua incapacidade de olhar para os outros de modo sincero.
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Misericórdia, um apelo dirigido a todos. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU