Por: Jonas Jorge da Silva | 19 Outubro 2021
Esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou. Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la. (Laudato Si’, 02)
A encíclica Laudato Si’ denunciou as relações de dominação e exploração humanas da natureza, próprias de determinada antropologia reducionista, alimentada por um sistema socioeconômico desigual e injusto. Abrangendo essa perspectiva, as vertentes ecofeministas avançam em conteúdos e formas que ampliam os horizontes em favor de uma ecologia integral, tendo em conta o protagonismo das mulheres.
É nesse sentido que, no último sábado, 16 de outubro, Andreia Cristina Serrato e Jaci Souza Candiotto, professoras do Curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, abordaram o tema Ecofeminismo e as novas narrativas socioambientais, pela série de debates Crise sistêmica, complexidade e desafios planetários.
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Profa. Dra. Andreia Cristina Serrato e Profa. Dra. Jaci Souza Candiotto, ambas da PUCPR, na atividade "Ecofeminismo e as novas narrativas socioambientais"
A iniciativa do CEPAT conta com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil - CNLB, Comunidades de Vida Cristã - CVX, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.
Andreia Serrato iniciou destacando que o ecofeminismo, partindo de uma análise crítica, que reúne feminismo e ecologia, escancara a relação entre a exploração das mulheres e da Terra, associando a luta pela transformação das relações entre homens e mulheres à luta pela mudança de nossas relações com o ecossistema. Nessa direção, lembrou que a feminista francesa Françoise d’Eaubonne foi a primeira a introduzir o termo ecofeminismo nesse debate.
As estruturas consolidadas de poder que regem a sociedade impactam sobre as mulheres e a natureza, de tal modo que a saída desse sistema de exploração e dominação passa necessariamente pela reinvenção das atuais bases de convivência humana, em favor do respeito à dignidade da mulher aliado a um projeto sustentável para todas as formas de vida.
As mulheres pobres são as que mais sofrem as consequências dessa destruição sistemática da natureza e seus meios de subsistência. Conforme destacado por Serrato, se a Laudato Si’ aponta que quando a terra sofre, os pobres/marginalizados são os mais impactados, entre eles, as principais vítimas são mulheres e crianças. Também são elas as protagonistas de processos de luta e transformação dessa realidade. Na luta das mulheres está a possibilidade de se avançar em uma nova engrenagem que fortaleça as teias da vida na Terra.
Serrato destacou que a teóloga Ivone Gebara, em Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião (1997), afirma que “não se pode mais reduzir as experiências humanas a um tipo de consciência moderna, mas tentar uma nova compreensão de nosso ser pessoal no Ser Maior, no Corpo Sagrado da Terra e do Cosmos”.
De fato, esse tipo de consciência moderna, guarda-chuva de diversas formas de opressão, é hoje contestado pelo ecofeminismo a partir de uma crítica radical, no sentido próprio da palavra, ou seja, de ir à raiz da complexidade das atuais problemáticas socioambientais.
Nesse sentido, Serrato destacou as importantes contribuições da teóloga feminista estadunidense Rosemary Ruether. Em sua contundente análise no artigo Ecofeminismo: mulheres do primeiro e terceiro mundos, pela revista Estudos Teológicos da Faculdade EST, evidencia que dentro de determinados padrões culturais-simbólicos, “tanto as mulheres quanto a natureza são inferiorizadas e mutuamente identificadas como uma superestrutura ideológica por meio da qual o sistema de dominação econômica e jurídica das mulheres, da terra e dos animais é justificado e parece “natural” e inevitável dentro da totalidade de uma cosmovisão patriarcal”.
O ecofeminismo problematiza tal cosmovisão patriarcal que alimenta o mito de identidade do homem ocidental da classe dominante, que, conforme as reflexões de Ruether, produziu um “Deus à imagem de sua própria aspiração de estar separado e dominar o mundo material, como a terra e os animais ou “recursos” não humanos, e como grupos subjugados de seres humanos”.
Em resumo, na avaliação de Serrato, um denominador comum presente em todas as perspectivas ecofeministas é o de que a dominação das mulheres está baseada nos mesmos fundamentos que levam à exploração da natureza e a subjugação dos povos.
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Igor Sulaiman Said Felicio Borck, do CEPAT, Profa. Dra. Jaci Souza Candiotto, da PUCPR, André Langer, do CEPAT, Profa. Dra. Andreia Cristina Serrato, da PUCPR, na atividade "Ecofeminismo e as novas narrativas socioambientais"
Na sequência, Jaci Candiotto reforçou alguns elementos presentes nas diferentes vertentes ecofeministas, conforme já citado, ao criticar a ideia de um mundo hierarquizado e dualista que estabelece padrões de comportamento diferenciados para homens e mulheres. Para ela, o que está em questão é o estabelecimento de formas de convivência mais equitativas e cuidadosas em favor do bem viver.
Por isso, é preciso desconstruir algumas heranças deixadas pela teologia tradicional, como, por exemplo, a ideia de Deus acima de tudo, conferindo ao homem o poder de dominar e explorar o mundo. É claro que a tradição antropológica cristã reconhece um lugar especial para o ser humano na Criação, mas jamais essa posição significa o poder de explorar, mas, sim, o de cuidar.
Além disso, Candiotto também problematizou a dimensão patriarcal e masculina do sistema científico dominante, citando, por exemplo, as críticas da renomada ativista ecofeminista Vandana Shiva aos padrões normativos do atual modelo científico hegemônico.
Para que começassem a surgir novas narrativas, as mulheres precisaram ir além da história contada a partir dos homens. Nesse sentido, a escolaridade feminina foi fundamental, conforme já reconheceu a teóloga Rosemary Ruether.
No campo da teologia, a perspectiva mais feminista é muito recente, assim como a consciência que permitiu olhar além e perceber que existe uma injustiça de gênero, reconheceu Candiotto. E para reforçar a emergência e importância de tal debate, citou novamente Ruether: “O ecofeminismo abre-nos não só a possibilidade de uma real equidade entre homens e mulheres de diferentes culturas, mas também uma relação diferente entre nós, a terra e todo cosmos”.
Eis a íntegra da exposição e debate.
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Ecofeminismo: a reinvenção de nossas formas de convivência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU