03 Dezembro 2024
"Entre o ritmo acelerado do cinema e os tempos lentos das salas sagradas, parece haver uma ligação misteriosa e decisiva para o mundo, como se por trás daqueles muros houvesse a mais espetacular das medidas do tempo. Se a areia precisa de uma ampulheta para fluir, o cinema mede as mudanças de época contra o pano de fundo de uma referência imóvel, e esse ponto é o Vaticano", escreve Iacopo Scaramuzzi, vaticanista de La Repubblica e autor de vários livros historicamente focados no atual papado, como, Il sesso degli angeli: pedofilia, feminismo, LGBTQIA+: il dibattito nella Chiesa, em artigo publicado por La Repubblica, 29-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Também na realidade, podemos jurar, haverá tensões e polarizações. “É uma guerra, e você tem que tomar partido”, declara o Cardeal Bellini, ou seja, Stanley Tucci, ao irmão mais hesitante, Lawrence, o inquieto decano do Colégio cardinalício, interpretado por Ralph Fiennes. De certa forma, Conclave, o filme de Edward Berger que chegará em breve aos cinemas, é um fácil profeta. As divergências, que por muito tempo ficaram por baixo dos panos, vieram à tona no decorrer do pontificado de Francisco. As expectativas do público são agora uma variável quase tão influente quanto as casas governantes espanholas e francesas foram nos séculos passados (“Um longo conclave seria visto pelas mídias como prova de que a Igreja está em crise”, se sussurra no filme). E é mais do que plausível que os escândalos, sexuais e financeiros, prejudicarão mais de uma candidatura: isso não é novidade na história da Igreja, mas em uma era hiperconectada e ultracomunicativa, marcada por fake news e vazamentos, até mesmo Vatileaks, e com uma crise histórica de abuso do clero que está longe de terminar, a lama, podemos jurar, vai espirrar por toda parte. No conclave de celuloide, as licenças poéticas são abundantes, as simplificações não faltam, mas entre a realidade e a invenção há um corpo a corpo. Os eventos ocorrem quarenta anos após o último papa italiano, ou seja, mais precisamente, em 2028.
Alguns detalhes - a destruição do anel piscatório, os procedimentos de voto, as velas de corante para criar a fumaça preta ou branca - são reconstruídos com filologia documental. Outros aspectos, a começar pelo vaivém das pessoas dentro e fora do conclave, são, no mínimo, fantasiosos. Para aqueles que frequentam o Vaticano, observar assonâncias e dissonâncias da realidade é uma tentação irresistível, quase um jogo de salão. Ficção, descrição da realidade ou até mesmo premonição? Perfuração do inescrutável ou charlatanice americana? O fato de que na Capela Sistina, além do sopro do Espírito, entram em jogo intrigas e lutas pelo poder não é um mistério da fé, e Francisco confirmou isso publicamente. Em um recente livro-entrevista dedicado ao seu antecessor, intitulado El sucesor, ele conta como a Cúria Romana tentou queimar o nome de Ratzinger em 2005 para dar lugar a outro candidato (Ruini?). Mas Bergoglio, que era o segundo mais votado, iniciou a corrida para Bento XVI. Coisas de filme.
Naquele de Berger, o Colégio cardinalício é onde a imaginação e a realidade mais se misturam. Alguns personagens são críveis (a figura do cardeal nigeriano, Adeyemi, é particularmente substanciosa), e a contraposição entre progressistas e conservadores é plausível - mas um pouco cortada a machadadas. Não porque essas categorias não existam dentro da Igreja, pelo contrário. Isso foi visto plasticamente no sínodo recentemente concluído no Vaticano: ao lado do cardeal jesuíta Jean-Claude Hollerich, de Luxemburgo, que é aberto aos padres casados, às mulheres diáconas e à pastoral com as pessoas homossexuais, estava o cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, ratzingeriano, para quem abençoar um casal gay é uma “blasfêmia”, “a ideologia de gênero levará ao colapso do mundo ocidental”, e o fato de mulheres e leigos também votarem na assembleia fazia do sínodo, na realidade, um simples “simpósio”.
A poucas mesas de distância estavam Fridolin Ambongo, o carismático arcebispo de Kinshasa que liderou a revolta dos africanos contra a virada de Bergoglio em relação aos casais homossexuais - ao mesmo tempo gerencia com suavidade a questão da poligamia de muitos fiéis de seu continente - e Víctor Manuel Fernández, o argentino que Bergoglio chamou a Roma para completar a glasnost doutrinária sobre os ministérios das mulheres, a moral sexual e até mesmo a liturgia. Na mesma sala, ainda, estavam o arcebispo salesiano Charles Bo, de Yangon, Mianmar, longe de ser um progressista, muito crítico em relação à China, e Jean-Marc Aveline, o pacífico arcebispo de Marselha, uma vaga semelhança com o Papa Roncalli, grande frequentador do diálogo com o Islã. As diferenças, em suma, existem na realidade como no filme. No entanto, as contraposições representadas no conclave cinematográfico são demasiadamente esquemáticas e não conseguem captar algumas dinâmicas profundas em curso na Igreja Católica mundial.
Em primeiro lugar, porque a geografia das ideias pode ter, na realidade, uma ampla gama de nuances, bem como uma espécie de fundo duplo.
Os mais ferozes detratores de Jorge Mario Bergoglio são tradicionalistas, mais que conservadores: amantes da missa em latim, hostis a qualquer abertura teológica ou magisterial, convencidos de que ou a Igreja se isola da modernidade e volta aos tempos anteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965), ou deslizará pelo plano inclinado do relativismo e da secularização. O expoente mais conhecido dessa linha, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico em Washington, trumpiano, novax, obcecado pela ideia de que uma conspiração globalista controla a Igreja profunda em sintonia com o Estado profundo, foi recentemente excomungado por heresia pela Santa Sé.
Por outro lado, é verdade: os tradicionalistas são uma minoria que, de forma barulhenta e muitas vezes desarticuladas, trava uma batalha de retaguarda que é tolerada silenciosamente, ou até mesmo com simpatia, por uma área muito mais ampla de conservadorismo que cresceu à sombra de João Paulo II e Bento XVI - um arquipélago que discretamente visa não um retrocesso do relógio da história, mas pará-lo, ou pelo menos retardá-lo, hipotecando o próximo conclave. Por outro lado, o Papa Francisco, acusado por seus inimigos de ser um revolucionário, é, na realidade, um reformista, embora gradual e, às vezes, contraditório (os médicos “sicários” que praticam o aborto, por exemplo, não são exatamente as palavras de um progressista...). E “As reformas”, dizia Camillo Benso Conde di Cavour, “realizadas a tempo, em vez de enfraquecer a autoridade, a fortalecem; em vez de aumentar a força do espírito revolucionário, o reduzem à impotência”. Reforma-se a instituição não para desestabilizá-la, independentemente do que possam pensar aqueles a quem Bergoglio chamou de “retrógrados”, mas para conservá-la...
O Conclave de Berger, acima de tudo, desconsidera uma dinâmica menos visível impressa por esse Papa em onze anos de pontificado. Com dez consistórios, o último deles no próximo dia 7 de dezembro, Francisco redesenhou a geopolítica do colégio que elegerá seu sucessor e nomeou um total de 129 cardeais, oitenta por cento dos cardeais que entrarão na Capela Sistina. No entanto, estaria se enganado quem pensasse que o grupo de Bergoglian é compacto e unânime. Francisco, de fato, escolheu personalidades com um perfil mais pastoral, reduzindo o peso específico dos italianos e, de modo mais geral, dos europeus, deixando cargos tradicionalmente cardinalícios sem a púrpura e reduzindo ao mínimo a facção ultraconservadora (o cardeal Tedesco do filme, interpretado por um Sergio Castellitto borbulhante, teria pouca chance na realidade, até porque o Patriarca de Veneza, o verdadeiro, nunca se tornou cardeal...). Mas entre os bergoglianos há de tudo, há conservadores e progressistas, atlantistas e pró-chineses, cardeais abertos à modernidade e cardeais desejosos por enfatizar uma identidade católica distinta do mundo.
A homogeneidade não foi o objetivo do primeiro pontífice latino-americano da história, mas o reequilíbrio e a ampliação. Reequilíbrio, porque hoje há muito mais cardeais vindos do sul global, coerentemente com um cristianismo que é tão vital na Ásia, na África e na América Latina quanto fraco no Velho Continente: episcopados que hoje podem se expressar, sem temor, em pé de igualdade com outras Igrejas mais tradicionais, como a italiana, a espanhola, a alemã ou a estadunidense. E ampliação, porque no conclave que elegeu Bergoglio em 2013 havia 48 países representados, hoje são 73. Fazer uma síntese será difícil, mas é a única condição que, de acordo com Francisco, pode restaurar ímpeto à Igreja. É por isso que é improvável, como ao contrário acontece no filme, que na pole position estejam figuras tão marcadas como um tradicionalista, um ultraprogressista, mas também um curial intrigante ou um outsider africano. Por outro lado, é possível que surja uma personalidade de envergadura internacional que, no entanto, conheça bem Roma e com um cursus honorum imaculado - para evitar os respingos de lama; é provável que se imponha alguém acostumado à mediação: é difícil que, depois de onze anos do terremoto bergogliano, o sucessor seja tão ou mais pirotécnico - mas é impossível saber o que o Espírito Santo esteja tramando desta vez.
Francisco, que completará 88 anos no próximo dia 17 de dezembro, certamente não tem a intenção de renunciar, e desfruta de uma saúde perenemente precária, com a qual, no entanto, enfrenta inenarráveis esforços. Vimos isso durante sua viagem de setembro à Ásia e à Oceania, 12 dias de uma agenda lotada, viagens aéreas seguidas, banhos de multidão com 93% de umidade, e ele não perdeu o ritmo, não perdeu um compromisso, não faltou a um discurso. Todas as grandes redes de televisão dos EUA enviaram um correspondente para a cobertura, mais curiosos para ver se o papa conseguiria ou não, e no final tiveram que cobrir os intempestivos discursos de Bergoglio contra a extração mineral em Papua Nova Guiné. Ele simplificou o ritual das exéquias pontifícias - sem exposição do corpo à devoção dos fiéis, sem catafalco - mas governa com mão firme. “Ainda estou vivo”, diz ele com ironia, insinuando a decepção de seus inimigos. “Alguns me queriam morto”, contou de forma mais explícita após uma hospitalização em 2021, “eles estavam preparando o conclave”. Aquele verdadeiro, para Francisco, pode esperar.
A outra certeza é que o cinema contemporâneo continuará a ter uma atração irresistível pelo Vaticano. Conclave confirma uma regra inaugurada nos últimos anos por Habemus Papam, de Nanni Moretti (o exemplo de um filme que é um spoiler da realidade), The Young Pope, de Paolo Sorrentino, Os dois Papas, de Fernando Meirelles. A cenografia, sem dúvida, se presta a isso, as abóbadas com afrescos e os jardins renascentistas, as vestes litúrgicas e os ritos antigos, o poder exercido no ascetismo e na dissimulação e que, depois de dois mil anos, ainda move e mobiliza milhões e milhões de pessoas independentemente da secularização e da rudeza de outros poderes mais vistosos, mas, em comparação, evanescentes. E se a vocação do cinema é revelar, que lugar mais sedutor do que o palácio apostólico? “A tanto segredo”, dizia Benny Lai, decano dos vaticanistas, “o retrocesso responde com seus talentos”.
Mas há mais. Entre o ritmo acelerado do cinema e os tempos lentos das salas sagradas, parece haver uma ligação misteriosa e decisiva para o mundo, como se por trás daqueles muros houvesse a mais espetacular das medidas do tempo. Se a areia precisa de uma ampulheta para fluir, o cinema mede as mudanças de época contra o pano de fundo de uma referência imóvel, e esse ponto é o Vaticano. Que, aliás, para quem o conhece bem, não é nada imóvel, nem mesmo tão estável, mas que, sem dúvida, tem uma considerável resistência.
“Vou destruir sua Igreja”, disse Napoleão. “Majestade”, respondeu-lhe o Cardeal Ercole Consalvi, “nós mesmos estamos tentando há vinte séculos e não conseguimos”.
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Choque de civilizações na Capela Sistina. Artigo de Iacopo Scaramuzzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU