04 Novembro 2024
A historiadora Sylvie Laurent é uma das grandes especialistas francesas em Estados Unidos. Ela leciona no Sciences Po Paris, além de colaborar com as universidades norte-americanas de Harvard e Stanford. Nos livros Capital et race: histoire d’une hydre moderne, publicado no início deste ano, e Pauvre petit blanc, de 2020, Laurent descreve a centralidade da escravidão e do racismo na gênese do capitalismo e na construção da identidade norte-americana.
A reportagem é de Enric Bonet, publicada por CTXT, 31-10-2024.
Nesta entrevista, ela analisa o duelo acirrado entre a vice-presidente Kamala Harris e o ex-presidente Donald Trump nas eleições norte-americanas de 5 de novembro. A campanha já entrou na reta final.
Por que as eleições presidenciais de 5 de novembro têm uma dimensão existencial para os Estados Unidos?
Os Estados Unidos são um país que sempre se viu como uma democracia capaz de resistir aos percalços da história sem ser alterado. Mas, com o hipotético retorno de Trump à Casa Branca, o país enfrentaria algo mais que uma simples mudança. Seria uma contrarrevolução que o deixaria como uma democracia danificada de maneira definitiva. Pode soar hiperbólico, mas é o sentimento de muitos americanos. Eles acreditam que a trajetória histórica dos Estados Unidos como uma democracia liberal está em jogo.
Em uma entrevista para a rádio France Inter, em meados de outubro, você alertou que “diferentemente de 2016”, desta vez uma vitória do candidato do Partido Republicano significaria “que os Estados Unidos aceitam ser um país de extrema-direita”. Qual é a diferença entre o Trump de agora e o de oito anos atrás?
Em 2016, de certa forma, havia uma virtualidade da extrema-direita. Já era um líder com um discurso populista, racista, demagógico e conspiratório. Todos esses elementos estavam presentes, mas, naquela época, havia um conjunto de instituições que podiam funcionar como contrapesos, desde o Partido Republicano até a Administração, passando pela mídia e os juízes. Todos eles frearam Trump durante seu primeiro mandato. Sabemos, por exemplo, graças ao testemunho de seu chefe de gabinete, o general John Kelly, que Trump pediu, em 2020, para disparar contra manifestantes durante os protestos pela morte de George Floyd, mas os generais se opuseram. Algo semelhante ocorreu com a Muslim Ban — uma ordem executiva que impôs severas restrições aos muçulmanos — cuja aplicação foi dificultada pelos juízes.
E esses contrapesos enfraqueceram desde então?
Sim, sem dúvida. O Partido Republicano está controlado por Trump. Seu número dois — e futuro vice-presidente em caso de uma vitória trumpista —, JD Vance, posiciona-se ainda mais à direita. A maioria dos juízes da Suprema Corte identifica-se com uma linha ultraconservadora. No ecossistema midiático e intelectual, as ideias da Nouvelle Droite (Nova Direita) ganharam força. Nos últimos quatro anos, muitas pessoas têm trabalhado para um hipotético segundo mandato de Trump; agora, se ele vencer, terá a possibilidade de aplicar realmente um programa de extrema-direita.
Apesar dessa radicalidade, de um primeiro mandato caótico e de uma gestão claramente deficiente da pandemia da covid-19, Trump parece ter chances reais de vencer em 5 de novembro. Como você explica isso?
Acho pertinente que mencione a covid-19, pois acredito que os analistas não dão a devida importância ao trauma que representaram para milhões de norte-americanos a pandemia e o confinamento. Para um país como os Estados Unidos, que então começava a se recuperar da crise financeira de 2008, a desaceleração da economia e do consumo gerou uma grande hostilidade contra todos aqueles responsabilizados por essas decisões. Curiosamente, essa raiva não se dirige a Trump, mas à China, às farmacêuticas ou aos serviços de saúde. Além disso, houve a terrível crise inflacionária. Tudo isso favoreceu uma espécie de nostalgia mistificada sobre a situação do país antes da pandemia. E quem estava então na Casa Branca? Donald Trump.
Quais são as narrativas em disputa nesta campanha?
Por parte de Trump, trata-se de uma retórica fascistoide bastante clássica. Ele fala de um país em decadência devido a inimigos como a esquerda, os progressistas e as minorias, além da ameaça de uma população migrante que, segundo o discurso trumpista, vem ao país para invadi-lo, ocupá-lo e provocar sua rendição. Diante desse declínio, o ex-presidente propõe um impulso nacional graças a um líder carismático. E esse discurso estruturado, e já bem conhecido, é repetido ad nauseam.
E o de Kamala Harris…
É basicamente um discurso centrista, com o qual ela quer se apresentar como a candidata dos moderados, um espaço que, segundo ela, vai desde a esquerda do Partido Democrata até os republicanos decepcionados com Trump, como Liz Cheney. Mas o problema desse discurso é que ele não propõe uma reforma estrutural do país, apenas manter o status quo. Tenho minhas dúvidas se essa aposta continuísta será suficiente para seduzir uma população vulnerável marcada pela crise econômica da covid-19 e pela inflação, além da polarização do debate público, a ameaça ao direito ao aborto e a indignação pelo apoio a Israel em suas guerras em Gaza e no Líbano.
Após ter vivido seu momento de alta em agosto, quando foi oficialmente designada como candidata na convenção dos democratas em Chicago e então subiu nas pesquisas, a candidatura de Harris parece ter perdido um pouco de força. Como você analisa isso?
A alegria e o entusiasmo que existiram no início com sua figura se deveram, sobretudo, ao alívio gerado pela retirada de Joe Biden. Muitos militantes e eleitores democratas consideravam que, se o atual presidente buscasse a reeleição, isso os levaria a uma derrota certa. A possibilidade de que uma mulher negra presida pela primeira vez o país é um incentivo para muitos americanos. Muitos deles lembram as posturas claramente progressistas de Harris durante as primárias de 2020, quando falava em reformar a polícia e promover um seguro médico universal. E essa imagem de esquerda foi reforçada com a escolha de Tim Walz como número dois.
No entanto, sua campanha estagnou desde setembro, quando optou por uma estratégia muito mais centrista. As pesquisas mostram que a maioria dos norte-americanos sabe quem é seu candidato preferido, mas têm dúvidas sobre se irão votar. Mas, em vez de tentar mobilizar toda sua base eleitoral, a equipe de Harris preferiu se dirigir aos republicanos decepcionados com Trump. Isso me parece uma estratégia arriscada e que não está funcionando, pois ela perdeu sua vantagem nas pesquisas em alguns estados-chave.
Como em 2016 e 2020, vários dos swing states (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin...) estão no antigo cinturão industrial do norte. O eleitor operário branco será decisivo? Ou se superestima o peso desse setor da população?
Acredito que o peso do eleitorado operário branco é superestimado. O conceito de classe trabalhadora nos Estados Unidos não é exatamente o mesmo que na Europa. Lá, é usado para se referir a todos aqueles americanos que não têm diploma universitário, ou seja, mais de 60% da população. Mas muitos deles não são operários e, na verdade, fazem parte da classe média, um setor que pode incluir desde as classes médias baixas, como os trabalhadores industriais, até empresários que ganham muito bem. Muitos desses “operários brancos” são cristãos, e é verdade que entre eles os eleitores de Trump estão sobrerrepresentados. Se parte deles apoiar Harris, isso pode ser decisivo. No entanto, é bastante mais relevante para as chances da democrata a mobilização de mulheres e jovens em cidades universitárias como Madison ou Filadélfia.
Em seu livro Pauvre petit blanc, você descreve a construção desse conceito do operário branco oprimido, que remonta a séculos e que o Partido Republicano vem utilizando desde os anos setenta com Richard Nixon. Nesta campanha, JD Vance tenta se apresentar como seu porta-voz, apesar das contradições desse termo.
É fascinante a maneira como se articulou a definição do proletariado nos Estados Unidos, como aqueles que devem vender sua força de trabalho para sobreviver. Desde sua independência, a história do país foi muito marcada pela exploração do trabalho não remunerado dos escravos. Para garantir seu poder e a ausência de conflitos sociais, as elites aproveitaram essa tradição escravista para dar aos brancos de categorias modestas o salário simbólico da brancura, conforme o conceito do intelectual afro-americano W.E.B. Du Bois. Ou seja, davam aos brancos pobres esse privilégio simbólico – Karl Marx falava em fetiche – que os convertia em uma espécie de aristocracia do proletariado. E isso servia para exaltar sua raça branca, o que lhes permitia ser cidadãos livres, ao contrário dos negros, que eram força de trabalho servil.
Durante décadas, essa aliança do capitalismo com o racismo permitiu, primeiro, ao Partido Democrata e depois ao Republicano, construir uma aliança entre as classes dominantes e populares brancas em torno da ideia de que havia uma redistribuição social pelo privilégio de ser branco. Com o movimento pelos direitos civis nos anos sessenta e setenta e o interesse crescente dos democratas pela defesa das mulheres e das minorias, os republicanos redobraram sua aposta no salário simbólico da brancura. Isso ficou evidente com Richard Nixon (presidente entre 1969 e 1973), que já falava de uma minoria branca oprimida. Um discurso agora exacerbado por Trump, que, graças a essa identidade racial, conseguiu se tornar o ídolo de uma parte das categorias modestas.
Apesar de esse conceito do “pequeno operário branco oprimido” ser mais ideológico do que sociológico, é um fator frequentemente citado na Europa, inclusive pela esquerda, para analisar o trumpismo.
A burguesia e as elites conservadoras têm demonstrado certa habilidade nos últimos anos para se apresentarem como porta-vozes do povo. Após décadas de neoliberalismo e desprezo pelas classes populares, modificaram seu discurso e identificaram a xenofobia e o medo da decadência da civilização ocidental com os interesses do povo. Entenderam que é muito mais eficaz politicamente identificar essas ideias com os interesses do povo do que assumir que, na verdade, se trata de obsessões de uma parte dessas mesmas elites. Isso foi acompanhado de um bombardeio midiático de ideias xenófobas. Em certa medida, o populismo das elites se reflete na construção de um povo com os mesmos valores que elas.
A lógica racial é um fator-chave nesta campanha? Ou o apoio das minorias ao Partido Democrata se reduziu, como apontam algumas pesquisas?
A verdade é que me incomoda essa insistência nos afro-americanos ou hispânicos que apoiam Trump, principalmente considerando que 85% dos primeiros dizem apoiar Harris e sempre houve cerca de 30% dos hispânicos próximos ao Partido Republicano. Isso nos faz esquecer o essencial: se apenas os norte-americanos brancos (65% do eleitorado) pudessem votar, Trump venceria com folga. Por que a maioria deles, tanto homens quanto mulheres, apoia um supremacista branco declarado culpado por 34 crimes e que recomendava tomar água sanitária para se curar da covid-19? Esse é o verdadeiro elefante na sala.
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“A trajetória histórica dos Estados Unidos como uma democracia liberal está em jogo”. Entrevista com Sylvie Laurent - Instituto Humanitas Unisinos - IHU