Um pastor: “Papa Francisco tocou milhões de pessoas, católicas e não católicas”

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Patricia Fachin | 26 Abril 2025

Pessoas de diferentes credos, culturas e posições políticas manifestaram homenagens ao Papa Francisco nesta semana. O pontífice faleceu na manhã da última segunda-feira, 21-04-2025, aos 88 anos, na Casa Santa Marta, onde residia desde o início do pontificado, em 2013. As causas da morte foram um acidente vascular cerebral (AVC) e insuficiência cardíaca. O corpo foi velado na Basílica de São Pedro, no Vaticano, e sepultado na Basílica de Santa Maria Maggiore no sábado (26-04-2025). O pastor Dr. Jerry Pillay, secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), transmitiu o lamento e a mensagem do movimento ecumênico pelo falecimento do pontífice. “O falecimento do Papa Francisco será lamentado em todo o mundo, principalmente entre seus muitos aliados e admiradores no movimento ecumênico e na irmandade mundial do CMI. Seu papado foi uma grande dádiva ao movimento ecumênico e ele tem sido um colaborador dedicado em nossos esforços pela unidade e reconciliação cristãs, além de uma voz profética pela paz, pelo meio ambiente e pela justiça em todos os lugares”, declarou. 

“Um verdadeiro mar de palavras foi e será escrito sobre ele e suas escolhas pastorais que tiveram um impacto verdadeiramente planetário”. A frase do cardeal Gianfranco Ravasi nos dá dimensão do efeito que Francisco causou nos corações humanos e faz jus às palavras que Jesus dirigiu a Simão, chamado Pedro, e seu irmão André, enquanto passava pelo mar da Galileia quando os pescadores lançavam as redes: “Disse-lhes: ‘Segui-me e eu vos farei pescadores de homens’. Eles, deixando imediatamente as redes, o seguiram’” (Mt 4, 19-20). O sucessor de Pedro foi um homem que falou aos corações dos homens e manifestou uma grande capacidade de escuta ao ensinar a “ouvir a voz do outro”, como pontuou o cardeal Ravasi, retomando as palavras do Papa Francisco: “É perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Cai-se no autoisolamento, entra-se em uma espécie de surdez espiritual, que incide negativamente até sobre a relação com nós mesmos e a relação com Deus”.

Funeral do Papa Francisco, na Basílica de São Pedro (Foto: Vatican News, 2025)

Nos últimos 12 anos, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU repercutiu as declarações do Papa Francisco em sua página eletrônica, assim como as ações, os efeitos e repercussões do pontificado, além do magistério, dando visibilidade às encíclicas, exortações e cartas apostólicas, entre outros documentos. Nesta Página Especial, o IHU reúne algumas das manifestações prestadas ao pontífice esta semana e resgata entrevistas, publicações e eventos promovidos à luz do pontificado que finda, com a finalidade de “apontar novas questões e buscar respostas para os grandes desafios de nossa época, a partir da visão do humanismo social cristão, participando, ativa e ousadamente, do debate cultural em que se configura a sociedade do futuro”. 

Francisco e o anúncio do Evangelho 

A palavra que melhor descreve o Papa Francisco é aquela que está no cerne da missão do pontífice: “pastor”, disse o jornalista e escritor Michael Sean Winters, do National Catholic Reporter. “Francisco foi um pastor, antes de tudo, e um bom pastor ensina”. Com seus ensinamentos, destacou, “Francisco tocou milhões de pessoas, católicas e não católicas. Não foram apenas suas palavras, mas, principalmente, seus gestos poderosos que comunicaram o Evangelho a todos. Ele trouxe a Igreja de volta à proclamação central do Evangelho: em Jesus Cristo, Deus demonstrou a profundidade de sua misericórdia”. O legado do Papa, sublinhou, permanecerá na riqueza magisterial que deixa à Igreja: “O legado mais duradouro de qualquer papa é o conjunto de ensinamentos magistrais que deixou. Daqui a cinquenta e cem anos, pessoas que não testemunharam o poder gestual de Francisco ainda lutarão com seu poder de ensinar”.

Para o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, Francisco está na lista dos grandes pontífices da Igreja. “Pastor sem pretensões de ser teólogo, mas protegendo os teólogos e seu trabalho, concentrou-se no cultivo da esperança radical, sem limitações partidárias, colocando o centro em Jesus e consciente de que o caminho a seguir está apenas começando”. 

O padre jesuíta James Martin também ressaltou a ênfase pastoral do pontífice, especialmente no acolhimento às pessoas LGBTQIA+ na Igreja. Em um depoimento pessoal sobre seus encontros com Francisco, Martin relata o impacto do Papa em sua vida e ministério. “Não é sempre que conseguimos identificar momentos em que a nossa vida muda. O momento mais profundo para mim foi assistir a um documentário sobre o monge trapista Thomas Merton, que me levou a abandonar a vida no mundo corporativo e ingressar nos jesuítas em 1988. Mas outro momento foi um momento no Vaticano, em 2019”, recorda. 

Na avaliação do jesuíta americano, “o Papa Francisco fez mais pelas pessoas LGBTQIA+ do que todos os seus antecessores juntos. Isso não é uma crítica a, por exemplo, São João Paulo II ou Bento XVI, que foram homens santos. Mas talvez por sua experiência com pessoas LGBTQIA+ como arcebispo de Buenos Aires, talvez porque mais pessoas tenham se assumido nos últimos 10 anos, ou talvez porque ele era, no fundo, um pastor que queria alcançar ‘todos, todos, todos’ (‘todos, todos, todos’), Francisco revolucionou a abordagem da Igreja em relação às pessoas LGBTQIA+”. Para Martin, a ênfase papal “sempre foi pastoral, não ideológica ou mesmo teológica, e ele sempre se preocupou em garantir que seu próprio envolvimento com pessoas LGBTQIA+ não rompesse a unidade da Igreja, um tema que ele enfatizou repetidamente durante o sínodo”.

Contrário ao proselitismo religioso, não foram poucas as vezes em que Francisco exortou a Igreja a abrir-se a um “coração pastoral, aberto para sentir a saudade de Cristo”, para pastorear aqueles que não O conhecem. Com o discurso da aproximação, pontuou Robson R. de O. Castro Chaves, teólogo, filósofo e professor em Juiz de Fora/MG, "Francisco nos deixou uma lição viva de que a fé não se impõe, mas se propõe com mansidão; que a autoridade verdadeira nasce do serviço; e que a Igreja só será fiel a Jesus se andar com os pobres, escutar os últimos e defender a dignidade de todos”.

Não à toa, as primeiras metáforas de Francisco foram “a Igreja em saída” e “hospital de campanha”. Segundo Emma Fattorini, professora de História Contemporânea na Universidade La Sapienza de Roma e estudiosa da história da Igreja contemporânea, essas imagens explicam a visão de Igreja do Papa. “Bergoglio tinha pouca simpatia pela Europa de Bruxelas, que ele definia como fria, cinzenta, desencarnada. Ligado ao povo mais do que um populista latino-americano, Bergoglio, em cada fibra de seu ser, até as últimas horas de sua vida, testemunhava a necessidade, não apenas nos gestos, de estar com o povo, com a sua gente. Mas eu diria com todos. Uma de suas primeiras metáforas, que dá uma boa ideia da Igreja de Francisco, é a do ‘hospital de campanha’. Sair. Ir para as periferias, para os últimos. Ter ‘o cheiro das ovelhas’. E, portanto, fraternidade. Todos irmãos. Isso tinha um profundo significado teológico. Bergoglio foi o papa do povo”. 

Para o historiador da Igreja Massimo Faggiolli, professor da Universidade Villanova, na Filadélfia, “o legado mais significativo de Francisco para a Igreja é a redescoberta da sinodalidade”. Esse também foi um pontífice que nadou contra a corrente e pregou a paz num tempo de guerras. “Papa Francisco levou a mensagem de fraternidade humana e cuidado com o meio ambiente em uma época em que a política mundial seguia na direção oposta”, destacou.

Como disse o cardeal Ravasi, o Papa cunhou uma “linguagem original”, que reverberou em todos os cantos do mundo: “quem não conhece ‘a guerra mundial em pedaços’, ‘o cheiro das ovelhas’, ‘a Igreja em saída’ e ‘hospital de campanha’, ‘a guerra é sempre uma derrota’ e assim por diante?” Essas e outras expressões nos conduziram ao convite do Papa à “cultura do encontro”, do diálogo, da vivência radical do Concílio Vaticano II.

Igreja pobre para os pobres 

Numa reportagem sobre o legado do Papa Francisco, o jornalista Brian Roewe, do National Catholic Report, relembrou as origens da escolha do nome papal, que remontam a São Francisco de Assis, frade do século XIII, conhecido pela relação fraterna com a Criação. “Em março de 2013, três dias após sua eleição, na Capela Sistina, o novo papa explicou a escolha: ‘Para mim, ele é o homem da pobreza, o homem da paz, o homem que ama e protege a criação; hoje em dia, não temos uma relação muito boa com a criação, não é mesmo?’” O espírito evangélico do frade franciscano inspirou o papa latino-americano a dar visibilidade aos mais pobres entre os pobres em todo o mundo. “Como o primeiro papa da América Latina, o papado de Francisco para as comunidades marginalizadas também se estendeu às comunidades da linha de frente. Ele solidarizou a Igreja com as comunidades indígenas que enfrentam ameaças de mineração e extração. Criticou a pilhagem dos recursos naturais no Sul Global por nações ricas e corporações”, ressaltou. 

Leonardo Boff também comentou o pontificado à luz da gênese evangélica e franciscana. “A escolha do nome Francisco, sem antecedentes, não é fortuita. Francisco de Assis representa um outro projeto de Igreja cuja centralidade residia no Jesus histórico, pobre, amigo dos desprezados e humilhados como os hansenianos com os quais foi morar. Pois esta é a perspectiva assumida por Bergoglio ao ser eleito Papa. Quer uma Igreja pobre para os pobres”, disse.

O editorial do portal Settimana News salientou onze pontos “decisivos” que marcaram o “serviço petrino”: fidelidade ao Vaticano II, primazia da evangelização, sinodalidade, diálogo com religiões e confissões cristãs, encorajamento do crescimento de comunidades católicas nos continentes africano e asiático, luta contra o clericalismo e incentivo à participação dos leigos e mulheres na Igreja, resposta canônica, teológica e espiritual no combate aos abusos sexuais, liberdade de pesquisa teológica, reforma da Cúria, tratamento das emergências sociais e globais por meio dos documentos magisteriais, e, por fim, o deslegitimação da guerra. “Sem ignorar a centralidade do depósito da fé, a tarefa da Igreja hoje, na sensibilidade de Francisco, é retornar ao anúncio do Evangelho a toda criatura, ir além das clausuras habituais, transformar as próprias linguagens, sujar as mãos com as experiências de todos. A escolha dos pobres perde todo traço ideológico para retornar ao Evangelho sine glossa. O protagonista do empreendimento é todo o povo de Deus”, afirma o texto. E conclui: "A fidelidade ao Evangelho e a perspicácia histórica legitimam a indicação de Francisco como dom do Espírito”.

O teólogo espanhol Jesús Martínez Gordo recordou a coerência do Papa Francisco com os ensinamentos de Jesus no Monte das Bem-Aventuranças e a parábola do Juízo Final desde os primeiros dias do pontificado. “‘Toda vez que fizestes isso a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes’. Isso ficou claro com clareza incomum em sua primeira viagem fora do Vaticano, à ilha de Lampedusa, em 08-07-2013”, observou.

O vaticanista do La Repubblica, Iacopo Scaramuzzi, relembrou a atenção do pontífice aos movimentos populares e os pronunciamentos públicos afirmando a necessidade política de assegurar os três T's (terra, teto e trabalho) a todos os cidadãos, além do acolhimento aos imigrantes, registrada desde o início do pontificado, com a viagem do Papa a Lampedusa. Essas e outras iniciativas fizeram de Francisco “o Papa do encontro, do encontro com o povo simples em praça pública e nas periferias do mundo”, enfatizou o Conselho Indigenista Missionário (CIMIem nota sobre o falecimento do pontífice. “Desde o início de seu pontificado, o Papa Francisco assumiu a causa indígena e recebeu com cordialidade e amizade seus representantes e seus defensores. Lhes deu coragem para não deixar cair a esperança e para encontrar caminhos de fraternidade universal na Igreja e no mundo”.

A teologia de Francisco 

Nesta semana também foi publicado um artigo inédito do padre jesuíta espanhol José Ignacio González Faus, falecido em 06-03-2025. A demanda foi solicitada pelo Religión Digital quando o Papa Francisco estava hospitalizado no Gemelli, em fevereiro. Suspeitando “fortemente” que o Papa não sobreviveria aos atuais problemas de saúde e antevendo a própria morte, González Faus escreveu as últimas reflexões sobre a teologia de Francisco neste texto. “Do ponto de vista teológico”, sublinhou, “Francisco não foi um revolucionário: parecia que seu pensamento terminava com Guardini (um grande mestre, por outro lado). Mas nomes como Rahner, Metz, Moingt, Schillebeeckx ou Küng não pareciam ressoar em suas palavras. E questões que são debatidas hoje, como a existência de Satanás, a crítica histórica da Bíblia, o verdadeiro significado da virgindade de Maria e da concepção virginal de Jesus, ou a natureza ‘sacerdotal’ do ministério eclesiástico... se aparecem em alguma de suas palavras, é sempre a partir da compreensão mais clássica”. “Em vez disso”, complementa, “Francisco conseguiu centralizar a fé cristã e a missão da Igreja naquilo que está no coração do Evangelho: a mais alta dignidade e a presença mais real de Deus naqueles que sofrem e são oprimidos em nossa sociedade, sem os quais toda religiosidade é falsificada. Isso fez dele o papa mais revolucionário dos últimos séculos. E isso lhe rendeu a mais feroz oposição dos setores conservadores da Igreja e a mais sincera simpatia de todos os esquerdistas de hoje, sejam eles crentes ou não”.

Para o teólogo italiano Andrea Grillo, “Francisco não renunciou à teologia, mas exigiu que a teologia se imergisse nas linguagens da vida, como é sua vocação mais original. (…) Sua paixão pela vida e pela literatura transparecia nos neologismos, nas imagens, nas passagens surpreendentes de seus textos mais altos. Também nesse aspecto, Francisco foi um filho do Concílio Vaticano II: dos grandes textos daquele Concílio ele extraiu a ‘autoridade do estilo’, que talvez tenha sido melhor compreendida pelos teólogos (e pastores) americanos. Ou seja, o fato de que o Vaticano II foi antes de tudo um evento de ‘estilo’, de linguagem, de imagens e de imaginário”.

Estilo Francisco

“Ele falou diante de Deus em favor do mundo, e o fez com um estilo que era todo seu, inconfundível e irrepetível, às vezes doce e às vezes amargo, suave e intratável, conciliatório e pungente, mas sempre autenticamente humano, aliás, ítalo-argentino, e sempre autenticamente cristão, aliás, jesuíta. Sua teologia foi teopatia, e seu testemunho sempre renovará na consciência de todo ser pensante o pathos pelo Mistério do mundo”, acentuou o teólogo italiano Vito Mancuso, representante da Igreja Evangélica Valdense.

Antonio Spadaro, padre jesuíta, escritor e teólogo italiano, editor da revista La Civiltà Cattolica, um dos responsáveis por explicar a espiritualidade inaciana que esteve na base do pensamento e das ações de Francisco à Igreja e ao mundo, disse que “Bergoglio sabia que sua tarefa não era apenas apascentar o rebanho, mas também procurar a ovelha perdida”. Spadaro foi autor de entrevistas memoráveis com o Papa Francisco. 

Conhecido como “o padre que acompanha o Papa em quase todas as partes”, o jesuíta afirmou que “o caminho de Francisco foi o mundo inteiro”. Ele explica: “Francisco viajou muito, embora nunca tenha gostado de viajar. Mas ele sentiu que tinha que fazer isso, sim, para confirmar a fé do povo católico, mas também para tocar as feridas abertas deste mundo. Pense apenas na República Centro-Africana e no Iraque, para dar apenas dois exemplos. Você não toca com a mente, mas com a mão”. 

As viagens apostólicas empreendida por Francisco nos últimos doze anos, mencionou nesta semana, deram forma à imagem da Igreja como um hospital de campanha. “A Igreja é um ‘hospital de campanha depois de uma batalha’, ele me disse na primeira entrevista que fiz com ele em 2013, apenas três meses após sua eleição. Assim como uma mãe não vai visitar os filhos numa ‘caixa de vidro’, impondo-se quando alguém quer forçá-lo a entrar num papamóvel completamente fechado ou mesmo blindado. Ele viajou como um jesuíta, que proverbialmente considera a passagem de avião ou trem como a verdadeira chave da casa”.

Para Spadaro, “a imagem que melhor transmite o sentido da inspiração de Francisco” é a da chama. “‘Nós, jesuítas’, escreveu o padre Jorge Mario Bergoglio quando jovem, ‘sabemos bem que o fogo da maior glória de Deus nos permeia, envolvendo-nos numa chama interior, que nos concentra e expande, nos engrandece e nos diminui’. (…) Às vezes, seu próprio corpo, quando podia, experimentava uma torção que o tornava tenso, extrovertido, diante do que para ele sempre foi ‘o povo de Deus em caminho’. Por isso, Francisco se envolveu na história, nos acontecimentos do mundo, se envolveu, se inflamou, às vezes fez desesperar aqueles que tendiam a normalizá-lo. Há uma chama que sempre o moveu interiormente: a ‘paz da inquietação’, que é o oxímoro por excelência dos jesuítas, fruto do ‘discernimento’”.

O “estilo Francisco”, embora tenha agradado a muitos, certamente não agradou a todos, incluindo os chamados progressistas e conservadores, que dividem-se de um lado e de outro na Igreja. Parte do desconforto causado pelo Papa foi sintetizado pelo cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller nesta semana. “Se falamos do pontificado, porém, há opiniões diferentes. Há uma apreciação unânime pelo compromisso de Francisco com os migrantes, os pobres e com a superação das divisões entre o centro e a periferia. Por outro lado, porém, às vezes ele era um pouco ambíguo, por exemplo quando falava com Eugenio Scalfari sobre a ressurreição. Com o Papa Bento XVI, tínhamos uma clareza teológica perfeita, mas cada um tem seus carismas e habilidades, e acho que o Papa Francisco os tinha mais na dimensão social”. Para ele, a morte do pontífice indica que “uma era está chegando ao fim, houve ambiguidades sobre mulheres, gays e islamismo”. 

Francisco, a cultura e o mundo laico 

Do mundo secular, não religioso, contudo, vieram manifestações de “abertura” ou, ao menos, o reconhecimento de algumas ações do Papa Francisco. Michael Löwy, sociólogo franco-brasileiro, diretor de pesquisa em sociologia no Centre Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS), constatou que “Bergoglio não foi um papa marxista. Mas a encíclica Laudato si’ é uma contribuição preciosa e inestimável diante da catástrofe socioambiental. Papa foi lúcido, ao questionar elites e a ‘ecologia de mercado’. Cabe à esquerda completar seus diagnósticos com propostas radicais”. Para ele, “a morte de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, marca o fim de uma figura pouco comum, que se destacou, numa Itália governada por neofascistas e numa Europa cada vez mais reacionária, por um engajamento ético, social e ecológico surpreendente”.

Franco Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano, oriundo do movimento operaísta, corrente marxista heterodoxa dos anos 1960, também reconheceu em Francisco uma autoridade global. "De Francisco vem uma lição política: a batalha de Cristo se trava em nome da caridade, da partilha – alegre e dolorosa – da experiência humana”.

Juan José Tamayo, secretário-geral da Associação de Teólogos João XXIII, comentou a visita do vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, ao Papa, um dia antes do falecimento do pontífice, e esclareceu que “a mensagem pascal de Francisco no domingo da ressurreição e as políticas adotadas por Trump durante os três primeiros meses de seu segundo mandato tornam evidentes dois modelos de cristianismo em confronto: o de Francisco, identificado com as raízes evangélicas do movimento de Jesus de Nazaré, e o de Trump, a serviço de seus próprios interesses, dos interesses do Império e dos oligarcas tecnológicos, cujo principal expoente é Elon Musk. Vance não encontrou em sua visita ao Vaticano a legitimidade religiosa que esperava, pois seus projetos cristãos, morais, políticos, econômicos e sociais estão nas antípodas dos de Francisco”.

Nicoletta Biglietti, jornalista, curadora e crítica de arte, destacou a sensibilidade e a perspicácia do Papa Francisco em “reconhecer o poder da arte como uma linguagem universal” que orienta olhares e corações para a beleza. “Quando abriu as portas dos Museus do Vaticano para um grupo de moradores de rua, permitindo que admirassem a Capela Sistina em completa tranquilidade, Francisco não fez apenas um gesto simbólico, mas afirmou uma verdade radical: a beleza é para todos, não para quem pode pagar o ingresso, porque a arte não pode ser um salão exclusivo, um código para poucos”, afirmou. “‘Os artistas são um pouco como profetas’, disse ele, ‘sentinelas que perscrutam o horizonte e a profundidade das coisas’. E justamente por perturbarem a ordem aparente, tornam-se aliados na luta contra a indiferença, o consumismo, a superficialidade”, menciona, relembrando as palavras do pontífice.

Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica, assinalou não só a capacidade do Papa Francisco dialogar com crentes e não crentes, mas a atenção do Papa aos não crentes, como ao jornalista italiano Eugenio Scalfari, com quem Francisco estabeleceu uma relação de amizade e conversas que ajudaram a iluminar todos aqueles que, como Scalfari, buscam compreender o sentido da existência. Por ocasião da morte do jornalista, em 2022, aos 98 anos, o Papa Francisco registrou algumas memórias:

“Lembro que em nossos encontros na Casa Santa Marta ele me contava como estava tentando apreender, investigando o cotidiano e o futuro através da meditação sobre as experiências e sobre grandes leituras, o sentido da existência e da vida. Ele se declarava um não crente, embora nos anos em que o conheci, também refletia profundamente sobre o significado da fé. Sempre se questionava sobre a presença de Deus, sobre as coisas últimas e sobre a vida após esta vida.

As nossas conversas eram agradáveis e intensas, os minutos com ele passavam voando pontuados pelo sereno confronto das respectivas opiniões e pela partilha dos nossos pensamentos e das nossas ideias, e também de momentos de alegria. Falávamos de fé e secularismo, de vida quotidiana e dos grandes horizontes da humanidade do presente e do futuro, da escuridão que pode envolver o homem e da luz divina que pode iluminar o seu caminho”.

O pontificado de Francisco no IHU

Dois anos depois da eleição de Francisco, após noticiar amplamente as reações aos primeiros meses do papado em sua página eletrônica, o IHU publicou a primeira das quatro edições da Revista IHU On-Line dedicadas à análise do pontificado. O editorial da edição número 465, intitulada, E sopra um vento de ar puro… os dois anos de Papa Francisco, constatava: “O jesuíta argentino que chegou ao Vaticano com ares de novidade tem conquistado fiéis do mundo todo, caiu nas graças da imprensa, mas também tem mexido com a Igreja, suscitando resistências e contrariedades”. 

Naquela edição, destacou-se a entrevista do jesuíta Juan Carlos Scannone, teólogo e filósofo argentino, um dos mais importantes teóricos da chamada Teologia do Povo. Scannone foi bastante requisitado nos primeiros anos do pontificado por todos aqueles que queriam compreender melhor o pensamento de Francisco. Foi professor de grego clássico e de literatura de Bergoglio e conviveu com ele dez anos.

Scannone sintetizou o que seriam os doze anos do pontificado de Francisco. “O novo Papa, desde a escolha do seu nome, colocou de manifesto sua acentuação do amor preferencial pelo pobre, marginalizado, excluído, desempregado, doente, incapacitado, ‘descartado’, ‘sobrante’, tanto que alguns disseram que suas primeiras visitas fora de Roma, a Lampedusa e Sardenha, e seu encontro ali com os migrantes refugiados e com os desempregados, operaram simbolicamente como verdadeiras encíclicas. Não somente declara que ‘a solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e o destino universal dos bens como realidades anteriores à propriedade privada’ (EG 189), de acordo com a doutrina católica, mas que depois afirma: ‘Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica” (EG 198).

Daí que volte a expressar o que já havia dito em outras ocasiões: “Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles’ (ib)”.

Ainda em 2015, o IHU repercutiu a publicação da segunda encíclica do Papa Francisco, Laudato si’: sobre o cuidado da Casa Comum, tema de inúmeros artigos e entrevistas publicados na página eletrônica posteriormente. A edição “O ECOmenismo da Laudato si’. Da Crise Ecológica à Ecologia Integral” da IHU On-Line analisou as relações entre o texto papal, as ciências econômicas, sociais e naturais. Partha Dasgupta, economista indiano, professor emérito de Economia na Universidade de Cambridge e pesquisador na Universidade de Manchester, foi enfático nas respostas. “Eu não acredito que haja qualquer coisa na Encíclica que não seja coerente com a compreensão científica contemporânea dos fenômenos que o Papa levanta. Claro, existem diferenças terminológicas, mas elas não chegam a constituir diferenças em relação à sua leitura das interações entre o ser humano e a natureza”, acentuou. E acrescentou: “A Encíclica está apontando para a necessidade de que façamos a coisa certa ao natural, mesmo quando ninguém esteja olhando. É por isso que há necessidade de mudar nossa cultura. A natureza não é apenas mais uma mercadoria, assim como seres humanos não são meras commodities”.

Um mês depois da publicação da Exortação Apostólica Amoris Laetitia: sobre o amor na família, a Revista IHU On-Line publicou a edição Amoris Laetitia e a ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento sobre ‘a família’, hoje”. “O documento foi amplamente debatido, comentado, enaltecido por uns, e criticado, dura ou suavemente, por outros, nas Notícias do Dia, diariamente atualizadas e publicadas pela página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e agora é discutido nas páginas da presente edição da revista IHU On-Line”, informava o editorial da edição.

Em 2018, a publicação analisou os cinco anos do pontificado, na edição intitulada “A virada profética de Francisco – Uma ‘Igreja em saída’ e os desafios do mundo contemporâneo”. Naquela época, a sinodalidade já era apontada como “a grande novidade e também o desafio de Francisco”, tal como expressou Peter Hünermann, teólogo alemão e professor aposentado de Dogmática Católica na Universidade Eberhard Karls de Tübingen. “O papa Francisco deu impulsos espirituais, pastorais e teológicos substanciais e reavivou o espírito do evangelho. Isso se mostra bem claramente na atuação pública do Papa, como nos documentos publicados. Menciono apenas Evangelii gaudium, Amoris laetitia, Laudato si', a grande alocução por ocasião do jubileu do Sínodo dos Bispos em Roma sobre o tema da sinodalidade como caminho da Igreja no terceiro milênio, o texto recente sobre a santidade. A isso se acrescentam decisões práticas: a nomeação do conselho de nove cardeais, a consulta ao povo de Deus sobre o Sínodo dos Bispos em Roma etc. Aconteceu muitíssima coisa, e o papel do Papa assumiu uma outra forma”, destacou. 

O IHU repercutiu amplamente as reações às encíclicas Lumen fidei, publicada em 2013, Fratelli tutti, em 2020 e Dilexit nos, de outubro de 2024, assim como as exortações apostólicas "Evangelii gaudium": sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual; "Amoris laetitia": sobre o amor na família; "Gaudete et exsultate": sobre a chamada à santidade no mundo atual; "Christus vivit": aos jovens e a todo o povo de Deus; "Querida Amazonia"; "Laudate Deum": sobre a crise climática; e "C'est la confiance": sobre a confiança no amor misericordioso de Deus por ocasião do 150° aniversário do nascimento de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. 

Capas das Cartas Encíclicas do Papa Francisco (Arte: Marcelo Zanotti)

Capas das Exortações Apostólicas do Papa Francisco (Arte: Marcelo Zanotti)

O IHU também deu ênfase às críticas do Papa Francisco ao modelo econômico atual, abordando o tema com economistas, sociólogos e filósofos nacionais e estrangeiros em entrevistas e conferências, como as ministradas nos ciclos de estudos Renda Básica Universal. Para além da justiça social e Emergência Climática. Ecologia integral e o cuidado da casa comum, realizados no período da pandemia de Covid-19. "É preciso transformar uma economia que mata em uma economia da vida", repetia o Papa.

Na videoconferência “Papa Francisco e a crítica ao dogma de fé neoliberal. Limites e possibilidades de uma outra economia”, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo endossou as observações do pontífice. “As políticas tradicionais, inspiradas numa visão completamente inadequada do capitalismo atual, não podem mais subsistir porque elas não são suficientes para abrigar os anseios e as angústias das populações que tentam sobreviver nas sociedades. Diria que estamos vivendo num momento de transição porque as transformações que ocorreram na economia mundial e nas economias capitalistas ao longo dos últimos 40 anos foram produzindo metamorfoses nesse sistema e mudaram a sua forma de funcionamento, aquela forma de funcionamento que presidiu as sociedades no pós-guerra”, pontuou.

Rubens Ricupero, diplomata brasileiro e ex-ministro da Fazenda do Brasil, comentou a relação do Papa Francisco com o então presidente Biden no combate ao populismo na videoconferência “A ordem mundial para Francisco. A crise do multilateralismo e o apelo pela fraternidade universal". O Papa Francisco, observou, “às vezes, é chamado de populista. Tem gente que diz que ele teve muita influência, como teve de fato, no justicialismo peronista, aquele movimento que dominou a infância e a juventude dele na Argentina. O peronismo não deixa de ser uma variante do populismo. (…) Nós todos queremos ter uma economia que seja voltada àquilo que a Igreja chamava, no passado, de bem comum, o bem da maior parte, o bem da coletividade, que é o bem do povo. O Papa mesmo diz que o mundo espera que nós sejamos povo de Deus, não elite de Deus. Nós não somos elite. Então, nesse sentido, se nós entendermos populismo como uma ideologia do Trump ou do Bolsonaro, aí sim, eu diria que o Papa Francisco representa uma superação disso. Mas por isso é preciso tomar cuidado com o uso da expressão populismo, que é uma expressão que serve a duzentas ou trezentas definições diferentes e pode conduzir a muitos equívocos”. 

Por ocasião dos cinco anos do pontificado de Francisco, o IHU promoveu o XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo. O evento aconteceu no Teatro Unisinos, campus de Porto Alegre, em 2018, com o “objetivo de analisar as principais características da virada profética do Papa Francisco e refletir crítica e transdisciplinarmente sobre o papel da Igreja e seus impactos no mundo contemporâneo a partir da sua visão social, econômica, (geo)política, ecológica, cultural e teológica”. Uma das palestrantes foi Emilce Cuda, teóloga argentina, especialista em ensino social católico, que trabalhou com o Papa Francisco no Vaticano. Ela explicou a Teologia do Povo, desenvolvida no contexto argentino, e assinalou que "um dos temas principais de Thomas Piketty não é a pobreza, mas a riqueza. Os pobres não conhecem as riquezas. Os pobres estão tão marginalizados que nem sequer podem perceber isso. (…) Para entender os pobres, temos que nos fazer um com eles, estar ao lado deles. O teólogo não é alguém de escritório; o teólogo é um sacerdote, um padre, alguém que está trabalhando com os jovens nas ruas. O teólogo do povo é isso”. A palestra está disponível abaixo. A playlist completa com todas as conferências do evento está disponível aqui.

Juan Carlos Scannone, um dos conferencistas do evento, abordou o tema da misericórdia, a chave-hermenêutica do pontificado de Francisco. A misericórdia, disse, "desemboca em uma Igreja para os pobres, dos pobres e uma Igreja cujo coração está nos pobres, como vimos. É aí que [o Papa Francisco] vai reafirmar o valor protagonista não só da Igreja, mas também da sociedade global dos pobres, especialmente no seu diálogo com os movimentos populares. O método com o qual está tentando levar isso a cabo, na minha opinião, é o discernimento inaciano, aplicado não somente na Igreja, mas também nas orientações que ele dá na política global, buscando a paz, a justiça, a solidariedade e o amor”. 

Em 2023, o IHU promoveu duas edições do Ciclo de Estudos “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”. O evento partiu de “um pressuposto fundamental: está curso uma grande crise do cristianismo e da Igreja, a qual se desdobra sob o impulso de diversos fenômenos e acontecimentos que caracterizam as transformações do mundo contemporâneo”. Para aprofundar a reflexão sobre o tema, foram realizadas conferências ministradas por especialistas de renome internacional, acompanhadas pela publicação de textos e vídeos das conferências, notícias e entrevistas relacionadas com os assuntos abordados. Numa das conferências, Armando Matteo, professor da Pontifícia Universidade Urbaniana e membro da Congregação para Doutrina da Fé, alertou para a urgência de uma “renovação da mentalidade pastoral”, defendida pelo Papa Francisco. “Imaginar o cristianismo de novo – esta é a tarefa que, no fim das contas, nos é atribuída pela assunção da Opção Francisco”. A Opção Francisco, segundo Matteo, nada mais é do que "a tarefa de credenciar junto aos adultos e às adultas de hoje uma nova imagem do cristianismo e precisamente a imagem daquele cristianismo e daquela Igreja da Evangelii gaudium que é o coração do magistério do Papa Francisco". As demais conferências do evento estão disponíveis aqui.

O IHU, em parceria com a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), deu visibilidade às diferentes visões sobre o Sínodo Pan-Amazônico, realizado de 6 a 27 de outubro de 2019 no Vaticano. Uma página especial reuniu múltiplos conteúdos sobre o evento, produzidos no coração da Amazônia, com análises e expectativas de diferentes pessoas, indígenas, missionários, bispos e cardeais. Opiniões sobre a Exortação Apostólica Pós-sinodal Querida Amazonia, documento síntese do Papa Francisco sobre o Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazônica, também foram publicizadas.

Uma delas foi a do teólogo Paulo Suessfundador do curso de pós-graduação em Missiologia na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, e assessor teológico do CIMI. "Depois da leitura da 'Querida Amazônia', também eu tive um sonho. Me encontrei com o papa Francisco, agradeci a sua carta pós-sinodal, mencionei algumas pérolas do texto e apontei com aquela 'audácia missionária' (n. 95), que ele pediu na sua Exortação e em visitas anteriores para algumas esperanças, aparentemente, frustradas. Pacientemente, o papa escutou as minhas perplexidades", disse.

Em 2024, o IHU repercutiu as reações ao Sínodo sobre a Sinodalidade e a proposta do Papa Francisco à Comissão Teológica Internacional (CTI) na tarefa de desmasculinzar a Igreja. O Ciclo de Estudos “O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja” abordou o assunto. O evento teve como “objetivo analisar transdisciplinarmente os desafios e possibilidades de um processo de desmaculinização da Igreja tendo em vista o reconhecimento e protagonismo das mulheres na vida eclesial”. As conferências podem ser acessadas no canal do IHU no YouTube.

Nas demais publicações do IHU, como no Cadernos Teologia Pública e no Cadernos IHU ideias, estão disponíveis reflexões variadas sobre o pontificado de Francisco, como as destacadas abaixo. Nas Notícias do Dia, publicadas diariamente, foi possível acompanhar a autenticidade do primeiro papa jesuíta, cujo valor histórico, simbólico e profético continuará sendo estudado e compreendido ao longo da história. 

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