27 Outubro 2023
"Efetivamente, na quinta-feira, 19 de julho o Parlamento israelense, o Knesset, aprovou por estreita maioria com 62 votos a favor e 55 contra uma lei constitucional que estava em elaboração há tempo, estabelecendo nesses termos peremptórios a natureza do Estado, que até agora não queria ser definida em qualquer Constituição formal, com base na ideia de que a verdadeira Constituição de Israel é a Torá (a Escritura)", escreve Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 25-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nas reconstruções dos 75 anos do conflito Israel-Palestina, ninguém, nem mesmo Guterres, lembrou de 2018 que, ao contrário, explica tudo. É o ano em que, em 19 de julho, o Estado de Israel mudou a sua natureza, e de estado democrático, como era o plano do sionismo, passou a ser por lei constitucional um “Estado-Nação do povo judeu”. Isso explica tudo, no sentido de que se o princípio fundador que queria unir democracia e judaísmo admitia a existência do “Outro”, a ponto de permitir o sonho de “dois povos em dois Estados”, a transição para o Estado-Nação do povo judeu reservava apenas a este o direito à autodeterminação, ou seja, direitos políticos, e tornava incompatível a existência de um segundo povo; daí os 700.000 colonos espalhados por 279 assentamentos atualmente presentes nos territórios ocupados habitados por 3 milhões de palestinos. A notícia era assim divulgada num dos nossos boletins informativos de 24 de julho de 2018 (“Sionismo sem democracia?”), que transcrevemos aqui como foi publicada:
Há uma notícia que ficou quase escondida, porque é muito difícil de transmitir, não sabem como fazer com que seja aceita pelo senso comum, mas é de tal importância que marca uma cesura na história que vivemos. O Estado de Israel, pelo menos na sua qualidade oficial e jurídica, muda a sua natureza. Não é mais o Estado que une democracia e judaísmo, como era no sonho do sionismo, mas é definido como um Estado-nação judeu, um Estado apenas do povo judeu, no qual os outros, qualquer que seja o seu número, são neutralizados na sua dimensão política, isto é, na sua existência real: não participam naquilo que, na democracia, se chama autodeterminação, que é reservada unicamente ao povo judeu, o único soberano. Os outros são, naturalmente, os árabes e, especificamente, os palestinos, sejam eles muçulmanos ou cristãos.
Efetivamente, na quinta-feira, 19 de julho o Parlamento israelense, o Knesset, aprovou por estreita maioria com 62 votos a favor e 55 contra uma lei constitucional que estava em elaboração há tempo, estabelecendo nesses termos peremptórios a natureza do Estado, que até agora não queria ser definida em qualquer Constituição formal, com base na ideia de que a verdadeira Constituição de Israel é a Torá (a Escritura). Para explicar melhor, um primeiro artigo constitucional do tipo “A Itália é uma república democrática fundada no trabalho. A soberania pertence ao povo…” teria sido impensável para Israel; e de fato, após uma primeira abordagem inicial para a qual foram consultados os livros de Carl Schmitt, a tentativa constitucional foi abandonada, como nos contou na oportunidade Jacob Taubes.
No entanto, para o sionismo fundador, que quisera queimar os tempos da espera devido à demora do Messias, estava fora de questão que deveria ser um estado democrático. Assim, pelo menos uma correção foi introduzida no último momento no texto da lei, a pedido do Presidente de Israel, Reuven Rivlin, que numa carta aos parlamentares expressou o receio de que pudesse "causar danos ao povo judeu, para os judeus no mundo e para o Estado de Israel". De fato, foi abolida a norma que permitia a qualquer comunidade (judaica, mas também não-judaica) constituir-se como comunidade identitária fechada, com base religiosa ou nacional, com exclusão de seu âmbito de todos os outros (não-judeus, não-drusos, não- ortodoxos, etc.), o que arriscava criar em Israel uma rede de apartheid segregados tipo pele de leopardo; em vez disso, uma vez derrubada essa norma, a separação que é constitucionalizada é colocada como garantia apenas dos assentamentos judaicos, privando de direitos todos os outros.
Do ponto de vista político, a lei votada pelo Knesset liquida a causa palestina, preludia a anexação dos Territórios Ocupados, descarta definitivamente a opção assumida por toda a comunidade internacional de dois povos em dois Estados e transforma em sucata as resoluções da ONU sobre o conflito na Palestina e sobre o status de Jerusalém. Resta saber quais serão os fatos: a resistência de Gaza, sozinha, com suas patéticas pipas incendiárias, como as pedras de Davi contra Golias, na realidade mantém toda a questão em aberto.
Mas há um nível ainda mais profundo: o que acontece com o Judaísmo? A razão pela qual Israel decidiu dar esse passo não pode ser banalizada: a tendência demográfica no Médio Oriente é tal que em Israel os judeus serão em breve uma minoria em comparação com a crescente população árabe-palestina; e como em democracia são os números que contam e a paz entre os dois povos não foi alcançada nem mesmo tentada, os judeus de Israel temem ser esmagados e, portanto, a democracia é um luxo que não podem manter. Na alternativa entre democracia e judaísmo, a escolha é pelo judaísmo. Infelizmente, falta lucidez para compreender que se trata de uma falsa alternativa. Essa incompatibilidade não é verdadeira: mas reconhecê-la exige uma profunda conversão cultural e religiosa.
Os judeus (mesmo os judeus não crentes do Estado de Israel) baseiam a sua identidade como povo e como Estado nas Escrituras. Mas quando essa tradição se formou (quando Deus “falou” com Abraão, Moisés, Davi e também com os profetas) podia se conceber que a identidade de um povo se preservasse na uniformidade de um reino, na inviolabilidade das fronteiras, na não contaminação com os estrangeiros, na regra da pureza, antídoto para qualquer miscigenação.
Mas como preservar essa identidade nas condições da democracia, do pluralismo, da igualdade, da globalização, do Estado de direito, não podia ser objeto da revelação da época, Deus não podia dizê-lo ao seu povo. Jesus forneceu uma indicação muito forte de como ser povo, mas aquela Palavra não foi reconhecida por Israel como a Palavra esperada. Portanto, como dolorosamente fizeram outras tradições, a judaica também deveria buscar os novos sentidos das suas Escrituras, o que seria realmente a fidelidade à Palavra recebida, lida não mais nas condições de ontem, com os olhos voltados para as tempestades passadas, mas nas condições de hoje, com os homens de hoje, com a maravilhosa multicolorida humanidade de hoje, com os olhos voltados para o futuro a ser construído, para esse Messias que sempre há de vir, mas como paz, não como apocalipse. É através dessa lavagem, não mais no sangue, mas na água novamente partilhada da Palestina, que Israel salvará a si mesmo, a sua identidade e as vidas das pessoas, não mais estrangeiros.
A situação não afeta apenas os judeus. Seria muito importante que os nossos grupos de diálogo judaico-cristão, livres das sugestões de referências a um antigo fundamentalismo bíblico, procurassem com os seus irmãos judeus tais novos sentidos e uma nova compreensão da Palavra libertadora”.
Até aqui, a nossa matéria da época, com o link ao qual se referia, que era um artigo do Haaretz,“A lei que diz a verdade sobre Israel” e o texto da lei votada pelo Knesset. Os “fatos” que nesses textos se temiam, que temia o próprio Reuven Rivlin, presidente de Israel, se confirmaram da forma mais atroz, até o 7 de outubro do Hamas e a reação de Israel em Gaza.
Mas o alerta desses acontecimentos vai muito além dos protagonistas imediatos. Diz respeito às grandes potências, a começar pelos Estados Unidos: renunciar a projetos de um poder exclusivo, de “competições estratégicas” que, na exclusão do outro, só podem levar ao recíproco genocídio.
Diz respeito à Europa: não fique afagando a guerra que está em sua casa, que tanto aprecia para erradicar a Rússia, a guerra civil europeia em embrião já é a guerra mundial.
Diz respeito às religiões, de que elas devem buscar a “salvação” senão da alma do mundo?
Diz respeito ao diálogo judaico-cristão: não se trata apenas de conversar e de se abraçar entre “irmãos mais velhos e mais novos”, é uma questão de olhar profundamente para dentro de si mesmos, é um apelo à conversão.
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A identidade do estado de Israel. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU