05 Julho 2021
A abordagem do atual papa em relação à comunidade LGBTQIA+ é marcadamente diferente do seu santificado antecessor polonês e do “papa emérito” da Baviera.
O comentário é de Robert Mickens, publicado em La Croix International, 03-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Vaticano não mudou uma vírgula do seu ensino formal sobre a imoralidade dos atos homossexuais.
Mas a atitude do bispo de Roma em relação aos gays e lésbicas deu uma guinada de 180 graus desde a eleição do Papa Francisco em 2013.
Com apenas algumas palavras – “Quem sou eu para julgar?” – o primeiro papa a nascer no Novo Mundo acrescentou outro verso a “Born This Way”, o single de 2011 de Lady Gaga.
E, desde que Francisco fez aquela observação agora famosa, os linha-dura doutrinários dentro da Igreja e outros conservadores sociais (e fanáticos) se enfureceram contra o seu abraço caloroso às pessoas “intrinsecamente desordenadas”, como o Vaticano descreve quem não é heterossexual.
O papa argentino irritou seus críticos novamente na semana passada, quando foi revelado que ele havia escrito a James Martin para reafirmar o jesuíta estadunidense em seu ministério muito criticado junto à comunidade LGBTQIA+.
Francisco não é exatamente um ativista dos direitos dos homossexuais. Nem de longe.
Ele é um padre de 84 anos da América Latina. Você não encontrará homens da sua geração naquela parte do mundo engrossando as fileiras da “Nação Queer” ou cantando “Saiam dos armários e vão para as ruas!”.
E é exatamente por isso que a sua atitude não julgadora em relação aos gays e lésbicas é ainda mais significativa.
Depois do tom repreensivo e moralizante dos seus dois antecessores mais recentes, este papa impulsionou substancialmente a imagem da Igreja Católica junto à comunidade LGBTQIA+ – embora ninguém iria tão longe a ponto de dizer que isso é algo fabuloso.
João Paulo II e Bento XVI (Joseph Ratzinger) praticamente bateram nos gays, ao mesmo tempo que promoviam homossexuais autodepreciativos, enrustidos e homofóbicos na hierarquia.
Levará muito tempo para desfazer o mal que esses dois homens fizeram aos gays com seus gestos e o veneno que escorria de suas penas.
Como todos sabem, Bento XVI é o autor da atual articulação vaticana do ensino oficial da Igreja Católica sobre a homossexualidade. A carta que ele emitiu em 1986 como cardeal-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé é bem conhecida e cada vez mais contestada.
Ela descreve os homossexuais como “intrinsecamente desordenados” e chama a “inclinação da pessoa homossexual” de uma “uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral”.
A carta afirma que a inclinação é, em si mesma, “objetivamente desordenada”.
Ratzinger escreveu o roteiro, mas foi João Paulo II quem o levou ao palco.
O discurso mais famoso do papa polonês contra gays e lésbicas ocorreu durante o Grande Jubileu do ano 2000.
Em julho daquele ano, Roma foi a anfitriã do World Pride, a versão global das celebrações anuais do Orgulho LGBTQIA+. Foi uma semana inteira de eventos, culminando com um grande desfile na calorosa tarde do sábado, 8 de julho.
Algo entre 200.000 e 300.000 pessoas se juntaram à caminhada lenta e pacífica em uma rota que a cidade, sob a pressão da hierarquia católica, traçou para longe dos monumentos mais importantes de Roma.
Obviamente, havia as costumeiras exibições carnavalescas de drag queens excessivamente maquiadas e de homens musculosos sem camisa. Mas a grande maioria dos que compareceram vestia bermuda e camisa polo.
Alguns estimam que a metade das pessoas no desfile naquele dia eram heterossexuais que estavam lá para demonstrar sua solidariedade à comunidade gay e lésbica.
Mas João Paulo II e os organizadores do Jubileu ficaram furiosos.
Desde o início, eles tentaram vigorosamente, mas sem sucesso, impedir que a cidade de Roma sediasse o World Pride.
Recusando-se obstinadamente a admitir que a cristandade já havia morrido há muito tempo, eles exigiram que o percurso do desfile não passasse por nenhuma igreja, dizendo que isso seria um sacrilégio!
Eles não manifestaram tais objeções quando o governo italiano, apenas um mês antes, revivera uma “tradição” há muito descartada de exibir tanques e equipamentos militares para a celebração do Dia da República em 2 de junho.
Durante o Ângelus do domingo, um dia após a Parada do Orgulho Mundial, um irado João Paulo II se apareceu na janela do seu escritório com vista para a Praça São Pedro e mirou naquilo que ele chamou de “as bem conhecidas manifestações realizadas em Roma nos últimos dias”.
“Em nome da Igreja de Roma, não posso deixar de expressar amargura (amarezza) pela afronta dirigida ao Grande Jubileu do Ano 2000 e pela ofensa aos valores cristãos de uma cidade tão cara aos corações dos católicos de todo o mundo”, disse ele.
O Vaticano traduziu “amarezza” como “deep sadness” [tristeza profunda, em inglês]. Mas a expressão no rosto do falecido papa e o tom de sua voz indicavam que ele estava mais zangado do que triste.
Sim, o Papa Wojtyla estava muito amargurado.
“A Igreja não pode calar a verdade, porque abrira mão da fidelidade ao Deus Criador e não ajudaria a discernir o bem do mal”, continuou.
E foi assim que ele concluiu:
“Gostaria, a esse respeito, de me limitar a ler o que diz o Catecismo da Igreja Católica, que, depois de destacar que os atos de homossexualidade são contrários à lei natural, assim se expressa: ‘Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada, constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição’ (CIC, n. 2.358).”
“Mal”, “contrário à natureza”, “objetivamente desordenado”... E “sua condição”.
Tudo isso.
Essas palavras, é claro, foram originalmente escritas pela mesma pena e pelo mesmo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé que, cinco anos depois, sucederia a João Paulo II como papa.
E, como Bento XVI, ele manteve o mesmo ensinamento e a mesma linha contra a comunidade LGBTQIA+. Pelo menos em público.
No entanto, o professor-papa bávaro não encenou nenhuma das explosões de raiva do seu teatral precursor polonês.
Ele simplesmente ignorou aqueles gays e lésbicas que procuravam discutir aquilo que a maioria de nós sabe que é, de acordo com o teólogo James Alison, um ensino baseado na falsa premissa de que os homossexuais são heterossexuais defeituosos!
O Fórum Europeu de Grupos Cristãos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros deu a Bento XVI uma oportunidade para abordar a questão em junho de 2011, quando Roma foi anfitriã da EuroPride.
O grupo redigiu uma carta para ele um mês antes, na qual pedia que ele denunciasse as leis que criminalizavam a homossexualidade, repreendesse os católicos que promoviam a “terapia reparadora”, parasse de se opor às relações entre pessoas do mesmo sexo e repensasse totalmente os ensinamentos da Igreja sobre a homossexualidade.
O papa obviamente também ignorou isso.
A carta foi postada na caixa de correio por John McNeill, o padre estadunidense que escreveu o livro seminal “The Church and the Homosexual”.
McNeill, um estudioso jesuíta com um pedigree acadêmico impressionante, publicou esse livro em 1976.
Mas, durante uma entrevista para a televisão, ele admitiu que era gay. E, um ano depois, o Vaticano ordenou que ele não escrevesse ou falasse mais sobre a questão da homossexualidade.
Ele obedeceu à ordem de silêncio por uma década inteira, mas depois quebrou o silêncio. Ao fazer isso, ele pagou um preço alto.
Os jesuítas, sob a instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, expulsaram-no da sua ordem em 1987.
John McNeill esteve na EuroPride 2011 para a estreia de “Taking a Chance on God”, um documentário sobre a sua vida e obra.
John McNeill, em cadeira de rodas, na EuroPride 2011, acompanhado por seu marido, Charles Chiarelli (à direita), e por Brendan Fay, empurrando a cadeira de rodas, diretor de um documentário sobre a sua vida e obra (Foto: Bill Wilson/Bay Area Reporter)
Nenhum papa, nenhum cardeal, nenhum bispo apoiou ou encorajou o seu ministério. Era um Vaticano muito diferente em tempos muito diferentes.
Mas o corajoso McNeill, de cadeira de rodas, estava à frente da grande EuroPride Parade.
E, em contraste com o World Pride 2000, tínhamos a permissão de passar pelo Coliseu e por outros locais famosos, terminando naquele grande campo conhecido como Circo Máximo para um grande show.
Quem estava no palco era Stefani Joanne Angelina Germanotta, a estrela do pop e ícone gay conhecida como Lady Gaga.
No dia 21 de julho de 2021, às 10h, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza a conferência A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas, a ser ministrada pelo MS Francis DeBernardo, da New Ways Ministry – EUA. A atividade integra o evento A Igreja e a união de pessoas do mesmo sexo. O Responsum em debate.
A Inclusão eclesial de casais do mesmo sexo. Reflexões em diálogo com experiências contemporâneas
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Relembrando a explosão de raiva de João Paulo II durante o World Pride 2000 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU