19 Dezembro 2022
O Papa Francisco nomeará uma mulher à frente de um dicastério vaticano dentro de dois anos. Ele mesmo anunciou isso em uma entrevista ao jornal espanhol ABC na qual também revela que já assinou, no início de seu pontificado, a renúncia em caso de impedimento.
A reportagem Iacopo Scaramuzzi, publicada por Repubblica, 18-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Já assinei minha renúncia", revela Francisco pela primeira vez em uma entrevista concedida aos jornalistas Javier Martinez-Brocal e Julian Quiros. Não é a primeira vez que o Papa fala da possibilidade de renunciar, mas é a primeira vez que revela a existência de um documento depositado nesse sentido. Das palavras do Papa entende-se que o documento foi assinado logo nos primeiros meses de seu pontificado: "Foi quando Tarcisio Bertone era secretário de Estado", explica Bergoglio: o salesiano se aposentou no mesmo ano do Conclave, em 2013, sendo substituído pelo atual secretário de Estado, Pietro Parolin. "Assinei a renúncia e disse a ele: ‘Em caso de impedimento médico ou sei lá o quê, aqui está a minha renúncia. Está contigo'. Não sei a quem Bertone a deu, mas eu a dei a ele quando ele era secretário de Estado". O Papa nunca havia mencionado a existência desse documento: "Agora talvez - comenta rindo com os jornalistas do ABC - alguém irá pedir a Bertone: 'Dê-me aquela carta'... Certamente ele a terá entregue ao novo secretário de Estado. Eu a dei a ele como Secretário de Estado."
A renúncia de um Papa não é uma novidade absoluta, como ficou claro com Bento XVI em fevereiro de 2013. Sabe-se que Paulo VI deixou sua renúncia por escrito em caso de impedimento” e creio que Pio XII também o tenha feito”, especifica Francisco. João Paulo II avaliou o assunto, mas resolveu permanecer no governo até o fim de seus dias. Então veio a revolução de Joseph Ratzinger. Ele, na verdade, já havia preanunciado essa possibilidade no livro-entrevista com o jornalista alemão Peter Seewald "Últimas conversas", em 2016, onde explicava: "Quando um Papa chega à clara consciência de não estar mais fisicamente, mentalmente e espiritualmente apto para cumprir a tarefa que lhe foi confiada, então ele tem o direito e, em determinadas circunstâncias, também o dever de renunciar". O conteúdo exato do documento redigido pelo Papa não está claro agora ("Em caso de impedimento médico ou sei lá o quê"), mas é possível adivinhar que segue aquela previsão de Bento XVI. Que, em fevereiro de 2013, disse aos cardeais reunidos no Consistório que havia “chegado à certeza de que minhas forças, devido à minha idade avançada, não são mais adequadas para exercer adequadamente o ministério petrino”. Uma eventualidade que Francisco também já chegou a prever, mas que em todo o caso não está em seus planos: "Governa-se com a cabeça, não com o joelho", aponta Francisco, falando dos conhecidos problemas de mobilidade que há um ano o obrigaram a usar uma cadeira de rodas ou a bengala. Quanto ao um conselho a dar aos sucessores, “eu lhes diria para não cometerem os erros que cometi, ponto final e nada mais”, afirma o Papa. Existem muitos erros? "Sim, existem, sim."
Uma mulher à frente de um dicastério "vai existir", garante Francisco. “Tenho uma em mente para um dicastério que ficará vago em dois anos. Não há nenhum obstáculo para uma mulher liderar um dicastério onde um leigo pode ser prefeito”. A novidade na realidade consta da nova constituição apostólica Praedicate Evangelium, que o Papa promulgou em março deste ano, na qual, ao redesenhar o organograma da Cúria Romana, o primeiro pontífice latino-americano da história instituiu que "qualquer fiel", portanto, também um leigo, também uma mulher, "pode presidir a um Dicastério ou a um Organismo". Desde então, porém, apesar de ter nomeado várias mulheres para cargos-chave (secretária-geral do Governatorato, várias secretárias de dicastérios, subsecretária do Sínodo, os membros do Conselho para a Economia), ainda nenhuma mulher subiu ao topo das lideranças da Santa Sé. Agora, o Papa promete que uma mulher será chefe de dicastério até 2025. A constituição apostólica também havia suscitado um aceso debate sobre o fundamento jurídico e eclesiológico dessa possibilidade, a "participação dos leigos na plenitude do poder exercido pelos bispos e em alguns âmbitos pelos clérigos", como explicou o cardeal canonista Giancarlo Ghirlanda. Um "dicastério de natureza sacramental", diz agora o Papa, "deve ser presidido por um sacerdote ou um bispo. Mesmo que se discuta se a autoridade se origine da missão, como afirma o cardeal Ouellet, ou do sacramento, como defende a escola de Rouco Varela. É uma boa discussão entre cardeais, uma questão que os teólogos continuam a discutir". Mas, enquanto isso, uma "ministra" vaticana chegará em dois anos.
Também relevante, na entrevista ao ABC, é o fato de o Papa revelar que não tem intenção - como também havia sido sugerido - de regular o delicado status do Papa emérito: desde que Bento XVI renunciou ao trono papal, de fato, pela primeira vez na história moderna da Igreja, não são regulados normativamente o papel, a presença, o significado da existência de um Papa aposentado ao lado do papa reinante. O que, aliás, deu origem a alguns conflitos de interpretação nesse período. “Não mexi em nada” no status jurídico do Papa emérito, “nem tive a ideia de o fazer”, resume o Papa. “Tenho a sensação de que o Espírito Santo não tem interesse em que eu lide com essas coisas".
Em entrevista ao jornal conservador espanhol, Francisco explica sua intervenção na Opus Dei, que nos últimos meses passou sob o dicastério do Clero com a previsão de que o prelado não poderá mais ser bispo, e sublinha que não foi uma manobra hostil à Obra criada por S. Josemaria Escrivà de Balaguer: “Alguns disseram: 'Finalmente, o Papa acertou as contas com a Opus Dei...!' Eu não acertei nada. E outros, ao contrário, diziam: ‘Ah, o Papa está nos invadindo!’. Nada disso. A medida é um remanejamento que tinha que ser resolvido. Não é correto engrandecer o caso, nem para fazer deles vítimas, nem os tornar culpados que receberam um castigo. Por favor. Sou um grande amigo da Opus Dei, gosto muito das pessoas da Opus Dei e eles trabalham bem na Igreja. O bem que eles fazem é muito grande."
Por fim, na entrevista ao jornal espanhol, Francisco retorna sobre algumas de suas palavras que haviam indisposto a direita política do país sobre a colonização da América Latina: "É óbvio que pessoas foram mortas lá, é óbvio que houve uma exploração, mas os índios também se mataram. A atmosfera de guerra não foi exportada pelos espanhóis. E a conquista pertencia a todos. Eu faço uma distinção entre colonização e conquista. Não gosto de dizer que a Espanha simplesmente ‘conquistou’. É questionável, tanto quanto vocês quiserem, repete o Papa argentino, mas colonizou". Francisco explica que não planeja visitar a Espanha: "Talvez no próximo ano eu vá a Marselha para o Encontro do Mediterrâneo, mas não é uma viagem para a França" Por fim, a desanimada reflexão do Papa sobre a guerra russa na Ucrânia: "Não vejo um fim a curto prazo porque se trata de uma guerra mundial. Não vamos esquecer isso. Já existem várias mãos envolvidas na guerra. É global".
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O Papa: "Já assinei minha renúncia em caso de doença". E anuncia: "Dentro de dois anos, uma mulher à frente de um Dicastério" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU