09 Novembro 2023
"Existe uma alternativa para a convivência de ambos os povos, com as suas religiões e tradições, e uma esperança de paz, que passa pela transformação do Estado de Israel numa verdadeira democracia do Oriente Médio", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 08-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
A interpretação oficial estadunidense das relações internacionais como uma "competição estratégica" pela dominação mundial, a determinação dos Estados Unidos em vencê-la erradicando, só para começar, a Rússia e a China, o "faça você mesmo" de Putin usando a guerra para garantir a segurança das fronteiras com a Ucrânia, a primeira reação de Zelensky que pediu a dissolução da ONU, a perversa ação terrorista do Hamas em 7 de outubro e a vingança do Estado de Israel contra toda a população palestina e todo o território de Gaza, acabaram com a ordem internacional, exacerbando a "guerra mundial em pedaços" já denunciada pelo Papa.
A primeira e mais importante vítima dessa catástrofe é a ONU, cuja demolição inverte o curso histórico que parecia poder levar até a uma Constituição da Terra ou a um constitucionalismo mundial. A impotência em que caiu a ONU, apesar da boa vontade do seu secretário-geral, foi atribuída à paralisia do Conselho de Segurança. A última explosão da crise ocorreu com o embate entre o governo de Israel e o secretário-geral, por três verdades enunciadas por este último, que Israel não pode admitir e que geralmente são ocultadas.
A primeira verdade foi dita por Guterres na reunião do Conselho de Segurança de 24 de outubro. Ele condenou claramente os “atos de terror indiscriminado do Hamas, que nada pode justificar”. Mas acrescentou: “É importante reconhecer que os ataques do Hamas não aconteceram do nada. O povo palestino foi submetido a 56 anos de ocupação sufocante. Viu a sua terra constantemente devorada pelos assentamentos e assolada pela violência; a sua economia sufocada; a sua população deslocada e as suas casas demolidas. As esperanças de uma solução política para a sua situação desapareceram." Por essa constatação óbvia, o embaixador israelense na ONU pediu que Guterres renunciasse imediatamente.
O secretário da ONU denunciou a segunda verdade no dia 20 de outubro na passagem de Rafah: “É impossível estar aqui e não ficar com o coração partido. Atrás desses muros temos dois milhões de pessoas que sofrem enormemente. Que não têm água, nem comida, nem remédios, nem combustível. E que estão sob ataque e precisam de tudo para sobreviver."
Ele gritou a terceira verdade num apelo humanitário lançado ao mundo no dia 4 de novembro, no qual pedia para "ajudar 2,7 milhões de pessoas, ou seja, toda a população da Faixa de Gaza e meio milhão de palestinos na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental”: “Gaza está se tornando um cemitério para crianças – disse ele – Mais jornalistas foram mortos em quatro semanas do que em qualquer conflito em pelo menos três décadas. E mais agentes humanitários da ONU foram mortos do que em qualquer período comparável na história da nossa organização”. O ministro das Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, reagiu a esse apelo dizendo: “Tenha vergonha!”; e no dia seguinte o ministro Amichal Eliahu disse que Gaza precisaria de uma bomba atômica.
Contra os horrores denunciados por essas três verdades, podemos citar três verdades opostas enunciadas por três grandes testemunhas do Judaísmo contemporâneo, que não se entende por que não deveriam ser ouvidas como foram os grandes Profetas de Israel e a Torá sobre a qual o Judaísmo está fundado.
A primeira verdade é que o Estado de Israel não pode apelar à enorme tragédia do Holocausto para justificar qualquer crime de guerra, conquista ou represália como “defesa” para impedir que possa se repetir. Seria “uma catástrofe”, como escreveu Yehuda Elkana, filósofo da ciência e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: “Duas nações, saídas das cinzas de Auschwitz: uma minoria que afirma que ‘isso nunca mais deve nos acontecer’ e uma maioria assustada e atormentada que diz “isso nunca mais deve nos acontecer’. É claro que, se essas são as únicas lições possíveis, sempre acreditei na primeira e considerei a outra uma catástrofe.”
A segunda verdade diz que todos os seres humanos, de qualquer etnia, não devem ser dizimados, mas amados. O rabino Arthur Green, de Boston, explicou isso relembrando uma controvérsia entre os dois famosos rabinos Akiva e Ben Azzai sobre qual seria o princípio fundamental da Torá. O primeiro disse que era o preceito de amar o próximo como a si mesmo. Mas quem é o próximo? Os outros judeus? O segundo disse, portanto, que o princípio ainda maior reside no Gênesis, pelo qual todos os seres humanos são criados à imagem de Deus, e que “toda forma de judaísmo que se distancia disso é ‘uma deformação da religião’” e “a luta contra o exclusivismo" (sobretudo o Estado de Israel) é "o grande desafio do Judaísmo hoje".
A terceira verdade é que não se deveria incutir o Holocausto como determinante de todo comportamento na consciência judaica desde crianças. Yehuda Elkana escreveu no “Haaretz”: “O que uma criança deve fazer com essas memórias? Muitas das fotografias desses horrores são interpretadas como um apelo ao ódio. ‘Zechor!’ pode ser facilmente ser entendido como um apelo ao ódio cego e contínuo."
E escreveu isso também na Itália Bruno Segre (“Que tipo de judeu eu sou"): “Se a memória do horror não for ligada a um questionamento lúcido sobre o nosso horrível presente, e não sugerir aos jovens a ideia de um futuro menos indecente do que o que temos às nossas costas, a invocação ritual ‘isso nunca mais deve acontecer’ cai no vazio, não serve para nada. Transmitir a memória do Holocausto setenta anos depois só tem sentido se conseguirmos educar as jovens gerações para a leitura da história e para a compreensão crítica da sua complexidade, induzindo-as a estarem preparadas, em qualquer eventualidade, para prevenir e impedir derivas destrutivas e criminosas. Para que o Dia da Memória ‘funcione’ e signifique algo para os nossos jovens, deve favorecer neles a projeção de um futuro vivível, a ser partilhado fraternalmente com todos os filhos dos homens”.
Existe, portanto, uma alternativa para a convivência de ambos os povos, com as suas religiões e tradições, e uma esperança de paz, que passa pela transformação do Estado de Israel numa verdadeira democracia do Oriente Médio.
E quanto à ONU, é verdade que o direito de veto paralisa o Conselho de Segurança, mas também é verdade que quando não foi exercido, a ONU promoveu a guerra contra a Iugoslávia, enquanto seria justo que os países economicamente mais afortunados no plano econômico e mais fortes no plano político, assumissem responsabilidades e garantissem a paz no mundo, por dever de humanidade e não apenas porque venceram a Segunda Guerra Mundial. Caso contrário, centenas de milhares de pessoas morrerão devido à impotência da ONU, mas muitas outras sentirão o dever de lutar até dar a vida para que ela seja capaz de atuar pela salvação da Terra e de todos os seus habitantes, até morrer por ela.
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Morrer pela ONU. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU