Masculinidade e o "significado nupcial da salvação". Os estágios magistrais de uma intemperança paramagisterial. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Phil Hearing | Unsplash

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06 Dezembro 2025

"Suposições tradicionais e novas perspectivas se misturam de tal forma que reforçam preconceitos antigos com argumentos inéditos, nunca antes utilizados, que se mostram não apenas pouco convincentes, mas francamente arbitrários. Até que ponto, por exemplo, a 'reserva masculina', deduzida da convocação apenas dos doze homens, também se aplica à instituição da Eucaristia?", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado no blog Come se non, 05-12-2025.

Eis o artigo.

Acredito que possa ser útil aos leitores deste blog tentar compreender o que leram na carta publicada ontem, na qual o Presidente da Comissão para o Diaconato e a Mulher apresentou ao Papa um relato do trabalho dos últimos anos. O texto contém diversas propostas submetidas à votação, muitas vezes de caráter meramente interlocutório e enganoso. Contudo, uma proposta, que chegou ao fim do processo e sobre a qual a Comissão se dividiu diametralmente, oferece a formulação sistemática mais impressionante. Eis o texto:

"A masculinidade de Cristo, e portanto a masculinidade daqueles que recebem as Ordens Sacras, não é acidental, mas parte integrante da identidade sacramental, preservando a ordem divina da salvação em Cristo. Alterar essa realidade não seria um simples ajuste do ministério, mas uma ruptura do significado nupcial da salvação."

Após as palavras proféticas de João XXIII, escritas em sua última encíclica, Pacem in Terris, jamais, repito, uma expressão tão forte, drástica e clara (embora não definitiva) foi lida como uma interpretação teológica da "reserva masculina". Obviamente, deve-se considerar que o documento publicado, como uma carta dirigida ao Papa Leão XIV, não possui valor magisterial em si mesmo. Seria muito arriscado atribuir o valor de um ato de magistério papal a uma carta de um cardeal ao Papa. Contudo, o fato de essa proposta ter sido submetida a votação e ter dividido a Comissão torna-a significativa mesmo assim. De fato, pode ser muito interessante buscar as articulações internas e as raízes no magistério recente na formulação submetida à votação. Isso é ainda mais verdadeiro considerando que algumas leituras do texto, como a oferecida hoje por Giuseppe Lorizio no Settimananews, parecem oscilar temerosamente entre o escândalo e o aplauso. Parece-me que essa hesitação e vacilação no argumento revelam uma leitura inadequada e forçada do que chamamos de natureza "sacramental" da revelação e da ordenação. Tornar o sexo masculino "sacramental" e derivar a exclusão do sexo feminino da ordenação da "nupcialidade" é uma distorção imperdoável, sobre a qual devemos ser claros e diretos. Portanto, ofereço minha reconstrução do mal-entendido que aparece no texto "paramagisterial", que não é de forma alguma um "ponto sem retorno", mas o último elo de uma corrente que tem sido problemática desde o início.

1. A própria formulação

A primeira frase centra-se no "sexo masculino", definindo-o como "não acidental" nem em Cristo nem no ministro. O "portanto" cria uma correlação supostamente "lógica" e que, como veremos, tem raízes recentes. Dizer "não acidental" significa sustentar que o sexo masculino é "substancial", parte da substância do sacramento da Ordem. Mas a tradição está longe de ser inequívoca neste ponto. De fato, é a "identidade sacramental" que seria posta em questão, com a consequência, expressa aqui nos termos mais fortes jamais expressos em qualquer texto do Magistério, de insinuar que, de outra forma, "a ordem divina da salvação em Cristo" não seria preservada. O raciocínio, resumidamente, pretende sequenciar estas afirmações:

– se a salvação é mediada por Cristo
– se a mediação ocorrer por meio dos ministros de Cristo
– se Cristo e os ministros são todos homens
– mas o sexo de apenas um elo da corrente é alterado
– então a salvação deixa de chegar aos seus destinatários
– portanto, a masculinidade do ministro é essencial para evitar o inferno.

De fato, a segunda parte da frase implica que uma "alteração" (isto é, a inserção de uma ministra "mulher" na hierarquia) não seria um ato de atualização do ministério, mas uma "ruptura do significado nupcial da salvação". O que essa expressão pomposa, porém vazia, significa, além da ameaça que carrega, é desconhecido.

É interessante observar como esses diferentes pontos de vista desse raciocínio distorcido e enganoso derivam de uma série de declarações-chave feitas pelo Magistério ao longo dos últimos 50 anos, desde a década de 1970. Uma cadeia com vários elos.

2. Primeiro elo da corrente: Inter insigniores (1976)

No texto de 1976, Inter Insigniores, encontramos o início deste registro de reflexão sacramental sobre a masculinidade. E é altamente significativo que este "gigante", esta determinação masculina da mediação da salvação, esteja nesse texto com pés de barro. Sem repetir aqui o que já escrevi em outro lugar, é preciso reconhecer que o texto do qual se alega derivar a relevância sacramental do sexo masculino do ministro provém de uma interpretação equivocada e forçada de um texto de São Tomás de Aquino. Quando Tomás diz que é necessária uma certa "semelhança" entre Cristo e seu ministro, ele não está falando de mulheres, mas de escravos. Para ser ministro do Senhor, é preciso compartilhar da liberdade com Ele. Por essa razão, um escravo não pode ser ordenado, porque não é livre. E é aqui que Tomás estende essa proibição às mulheres. Mas não por causa do sexo, e sim por causa da escravidão. Para Tomás, o sexo feminino é incompatível com a ordenação porque é um sinal de escravidão — diríamos escravidão natural. Se atribuirmos a Tomás a relevância de uma semelhança “sexual”, cometemos um erro hermenêutico muito grave, pelo qual somos responsáveis, tanto em 1976 quanto, em um nível diferente, em 2025.

3. Segundo elo da cadeia: Mulieris dignitatem (1988)

No segundo texto, que data de 1988, há 12 anos, encontramos uma confirmação sutil, porém insidiosa, da suposição distorcida da Inter Insigniores, inclusive com uma exegese altamente criativa, para não dizer mistificadora, do relato da Última Ceia. Para o texto de João Paulo II, a instituição da Eucaristia é o tema central que liga o sexo masculino dos apóstolos à salvação em Cristo. Devo citar o texto para que possa ser compreendido como premissa para a proposta submetida à votação:

“Se Cristo, ao instituir a Eucaristia, a vinculou tão explicitamente ao serviço sacerdotal dos apóstolos, é legítimo pensar que, dessa forma, quis expressar a relação entre o homem e a mulher, entre o “feminino” e o “masculino”, desejada por Deus tanto no mistério da criação como no da redenção. Primeiramente, na Eucaristia, o ato redentor de Cristo Esposo para com a Igreja, sua Esposa, expressa-se de modo sacramental. Isso se torna transparente e inequívoco quando o serviço sacramental da Eucaristia, no qual o sacerdote age “in persona Christi”, é realizado por um homem. Essa explicação confirma o ensinamento da Declaração Inter Insigniores, publicada a pedido de Paulo VI para responder à questão da admissão de mulheres ao sacerdócio ministerial” (MD 26).

Suposições tradicionais e novas perspectivas se misturam de tal forma que reforçam preconceitos antigos com argumentos inéditos, nunca antes utilizados, que se mostram não apenas pouco convincentes, mas francamente arbitrários. Até que ponto, por exemplo, a "reserva masculina", deduzida da convocação apenas dos doze homens, também se aplica à instituição da Eucaristia? Estaria a Eucaristia, porventura, ligada a alguma reserva? O fato de que, na instituição da Eucaristia por Jesus, "é razoável pensar que dessa forma ele quis expressar a relação entre homem e mulher, entre o feminino e o masculino" parece bastante difícil de demonstrar, tanto em relação aos textos quanto aos seus significados. O fato de a redenção de Cristo, o Esposo, ocorrer em relação à Igreja, a Esposa — e não há razão para duvidar disso — como pode isso ser considerado a base factual para a dedução completamente arbitrária de que Cristo, o Esposo, representa o "masculino" e que a Igreja, a Esposa, representa o "feminino"?

De onde surge essa mudança do analógico para o anatômico? Talvez o "gênero gramatical" das palavras imponha soluções óbvias, ou mesmo indiscutíveis, nos planos teológico, sacramental, jurídico e sexual? De fato, a própria aproximação do argumento, com toda a sua evidente fragilidade, leva a uma visão diferente da conclusão afirmada ao final da questão. A alegação de que essa "explicação" (que não explica o texto em nada) pode confirmar o ensinamento proposto por Inter Insigniores revela-se extremamente frágil. A vagueza e a inconclusividade dessa suposta clarificação, produzidas pela sobreposição de argumentos diferentes e heterogêneos, demonstram, antes, a fragilidade dos argumentos originalmente elaborados no texto de Inter Insigniores.

4. Terceiro elo da cadeia: Ordinatio sacerdotalis (1994)

Mais do que nos dois documentos anteriores, a solução oferecida pela Ordinatio Sacerdotalis renuncia completamente à perspectiva da Pacem in terris e se concentra numa operação dupla, menos explícita, mas com maior pretensão de autoridade:

– Por um lado, afirma simplesmente reconhecer uma "doutrina definitiva" como historicamente fundamentada na prática uniforme da vida da Igreja ao longo dos séculos. Este testemunho da vida eclesial, que atesta a "reserva masculina" em relação à ordenação sacerdotal, seria uma restrição da qual a Igreja não teria autoridade para derrogar;

– Por outro lado, com uma declaração explícita desta doutrina definitiva, vivenciada na história, mas nunca formalmente estabelecida, a autoridade do Papa João Paulo II reconheceu a reserva masculina, que se diz “pertencer à constituição divina da Igreja”, através de uma frase que deve ser considerada definitiva por todos os fiéis.

5. Conclusões: uma intemperança paramagisterial

Nenhum dos textos que citamos sequer menciona metade do que foi submetido à votação para discernimento sobre o diaconato aberto às mulheres. Este parece ser o aspecto mais surpreendente: qual a necessidade de se engajar em uma teoria extremista e unilateral sobre os homens, senão porque o medo leva à perda de controle e resulta na votação de um texto que, justamente por sua abordagem unilateral e desequilibrada, divide uma Comissão que está longe de ser aberta? Este é um indicador significativo: o agravamento da ressurgência de uma série de distorções da tradição recente, levada ao nível de votação por um grupo de dez teólogos, divididos exatamente ao meio sobre esta questão, é um bom sinal dos tempos. De uma teologia limitada e de uma arrogância desmedida.

 

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