24 Junho 2024
"É claro que, em um discurso teológico, de forma alguma a masculinidade de Cristo pode ser usada para instalar uma sexuação de tipo masculino na divindade, nem para justificar um discurso sexista em relação às mulheres com base em uma antropologia androcêntrica, nem para reforçar uma imagem patriarcal de Deus", escreve Selene Zorzi, professora do Instituto Teológico Marchigiano e membro da Coordenação das Teólogas Italianas (CTI), em artigo publicado no blog Come Se Non, 14-06-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo o teólogo italiano Andrea Grillo: “Após as intervenções de Imperatori e Castiglioni, Selene Zorzi intervém sobre o tema da normatividade da “masculinidade” de Jesus, atualizando o debate especialmente em relação aos estudos da teologia feminista. Agradeço à teóloga e amiga pela sua contribuição na reflexão sobre esse aspecto do debate em torno da ‘reserva masculina’ ”.
A masculinidade de Jesus é um fato que ninguém pode pôr em dúvida. A reflexão feminista tem destacado que a cultura antiga considerava a virilidade como perfeição e completude da humanidade, em detrimento do feminino e das mulheres. Essa concepção foi chamada de androcentrismo.
Elizabeth Johnson afirma que Jesus tinha de ser homem para a própria eficácia de seu anúncio de serviço compassivo: “A partir de uma posição social de privilégio do homem, Jesus pregava e agia desse modo, aí está a acusação”. Segundo a renomada teóloga, trata-se de uma função de kenosis do próprio patriarcado: o esvaziamento do poder masculino dominante em favor da nova humanidade caracterizada pelo serviço recíproco.
É preciso acrescentar que, ao aceitar apenas um dos dois sexos, o Logos assumiu a humanidade em todas as consequências decorrentes dessa kenosis, ou seja, também a parcialidade do ser humano sexuado.
O Novo Testamento não parece ter tido um grande interesse pela masculinidade de Cristo em seu caráter de sex. O mesmo pode ser dito dos teólogos do primeiro milênio, que insistiam na masculinidade em seu valor de gênero (como cabeça). Rm 5,12ss fala de “um só homem”, referindo-se à humanidade inteira (anthropos).
Algumas estudiosas minimizam totalmente a sexuação de Jesus, afirmando que sua masculinidade não teria nenhum valor para a Revelação. Essa abordagem é problemática quando nos referimos à sexualidade de Jesus no sentido de sex, porque é uma depreciação da sexuação e da corporeidade. No sentido do gênero, porém, a afirmação é aceitável, pois permite romper a conexão entre papéis de poder masculinos e divindade, e permite não considerar a masculinidade como um privilégio ou como um valor a mais.
Por outro lado, enfatizar excessivamente a ligação entre a encarnação e a masculinidade de Cristo Jesus parece igualmente perigoso, porque correria o risco de cair na afirmação de que Cristo não teria salvado as mulheres, pois, segundo o ditado, “o que não é assumido não é salvo”. Pelo contrário, a Igreja sempre as batizou, e nunca houve nenhuma dúvida sobre isso.
Mais drasticamente, Elizabeth Ruether chega a afirmar que, se as mulheres não podem representar Cristo, Cristo também não pode representá-las e, na realidade, não as teria redimido. Esse caminho, portanto, parece inviável. É preciso considerar a masculinidade de Jesus como inclusiva e não excludente das mulheres: ela é o modo como Cristo assumiu “toda a natureza humana”, repropondo a argumentação que Agostinho aplicava a Ef 4,13, interpretando o vir pro homo. A reflexão já se encontra desenvolvida em Anselmo:
“Cada homem individual, de fato, é uma pessoa. Como, então, este compreenderá que do Verbo foi assumido o homem e não a pessoa, isto é, outra natureza e não outra pessoa?”
Em Deus, portanto, existe a assunção do homo. De fato, em Cristo a Pessoa permanece sendo a divina. Mesmo as fórmulas dos símbolos de fé não confessam que Cristo se fez vir, mas homo. O problema da masculinidade de Jesus deve responder, enfim, a duas perguntas:
1. se ela revelaria também a masculinidade de Deus por meio de uma dupla conexão: a ontológica de Jesus ao Logos [masculino] e desse Logos [masculino?] como revelador de uma eventual masculinidade de Deus. Todos estes, resultados inaceitáveis.
2. se a masculinidade de Jesus implica que a masculinidade é normativa do ser humano e, portanto, que ela é a única capaz de representar Deus (em suma, a masculinidade teria sido criada totalmente à imagem de Deus, enquanto a mulher não representa totalmente em si mesma a imagem de Deus). As teólogas feministas denunciaram esse modo de pensar como androcêntrico: e, se alguma vez ele foi levado adiante na história da teologia, ele não é mais sustentado nem mesmo pelo Magistério católico.
Por outro lado, permanece também a questão de saber se o corpo ressuscitado de Cristo (Salvador e Mediador) é sexuado. Diante das palavras de Paulo sobre a total transformação dos corpos (1Cor 15,35-44), abrem-se pistas talvez ainda pouco exploradas, que correm o risco de parecer discussões estéreis. A teologia feminista pretende sublinhar o caráter escatológico do Cristo ressuscitado, uma realidade que permanece totalmente envolta no mistério de Deus, em que não existiriam mais as distinções sexuais entre homem e mulher.
Além disso, é preciso lembrar que Agostinho (Civ. Dei, xvii) foi um dos primeiros a admitir que as mulheres deveriam ressurgir qua mulheres. Assim, ele também é o primeiro a refletir sobre o sentido não apenas biológico/procriativo, mas também pessoal da sexuação. O que significaria uma sexuação do corpo ressuscitado, o que isso implicaria? Não significando uma procriação material, significa que a sexualidade não tem a procriação como único fim.
Ruether observa que, se a historicidade e a concretude da hebraicidade de Jesus, sua raça, sua língua, a cor de sua pele, não foram consideradas fundamentais para sua identidade, não se entende por que sua masculinidade deveria ser. Seria preciso demonstrar, então, que a sexuação é uma parte constitutiva da identidade humana de uma forma que outras características corporais não o são.
Por outro lado, a chamada cristologia da First Quest (primeira fase), que quase esqueceu a historicidade e a proveniência étnica de Jesus, já demonstrou seus limites, incluindo alguns resultados de marca racista. Voltar a considerar essas características importantes (como faz a Third Quest, mas também feministas como Julie M. Hopkins), junto com sua masculinidade, também significa que a teologia não pode renunciar à sexuação entendida como constitutiva de uma identidade pessoal.
Durante muito tempo, a reflexão sobre essas temáticas foi elaborada quase exclusivamente por homens celibatários sobre uma humanidade supostamente neutra ou assexuada (talvez com o ideal da isangelia de Lucas 20,36). Recentemente, continua sendo dada uma atenção excessiva à sexualidade em termos puramente procriativos: é preciso que a teologia se desvincule daquele paradoxal acordo que ela demonstra ter com a mentalidade dominante no que diz respeito ao lugar da sexualidade na estrutura antropológica, como se ela dissesse respeito apenas a uma “atividade” ou área específica do ser humano.
A afirmação de Gal 3,28 é hoje compreendida como um cancelamento histórico e não escatológico das diferenças sociais de subordinação típicas dos papéis sociais (à qual a cultura androcêntrica relegava as mulheres ou os escravos, cf. Rm 10.12; Col 3.11) e não deve ser interpretada como uma anulação da nossa identidade pessoal sexualmente determinada no corpo ressuscitado.
Quanto à inclusão dos papéis sociais, é preciso dizer que o próprio Jesus em sua vida revelou historicamente uma ação divina inclusiva das mulheres ao discipulado (Lc 8,1-3). Estas permaneceram com ele até à cruz (Mt 27,55-61), e ele também escolheu aparecer a elas e dar um mandato a elas (Mc 16; Lc 24; Mt 28; Jo 20; 1Cor 15,6). Algumas mulheres são chamadas de “apóstolas”, enquanto a atividade de outras é designada assim.
Um âmbito de aprofundamento da reflexão seria sobre o fato tradicional que afirma a união entre as duas naturezas na pessoa do Logos e não na pessoa humana (e, portanto, sexuada) de Jesus: isto é, a masculinidade de Jesus não parece constitutiva dele como Mediador.
Johnson menciona o dogma de Calcedônia com base no qual se diz que a natureza humana (e, portanto, também masculina) e a natureza divina (Logos) em Cristo estão unidas sem confusão nem mistura, de modo que a masculinidade da natureza humana não se infiltra, por assim dizem, na natureza divina e, portanto, nem mesmo em Deus.
A sexuação da pessoa, e, portanto, a masculinidade para a identidade histórica de Jesus, é uma característica constitutiva de cada ser humano e contribui para estruturar aquele conjunto de alma e corpo que se chama de “pessoa” e que está destinada à ressurreição. Toda a experiência elaborada por meio do corpo, e que formou a nossa identidade, ressurgirá, ou seja, tudo aquilo que atravessou o corpo, que a pessoa experimentou nesta vida e que contribuiu para torná-la aquilo que ela é (com a distinção entre Leib e Körper).
No entanto, é claro que, em um discurso teológico, de forma alguma a masculinidade de Cristo pode ser usada para instalar uma sexuação de tipo masculino na divindade, nem para justificar um discurso sexista em relação às mulheres com base em uma antropologia androcêntrica, nem para reforçar uma imagem patriarcal de Deus.
É preciso admitir que essa temática teológica é influenciada pelo medo de que ela possa levar à justificação da ordenação das mulheres e custa a ser tratada de forma objetiva, especialmente pelos teólogos do sexo masculino amedrontados em perder um privilégio.
A masculinidade de Cristo, de fato, não aparece estar diretamente ligada à do padre, como demonstram as práticas de outras Igrejas. Para chegar à necessidade da masculinidade “sexual” do padre, seria necessário justificar muitas outras passagens, que talvez sejam próprias dos liturgistas e dos sacramentaristas: justificar em que sentido a masculinidade é fundamental para a representatio sacramental; discutir se a imago Christi ou a imago Jesu é constitutiva dessa representação; perguntar-se se e como as mulheres podem representar a imago Christi como Mediador e Salvador (Deus) e se e como podem alcançar uma Imago Jesu.
Existem muitos testemunhos documentais que podem ser trazidos nessa direção. Além disso, em nível litúrgico, será preciso especificar a colocação e a função da representatio dentro da celebração eucarística. Por outro lado, um debate sobre a ordenação diaconal das mulheres já parece estar agora aberto na teologia católica, não só a partir do motu proprio Omnium in Mente, do Papa Bento XVI, que reserva o in persona Christi exclusivamente ao episcopado e ao presbiterado, mas também a partir da queda da reserva masculina para os ministérios menores implementada por Francisco.
De fato, no dia 10 de janeiro de 2021, o Papa Francisco modificou o cânone 230 §1 do direito canônico que mantinha o impedimentum sexus, ou seja, o obstáculo – pelo único motivo do sexo – que excluía as mulheres, desde a antiguidade tardia, do acesso aos ministérios.
Com um ato de boa vontade, as leis mudam.
Por um lado, o papa é tradicional, porque continua a recepção dos ministérios laicais desejados por Paulo VI em 1972, quando, no rastro do Vaticano II, que havia abolido as ordens menores, abria os ministérios aos leigos. Tratava-se de uma novidade, mas também de um retorno às fontes, pois, de fato, a Igreja das origens conhecera múltiplos e variados ministérios (Ef 4,11) que hoje não temos mais, porque foram absorvidos por aqueles que passaram a ser chamados de “ordenados” e que se estruturaram ao longo da história em três graus do ofício hierárquico, com um monoepiscopado desconhecido às primeiras comunidades cristãs e excluindo as mulheres.
Por outro lado, esse passo poderia parecer revolucionário, precisamente porque o que está sendo removido é a palavra “de sexo masculino” que até ontem parecia uma pedra pesada e inamovível sobre tudo o que dizia respeito ao poder e à liderança na Igreja Católica.
Como foi possível chegar à restituição aos leigos de ministérios fundados no batismo, ou seja, fundados na condição comum de consagrados no ofício sacerdotal de Cristo? No rastro do que o papa chama de “desenvolvimento doutrinal” da Igreja. Como recordava a Dei Verbum 8, “a Revelação progride na Igreja”, de modo que as exigências dos tempos desafiam a Igreja a compreender o Evangelho de um modo cada vez mais aprofundado e a explicitar todas as suas potencialidades.
Recordemos a grande mutação das situações eclesiais, sociais e culturais ao longo da história, durante a qual a situação dos ministérios assumiu formas diferentes (é preciso lembrar, de fato, que, até o Concílio de Trento, considerava-se que os degraus da ordem eram sete: o ostiariado, o leitorado, o exorcistado, o acolitado, o subdiaconato, o diaconato e o presbiterado; o episcopado não se inseria entre esses graus).
É importante lembrar que a Igreja, em sua peregrinação na história, mudou estruturas e tradições, ora adaptando-se à cultura da época (por exemplo, quando fechou o acesso das mulheres à pregação do Evangelho, aberta a elas por Jesus, com base em uma sujeição a uma cultura patriarcal), ora para permitir que cada Igreja local responda com fidelidade ao mandato de Cristo.
Por fim, torna-se mais evidente o que já estava implicitamente previsto pelo próprio cânone 230 §2 em que se fala de “todos os leigos”, isto é, em que o plural masculino é inclusivo do feminino. Hoje, a explicitação torna-se necessária, porque não é mais óbvio que o masculino possa pensar em falar a partir de um ponto de vista universal, como se fosse neutro.
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Sobre a masculinidade de Jesus de Nazaré. Artigo de Selene Zorzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU