"Genocídio não pode ser naturalizado como um destino inevitável para aqueles e aquelas a quem o sistema capitalista em seu formato neoliberal selecionou para o descarte. Ao falar a verdade para o poder, organizações baseadas na fé precisam funcionar como um capacitor que move as práticas impeditivas dos direitos para práticas promotoras de pleno direito. O crescimento desmedido da riqueza e, por outro lado, da pobreza, são agressões contínuas ao equilíbrio pretendido por Deus para a sua criação".
O artigo é de Lusmarina Campos Garcia, teóloga e pastora luterana, doutora em direito pela UFRJ, educadora na área de direitos humanos e pesquisadora no grupo Teoria da Sociedade e Direito e Cinema no PPGD/UFRJ.
Lusmarina Campos Garcia (Foto: Arquivo Pessoal).
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto e ter acesso a todos os artigos da coluna, verifique o Leia mais no fim do texto. Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.
Enquanto presenciamos atônitos o genocídio praticado por Israel contra o povo de Gaza, temos, em nossas cidades, talvez em nossa vizinhança, realidades de extermínio continuado que, do meu ponto de vista, precisaria ser corretamente classificado como genocídio.
Casos de assassinato em massa fazem parte da história humana desde antes da palavra que os descreve ter sido cunhada por Raphael Lemkin. O advogado polonês combinou a palavra grega genos (raça, tribo) e a palavra latina cide (matar) para descrever um plano coordenado de diferentes ações visando a destruição de fundamentos essenciais da vida de grupos nacionais, com o objetivo de aniquilá-los. Tal destruição tem características próprias, uma vez que é dirigida contra “instituições políticas e sociais, cultura, língua, sentimentos sociais, religião e a existência econômica de grupos sociais, e a destruição da segurança pessoal, liberdade, saúde, dignidade e até mesmo da vida dos indivíduos pertencentes a tais grupos” (Lemkin, 1944).
Com base nesses conceitos e em debates ocorridos no âmbito das Nações Unidas, a Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (1948) foi escrita e definiu genocídio em seu Artigo II como qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: (a) Matar membros do grupo; (b) Causar danos físicos ou mentais graves a membros do grupo; (c) Submeter deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física, no todo ou em parte; (d) Impor medidas destinadas a impedir nascimentos dentro do grupo; (e) Transferir à força crianças do grupo para outro grupo.
Estudiosos do campo do genocídio dão ênfase a diferentes aspectos do crime indicando recorrentemente para a destruição estrutural e sistêmica de pessoas por um aparato burocrático de estado (Horowitz) ou para uma ação intencional do perpetrador de interditar, por exemplo, a reprodução biológica e social dos membros do grupo (Fein). Afirmam que o genocídio ocorre porque “escolhemos ver um povo em vez de pessoas individualmente e então escolhemos matar essas pessoas em grande número e durante um longo período de tempo” (Waller, 2016).
Tais estudiosos têm criticado a definição das Nações Unidas por não incluir determinadas categorias e determinados grupos perseguidos e mortos, tais como os grupos políticos ou as vítimas de processos sociais e políticos desumanizadores que as transformam em pessoas matáveis.
Na crítica de Leo Kuper, a exclusão dos grupos políticos da lista de grupos protegidos é uma das grandes omissões da definição do crime de genocídio da Convenção; é preciso levar em consideração os fatores políticos, econômicos e sociais que conduzem ao genocídio, inclusive o nacionalismo, colonialismo, racismo e desigualdade social (Kuper, 1981).
Para analisar o contexto brasileiro, parece-me que precisamos observar o uso político do genocídio pelo aparato do Estado como uma estratégia sistemática e continuada de extermínio dos setores empobrecidos e marginalizados da população. Tais setores são formados majoritariamente por pessoas negras e periféricas, de modo que os traçadores sociais da pobreza no Brasil precisam considerar a raça.
Quando Alice Wairimu Nderitu, Conselheira Especial do Escritório das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, visitou o Brasil em maio de 2023, perguntamos a ela:
1. O que impede que a matança contínua de negros e indígenas no Brasil seja classificada como crime de genocídio?
2. De que forma as Nações Unidas podem nos apoiar para superar essa barreira?
O Brasil tem um histórico de assassinatos em massa de indígenas e negros. O Atlas da Violência no Brasil de 2023 mostra que 445.527 (quatrocentos e quarenta e cinco mil, quinhentos e vinte e sete) negros foram assassinados entre 2011 e 2021 e 56,3 por 100.000 indígenas entre 2019 e 2021. A violência letal mata 4,22 negros por hora no país. A maioria das mortes é resultado de políticas de segurança dos governos estaduais.
O Rio de Janeiro é um dos estados com a maior taxa de letalidade policial (por 100.000 habitantes), segundo dados do Fórum de Segurança Pública. Segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública, em 2021 houve 1.356 mortes por intervenção de agentes do Estado, sendo 99% homens, 82,5% negros e 44,5% entre 18 e 29 anos. Em 2022, a polícia estadual do Rio de Janeiro matou 1.327 pessoas. Isso representa 29,7% de todas as mortes violentas no estado no mesmo ano.
O Centro de Estudos sobre Cidadania, Conflitos e Violência Urbana afirma que, em 99,2% dos inquéritos instaurados para esclarecer mortes cometidas por policiais em serviço, o próprio Ministério Público solicita o arquivamento dos autos e, na maioria deles, baseia-se exclusivamente em depoimentos policiais como prova de que a morte ocorreu em legítima defesa. Em geral, essas mortes são justificadas como "combate ao tráfico de drogas".
O que os dados mostram é que a população pobre e periférica é alvo constante de extermínio e seu relato dos fatos não é sequer considerado para efeitos de análise e julgamento. A supressão e invisibilização dos grupos marginalizados ocorre, portanto, em diferentes níveis e de diferentes formas. A sua contínua falta de acesso aos direitos deixa em evidência que o Estado Democrático de Direito não assegura direitos para todos nem é a democracia um regime de inclusão abrangente. Na verdade, as desigualdades sociais no Brasil revelam o descompasso entre a construção do regime democrático e a vulnerabilização de parcelas da população no que concerne ao acesso a direitos básicos, individuais, sociais, econômicos, culturais e civis.
O processo histórico de matança massiva e empobrecimento das populações originárias iniciado com a colonização portuguesa no Brasil e continuado com o estabelecimento das elites econômicas, seguiu ocorrendo por meio das lutas pela posse da terra, pelo controle do capital e dos meios de produção, pelas políticas de Estado na área de segurança que são efetivadas pela violência policial cotidiana.
Em termos econômicos, os mecanismos de concentração de renda tiveram uma mudança na história recente do país quando, no início dos anos 2000, os governos populares do Presidente Lula da Silva (2003-2011) e da Presidenta Dilma Rousseff (2012-2016) fizeram um pequeno deslocamento na sempre presente tendência da desigual distribuição de riqueza no Brasil.
Políticas de redução da pobreza adotadas alcançaram resultados importantes, embora insuficientes. No entanto, a mobilidade que tais políticas propiciaram, desarrumou a ordem social historicamente estabelecida, e foi o bastante para reativar o subjacente ódio contra os pobres e reorganizar a intervenção do império, em termos geopolíticos.
A intervenção imperialista no Brasil é recorrente. Nos anos 60 e 70 do século XX ela ocorreu por meio de um golpe militar. Em 2016, aconteceu por meio de um golpe parlamentar e judicial. Em 2018, por meio da articulação do Departamento de Estado dos EUA com a operação Lava-jato. No presente momento, por meio das plataformas digitais das grandes companhias de tecnologia que propagam ódio e desinformação em massa e rearticulam a ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo.
A relação entre matança continuada, pobreza e negritude recrudesce ainda mais em face das ideologias de extrema-direita. Nessa semana o Instituto Brasileiro de Direitos Humanos publicou o relatório que a Relatora da ONU Ashwini K.P. apresentará em 7 de julho de 2025 à 59ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra. (Leia mais aqui.)O relatório trata das formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, violência policial, xenofobia e intolerâncias correspondentes. Ashwini afirma que “a invasão contínua de terras indígenas e quilombolas” é “uma manifestação de racismo sistêmico”, assim como é também a segregação espacial à qual estão submetidas desproporcionalmente as pessoas de ascendência africana que moram em favelas e periferias. Um dos tópicos preocupantes do relatório é o crescimento de células neonazistas no sul do Brasil, principalmente em Santa Catarina.
Como sabemos, o nazismo foi um sistema político e social de caráter nacionalista e extremista que surgiu na Alemanha após a primeira guerra mundial e assumiu o poder quando Adolf Hitler se tornou chanceler em 1933. A máquina de propaganda do sistema convenceu pessoas comuns de que havia determinados grupos de pessoas que mereciam morrer pelo fato de pertencerem a uma etnia, a uma raça, por terem uma determinada cultura ou uma certa sexualidade. Deste modo, 6 milhões de pessoas judias foram assinadas, assim como foram aniquiladas pessoas homossexuais, ciganas e negras.
A metodologia de convencimento utilizada pelo nazismo assemelha-se ao que ocorre hoje por meio das plataformas digitais quando estas se tornam canais de construção e propagação do ódio contra pobres, mulheres, pessoas LGBTQI+, pessoas negras e indígenas.
A lógica do regime nazista se atualiza, no presente, por meio do projeto político e econômico do capitalismo impiedoso, que no seu formato neoliberal, acelera o acúmulo de riqueza, por um lado, e o aprofundamento da pobreza, por outro, e destina ao descarte as pessoas pobres, majoritariamente negras. Descarte e escárnio combinados por um sistema estabelecido com o propósito de moer gente. É assim que todos os dias meninos e meninas, pessoas jovens negras são assassinadas. Como disse Mônica, a mãe de Herus Magalhães, 24 anos, assassinado ontem no Morro Santo Amaro, no Rio de Janeiro: “os policiais mataram o meu filho, fizeram um buraco enorme na barriga dele, o arrastaram pelas escadas machucando o seu corpo e ainda debocharam de mim, debocharam o tempo todo!”. Ou seja, para esse sistema de extermínio não basta matar; é preciso matar com crueldade, utilizando-se do escárnio, é preciso vilipendiar os corpos mortos e debochar de quem sofre a perda!
Pessoas de fé e instituições baseadas na fé estão impelidas a buscarem alternativas aos modelos sociais, econômicos e políticos que submetem as populações empobrecidas à falta de acesso aos direitos e, não raro, ao extermínio.
Genocídio não pode ser naturalizado como um destino inevitável para aqueles e aquelas a quem o sistema capitalista em seu formato neoliberal selecionou para o descarte.
Ao falar a verdade para o poder, organizações baseadas na fé precisam funcionar como um capacitor que move as práticas impeditivas dos direitos para práticas promotoras de pleno direito.
O crescimento desmedido da riqueza e, por outro lado, da pobreza, são agressões contínuas ao equilíbrio pretendido por Deus para a sua criação.
No Brasil, o processo de desconstrução democrática de 2016 e anos seguintes, veio acompanhado de um discurso religioso-cristão que foi grandemente potencializado durante o governo Bolsonaro e que será intensificado em 2026. Esse discurso articulou uma teologia patriarcal da guerra com uma versão nacionalizada da teologia da prosperidade, resultando na construção do ódio de parte da população cristã contra determinados grupos, e no aprofundamento da resistência às políticas de distribuição de renda. Esta é uma construção discursiva que parte da concepção de Deus como um guerreiro, que convoca a sua igreja para “combater o mal”, como um general convoca o exército para a batalha. A identificação de inimigos torna-se crucial nesse tipo de pensamento. No campo religioso, o inimigo é, preferencialmente, as religiões de matriz africana, mas pode ser qualquer outra que não seja cristã e, no âmbito cristão, os inimigos são os grupos que não compartilham as mesmas noções hermenêuticas, simbólicas e conceituais.
No campo dos costumes, o inimigo são principalmente as mulheres –sobretudo as mulheres feministas- e todos aqueles que desafiam a heteronormatividade. Conceber a mulher como sujeito de direitos, portadora de autonomia e de capacidade ética-decisória, é desmontar o aparato patriarcal que se sustenta na base da definição dos papéis sociais que estabelecem a preponderância dos homens e a subalternização das mulheres.
No campo político, o inimigo é qualquer um que se identifique com pautas consideradas “de esquerda”, como são os e as defensoras de direitos humanos, os/as defensoras de uma economia solidária, os/as defensoras das políticas distributivas, os/as defensoras da justiça racial.
Já o discurso religioso que coloca no centro a teologia da prosperidade relaciona doação a bênção. Entende-se que quanto mais uma pessoa doa, tanto mais abençoada por Deus será. A obtenção da prosperidade está associada à noção de meritocracia que, nesta concepção, seria a justa retribuição pelo “esforço” empreendido individualmente. Essa perspectiva foi utilizada para depreciar e xingar as pessoas pobres que tinham sido beneficiárias dos programas de distribuição de renda do governo. A alegação foi que essas pessoas “não se esforçaram suficientemente” para vencer a pobreza, por isso dependiam do governo.
A teologia da prosperidade misturada à teologia da guerra e às fake News, foi (e continua sendo) o instrumento discursivo utilizado para o convencimento do público cristão contra projetos políticos humanizadores e se tornou também o veículo gerador do ódio cristão contra pessoas de outras religiões e aqueles e aquelas categorizados como “inimigos”.
Frente a realidades como esta, a ética das pessoas de fé e/ou humanistas/ambientalistas precisa afirmar a justiça distributiva, a justiça de gênero, a justiça racial, a justiça ambiental, a paz e a pluralidade como seus fundamentos.
Diante de um mundo no qual entre 733 milhões de pessoas sofreram fome em 2024, precisamos afirmar que não existe riqueza que seja justificável.
Diante de um mundo que investe exageradamente na produção dos armamentos utilizados nas guerras injustas que continuam matando crianças, mulheres e homens palestinos em Gaza e em outros lugares, é preciso insistir na perspectiva da paz. Retomar Jesus como o “príncipe da paz” (Isaías 6:9), aquele que veio “para guiar nossos pés no caminho da paz” (Lucas 1:79), e aquele que nos deixou a paz (João 14:27) é um imperativo diante da indústria da guerra, dos processos geradores de ódio e das mentalidades justificadoras do extermínio e do genocídio.
Diante de sociedades que passaram a utilizar metodologias de fake News difundidas pelas redes sociais, é preciso insistir na verdade. A “guerra ao tráfico de drogas”, um disfarce utilizado pelo poder público do governo do Rio de Janeiro para o extermínio da população pobre e preta dos territórios periféricos, precisa ser combatida consistentemente com a produção e divulgação de dados corretos.
Diante da declarada articulação que está sendo feita pelas big techs, o Brasil precisa desenvolver plataformas próprias para possuir alguma chance de ter eleições livres e democráticas.
Diante de um mundo no qual a violência contra as mulheres cresce e o feminicídio é realidade diária, é preciso afirmar a autonomia das mulheres e é preciso criar políticas que garantam e ampliem direitos, incluam e capacitem mulheres e meninas a fim de sejam respeitadas como pessoas, como cidadãs e como filhas amadas de Deus.
Diante das intolerâncias e agressões contra a pluralidade, é preciso afirmar que as diferenças entre as pessoas não são sinônimo de subalternização, mas da grande e bela diversidade da criação de Deus, que é para ser preservada, apreciada e cuidada.
Para além de fundar-se sobre os princípios da justiça, mencionados acima, uma ética baseada na fé e/ou humanização das relações, precisa indicar a esperança como um horizonte possível.
Mas, como afirmar a esperança em tempos de sofrimento? Como resistir em períodos desestruturantes? Como enfrentar o genocídio?
Proponho voltarmos o nosso olhar para o texto de Apocalipse. Estas são perguntas fundamentais que o texto do Apocalipse quer responder. As comunidades cristãs do primeiro século enfrentaram intensa perseguição política, o que resultou em exílio e morte para muitos. O autor do Apocalipse escreveu no final do primeiro século, entre os anos 90 e 96, na Ilha de Patmos, onde estava exilado. Para se comunicar com os seus leitores, tomou emprestado imagens do Antigo Testamento e as ressignificou para o propósito da resistência. A linguagem simbólica do texto revela uma experiência de “fim do mundo”, de julgamento final, de caos. A tragédia posta em cena por meio de um imaginário povoado por bestas, demônios, criaturas meio humanas meio animais, e entes celestiais, aciona um cenário cosmológico cujo drama termina com a derrota do mal. É disso que se trata: da derrota do mal e do surgimento do novo céu e da nova terra. A simbologia apocalíptica não é apenas uma metáfora para falar das experiências desestruturantes e mortais, como aquelas que produzem o genocídio do povo preto aqui ou do povo palestino em Gaza, mas é uma afirmação de que novos começos são possíveis.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA/BRASIL. Polícia Cidadã: relatório sobre o plano de redução da letalidade policial no Estado do Rio de Janeiro. Brasília: CNJ, 2023.
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITOS HUMANOS. Leia aqui.
KUPER, Leo. Genocide: Its Political Use in the Twentieth Century. London: Penguin, 1981.
LEMKIN, Raphael. Axis rule in occupied Europe: laws of occupation, analysis of government, proposals for redress. Washington, Carnegie for Endowment for International Peace, 1944.
MINISTÉRIO DO PLANEJAMNENTO/IPEA. Atlas da Violência, 2024.
ORGANIZAÇÃO DE AGRICULTURA E DAS NAÇÕES UNIDAS. Leia aqui.
UNIVERSIDADE FERAL DO RIO DE JANEIRO. Centro de Estudos da cidadania, conflito e violência urbana. Revista Dilemas.
WALLER, James. Confronting evil: engaging our responsibility to prevent genocide. Oxford University Press, 2016.