Em defesa do Papa Francisco, do Grande Sul, contra seus impiedosos detratores. Artigo de Leonardo Boff

Papa Francisco | Foto: Vatican Media

22 Novembro 2022

O artigo é de Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor, publicado por Religión Digital, 21-11-2022. 

Eis o artigo. 

Desde o início de seu pontificado, há nove anos, o Papa Francisco vem recebendo ataques furiosos de tradicionalistas cristãos e supremacistas brancos, quase todos do norte do mundo, Estados Unidos e Europa. Fizeram até uma conspiração, envolvendo milhões de dólares, para depô-lo, como se a Igreja fosse uma empresa e o papa seu CEO. Tudo em vão. Ele segue seu caminho no espírito das bem-aventuranças evangélicas dos perseguidos.

Os motivos dessa perseguição são vários: motivos geopolíticos, uma disputa de poder, outra visão da Igreja e a questão ecológica de cuidar da nossa Casa Comum.

Elevo minha voz em defesa do Papa Francisco da periferia do mundo, do Grande Sul. Comparemos os números: apenas 21,5% dos católicos vivem na Europa, 82% vivem fora dela, 48% na América. Os outros na África e na Ásia. Somos, portanto, a grande maioria.

Uma Igreja do terceiro e quarto mundo

Até meados do século passado, a Igreja Católica era do primeiro mundo. Agora é uma Igreja do Terceiro e Quarto Mundo, que, um dia, se originou no Primeiro Mundo. Aqui surge uma questão geopolítica. Os conservadores europeus, com exceção de notáveis ​​organizações católicas e outras igrejas históricas não católicas de cooperação solidária, nutrem um desdém soberano pelo Grande Sul, especialmente pela América Latina.

A grande instituição da Igreja foi aliada da colonização, cúmplice do genocídio indígena e participante da escravidão. Aqui foi implantada uma Igreja colonial, espelho da Igreja europeia. Mas ao longo de mais de 500 anos, apesar da persistência da Igreja espelho, houve uma eclesiogênese, a gênese de um outro modo de ser Igreja, uma Igreja, não mais espelho, mas fonte: encarnou-se na cultura indígena local-negro-mestiço e imigrantes de cidades provenientes de 60 países diferentes.

A partir desse amálgama, foi gestado seu estilo de adorar a Deus e festejar, de organizar seu ministério social junto aos oprimidos que lutam por sua libertação. Ele projetou uma teologia adequada à sua prática libertadora e popular. Tem seus profetas, confessores, teólogos e teólogas, santos e santas, e muitos mártires, entre eles o Arcebispo de San Salvador, Oscar Arnulfo Romero.

Este tipo de Igreja estrutura-se em torno da temática eclesiológica da communio e não da sacra potestas, distribuída hierarquicamente. É fundamentalmente constituída por comunidades eclesiais de base e outros grupos populares, onde se vive a dimensão da comunhão de iguais, todos irmãos e irmãs, com os seus coordenadores leigos, homens e mulheres, com sacerdotes inseridos no meio do povo e bispos, nunca de costas voltadas ao povo como autoridades eclesiásticas, mas como pastores ao seu lado, com "cheiro de ovelha", com a missão de serem os "defensores et advocati pauperum", como se dizia na Igreja primitiva.

Proibições do Vaticano

Papas e autoridades doutrinárias vaticanas tentaram cercear e até condenar tal modo de ser Igreja, não raro com o argumento de que não são Igreja porque não veem neles o caráter hierárquico e o estilo romano, como, por exemplo, a missa dos negros e dos indígenas no Brasil, proibida pelas autoridades vaticanas.

Essa ameaça durou muitos anos até que, finalmente, surgiu a figura do Papa Francisco. Ele veio do caldo dessa nova cultura eclesial, bem expressa pela opção preferencial e não exclusiva pelos pobres e pelas diversas vertentes da teologia da libertação que a acompanha. Ele deu legitimidade a esta forma de viver a fé cristã, sobretudo em situações de grande opressão.

Mas o que mais escandaliza os cristãos tradicionalistas é o seu estilo de exercer o ministério da unidade da Igreja. Ele não se apresenta mais como o pontífice clássico, vestido com símbolos pagãos retirados dos imperadores romanos, especialmente a famosa mozzeta, aquele banquinho cheio de símbolos do poder absoluto do imperador e do papa, como aconteceu com Gregório VII (1073, Dictatus Papae) ou Bonifácio VIII (1303 Unam Sanctam), que assumiu o poder divino sobre a Igreja e sobre o mundo inteiro.

Francisco rapidamente se livrou dela e vestiu uma simples mozzeta branca, como a do grande profeta do Brasil, Dom Helder Câmara, e sua cruz de ferro sem nenhuma joia. Recusou-se a morar em um palácio pontifício, o que teria feito São Francisco ressurgir do túmulo para levá-lo para onde ele quisesse: em uma simples hospedaria, a Santa Marta. Lá ele entra na fila para se servir e come junto com todos. Com humor, podemos dizer que é mais difícil envenená-lo dessa maneira.

Ele não usa Prada, mas seus sapatos velhos e gastos. No anuário pontifício que ocupa uma página inteira com os títulos honorários dos papas, ele simplesmente renunciou a todos eles e escreveu apenas Franciscus, pontifex. Em um de seus primeiros pronunciamentos, ele afirmou claramente que não iria presidir a Igreja com o direito canônico, mas com amor e ternura. Inúmeras vezes repetiu que queria uma Igreja pobre e para os pobres.

Todo o grande problema da Igreja-grande-instituição reside, desde os imperadores Constantino e Teodósio, na assunção do poder político, transformado em poder sagrado (sacra potestas e plenitudo potestatis). Esse processo teve seu ápice com o Papa Gregório VII (1075) com sua bula Dictatus Papae, que, bem traduzida, é a “Ditadura do Papa”. Como diz o grande eclesiólogo Jean-Yves Congar, com este papa consolidou-se a mudança mais decisiva na Igreja, que criou tantos problemas e da qual ela nunca se livrou: o exercício centralizado, autoritário e até despótico do poder. Nas 27 proposições da bula, o papa é considerado o senhor absoluto da Igreja, o único e supremo senhor do mundo, tornando-se a autoridade suprema nos campos espiritual e temporal. Isso nunca foi infeliz.

Crescente faraonismo

Basta ler o cânon 331, no qual se diz que “o Pastor da Igreja universal tem o poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal”. Coisa inédita: se riscarmos o termo Pastor da Igreja universal e colocarmos Deus, funciona perfeitamente. Quem entre os humanos senão Deus pode reivindicar tal concentração de poder? Não é sem significado que na história dos papas houve um crescendo no faraonismo do poder: de sucessores a Pedro, os papas passaram a se considerar representantes de Cristo. E como se não bastasse, representantes de Deus, sendo até chamados deus minor in terra.

Aqui se concretiza a arrogância grega e o que Thomas Hobbes afirma no seu Leviatã: "Aponto, como tendência geral de todos os homens, um desejo perpétuo e inquieto de poder e mais poder, que só termina com a morte. A razão disso reside no fato de que o poder não pode ser garantido se não for buscando ainda mais poder".

Essa, então, tem sido a trajetória da Igreja Católica em relação ao poder, que persiste até hoje, fonte de polêmica com as demais igrejas cristãs e de extrema dificuldade em assumir os valores humanísticos da modernidade. Está a anos-luz da visão de Jesus que queria um poder-serviço (hierodulia) e não um poder-hierarquia (hierarquia).

O Papa Francisco se distancia de tudo isso, que causa indignação entre conservadores e reacionários, claramente expresso no livro de outubro de 2021 de 45 autores: Da paz de Bento à guerra de Francisco, apresentado por Peter A. Kwasniewski.

Faríamos assim: Da paz dos pedófilos de Benecdito (encobertos por ele) à guerra contra os pedófilos de Francisco (condenados por ele). Sabe-se que um tribunal de Munique encontrou provas para incriminar o Papa Bento XVI por sua clemência com padres pedófilos.

Mais perto da gruta do que do palácio

Há um problema de geopolítica eclesiástica: os tradicionalistas rejeitam um papa que vem "do fim do mundo", que traz outro estilo ao centro de poder do Vaticano, mais próximo da gruta de Belém do que dos palácios dos imperadores.

Se Jesus aparecesse ao papa em seu passeio pelos jardins do Vaticano, certamente diria: “Pedro, sobre estas pedras palacianas jamais edificaria a minha Igreja”. Essa contradição é vivida pelo Papa Francisco, desde que renunciou ao estilo palaciano e imperial.

Há, com efeito, um embate de geopolítica religiosa, entre o centro, que perdeu a hegemonia em número e irradiação, mas que mantém os hábitos de exercício autoritário do poder, e a periferia, numericamente maioritariamente católica, com novas igrejas, com novas estilos de viver a fé e em diálogo permanente com o mundo, especialmente com os condenados da Terra, que sempre tem uma palavra a dizer sobre as chagas que sangram no corpo do Crucificado, presentes nos empobrecidos e oprimidos.

Talvez o que mais incomode os cristãos presos ao passado seja a visão da Igreja vivida pelo Papa. Não uma Igreja-castelo, fechada em si mesma, nos seus valores e doutrinas, mas uma Igreja “hospital de campanha”, sempre “a caminho das periferias existenciais”. Ela acolhe a todos sem questionar o seu credo ou a sua posição moral. Basta que sejam seres humanos em busca do sentido da vida e sofram com as adversidades deste mundo globalizado, injusto, cruel e impiedoso.

Condena diretamente o sistema assassino que dá centralidade ao dinheiro à custa de vidas humanas e à custa da natureza. Realizou vários encontros mundiais com movimentos populares. No último, o quarto, ele disse explicitamente: "Este sistema (capitalista), com sua lógica implacável, escapa ao controle humano; é preciso trabalhar por mais justiça e acabar com esse sistema de morte". Na Fratelli tutti, ele o condena veementemente.

A centralidade de Jesus

Orienta-se por aquela que é uma das grandes contribuições da teologia latino-americana: a centralidade do Jesus histórico, pobre, cheio de ternura com os que sofrem, sempre ao lado dos pobres e marginalizados.

O Papa Francisco respeita os dogmas e as doutrinas, mas não é por eles que chega ao coração do povo. Para ele, Jesus veio ensinar a viver: confiança total em Deus-Abbá, viver o amor incondicional, a solidariedade, a compaixão pelos que caíram no caminho, o cuidado com a Criação, bens que constituem o conteúdo da mensagem central. Jesus: o Reino de Deus. Ele prega incansavelmente a misericórdia ilimitada com a qual Deus salva seus filhos e filhas, pois não pode perder nenhum deles, frutos de seu amor, "porque é o amante apaixonado da vida" (Sb 11,26). Por isso afirma que "por mais que alguém seja ferido pelo mal, nunca está condenado nesta terra a estar para sempre separado de Deus". Afirma enfaticamente: "A misericórdia será sempre maior do que qualquer pecado e ninguém poderá pôr limites ao amor de Deus que perdoa" (Misericordiae vultus, 2). Em outras palavras: a danação é apenas para este tempo.

Papa Francisco com os refugiados em Lampeusa

Foto: Vatican Media

Convoca todos os párocos a exercerem a pastoral da ternura e do amor incondicional, resumido por um líder popular de uma comunidade popular: “a alma não tem fronteira, nenhuma vida é estrangeira”. Como poucos no mundo, ele se comprometeu com imigrantes da África e do Oriente Médio e agora da Ucrânia. Lamenta que nós, modernos, tenhamos perdido a capacidade de chorar, de sentir a dor do outro e, como um bom samaritano, de ajudá-lo em seu abandono.

Seu trabalho mais importante mostra preocupação com o futuro da vida na Mãe Terra. A Laudato si' expressa seu verdadeiro significado no subtítulo: “sobre o cuidado da nossa Casa Comum”. Ela elabora não uma ecologia verde, mas uma ecologia integral que engloba o meio ambiente, a sociedade, a política, a cultura, a vida cotidiana e o mundo do espírito.

"Nós estamos no mesmo barco"

Pressupõe as contribuições mais seguras das ciências da Terra e da vida, especialmente a física quântica e a nova cosmologia, o fato de que “tudo se relaciona com tudo e nos une com afeto ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra”, como diz poeticamente na Laudato si'. A categoria cuidado e corresponsabilidade coletiva adquire centralidade total a ponto de dizer, na Fratelli tutti, que "estamos no mesmo barco: ou todos se salvam ou ninguém se salva" (n. 32).

Nós, latino-americanos, somos profundamente gratos a você por ter convocado o Sínodo da Querida Amazônia para defender este imenso bioma de interesse para toda a Terra e como a Igreja está encarnada nessa vasta região que abrange nove países. Grandes nomes da ecologia mundial afirmaram: com esta contribuição, o Papa Francisco está na vanguarda da discussão ecológica contemporânea.

Quase desesperado, mas ainda cheio de esperança, ele propõe um caminho de salvação: a fraternidade universal e o amor social (FT n. 6) como eixos estruturantes de uma biossociedade baseada na política, na economia e em todos os esforços humanos. Não temos muito tempo nem sabedoria suficientemente acumulada, mas este é o sonho e a verdadeira alternativa para evitar um caminho sem volta.

O papa caminhando sozinho pela Praça São Pedro sob uma leve chuva, em tempos de pandemia, permanecerá uma imagem indelével e um símbolo de sua missão de pastor que cuida e reza pelos destinos da humanidade.

Papa Francisco reza sozinho na Praça São Pedro em 2020

Foto: Vatican Media

Talvez uma das frases finais da Laudato si' revele todo o seu otimismo e esperança contra toda esperança: "Vamos caminhar cantando. Que nossas lutas e nossa preocupação com este planeta não tirem a alegria da esperança".

Ataques ferozes ao Papa

Devem ser inimigos de sua própria humanidade que condenam impiedosamente as próprias atitudes humanitárias do Papa Francisco, em nome de um cristianismo estéril, transformado em fóssil do passado, em recipiente de águas mortas e não de águas vivas. Os ataques ferozes que fazem podem ser tudo menos cristãos e evangélicos.

O Papa Francisco o apoia imbuído da humildade de São Francisco de Assis, chamado pela Imitação de Cristo, o humilde Francisco e os valores do Jesus histórico. Por esta razão, ele merece o mais alto título na tradição judaica de “justo entre as nações”.

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