“— Hoje, uma pequena menina católica, que está crescendo, algum dia terá a chance de ser uma diaconisa ou participar como um membro do clero na Igreja?
— Não!”
Este brevíssimo diálogo, extraído da entrevista do Papa Francisco à jornalista Norah O'Donnell, da rede de televisão americana CBS, no mês passado, rodou o mundo e gerou inúmeros comentários a partir de compartilhamentos nas redes sociais. Menos destaque tiveram as demais declarações do pontífice sobre a atuação das mulheres na Igreja e o reconhecimento de que elas, embora não recebendo o Sacramento da Ordem, são “aquelas que impulsionam as mudanças. Elas são mais corajosas que os homens. Elas sabem a melhor forma de proteger a vida. A Igreja é uma mãe, e as mulheres na Igreja são aquelas que ajudam a promover essa maternidade”.
Um ano antes desta entrevista, em março de 2023, o próprio Papa Francisco escreveu sobre as mulheres no La Stampa, em artigo reproduzido na página do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A primeira frase do texto dá o tom das preocupações do pontífice com a questão feminina: “As questões ligadas ao mundo feminino estão particularmente próximas do meu coração”. Em dezembro do mesmo ano, na audiência com os membros da Comissão Teológica Internacional, o Papa chamou atenção para um dos inúmeros pecados cometidos pelos membros da Igreja: "Um dos grandes pecados que cometemos é 'masculinizar' a Igreja", reiterando a necessidade de desmasculinizá-la: “Se não entendermos o que é uma mulher, o que é a teologia de uma mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja. Um dos grandes pecados que cometemos foi ‘masculinizar’ a Igreja”.
A desmaculinização da Igreja, entretanto, não será resolvida pela vida ministerial, como advogam teólogos e teólogas contemporâneos em divergência com os Padres da Igreja, assegurou o pontífice no encontro: "Isso não é resolvido pela via ministerial; isso é outra coisa", referindo-se às discussões sobre o sacerdócio feminino. "É solucionado pela via mística, pela via real", sublinhou.
O Papa também mostrou estar a par dos questionamentos acerca dos princípios mariano/petrino, que justificam o Sacramento da Ordem, como via para justificar a ordenação feminina. "Pode-se discutir isso, mas os dois princípios estão lá. É mais importante o mariano do que o petrino, porque há a Igreja como noiva, a Igreja como mulher, sem se tornar masculina", pontuou, acrescentando: “E vocês podem se perguntar: para que serve esse discurso? Não apenas para dizer que devemos ter mais mulheres aqui – este é um ponto –, mas para ajudá-los a refletir. A Igreja é mulher, a Igreja é noiva. E essa é uma tarefa que peço a vocês, por favor. Desmasculinizem a Igreja”.
Francisco reiterou ainda a necessidade de conversão da Igreja, isto é, a abertura ao “chamado a dedicar toda a energia do coração e da mente a uma conversão missionária da Igreja”. Para isso, acrescentou, “é essencial que vocês, teólogos, façam isso em sintonia com o Povo de Deus, eu diria 'de baixo para cima', ou seja, com um olhar privilegiado para os pobres e os simples, e, ao mesmo tempo, se colocando 'de joelhos', porque a teologia nasce da adoração a Deus”.
Nem todos os teólogos e teólogas e, inclusive, sacerdotes, religiosos e religiosas, estão em sintonia com o Papa Francisco nesta seara. Um dos expoentes neste debate é o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, para quem “a tradição eclesial viveu o sexo feminino como um ‘impedimento à ordenação’” sacerdotal.
Grillo acaba de lançar a coletânea intitulada Senza impedimenti: le donne e il ministero ordinato (Sem impedimentos: as mulheres e o ministério ordenado, em tradução livre, pela editora Queriniana), com ensaios de Emanuela Buccioni, Cristina Simonelli, Luigi Mariano Guzzo, Serena Noceti, Luca Castiglioni e Andrea Grillo sobre o tema. Para ele, a posição da Igreja sobre a Ordenação Sacerdotal “não precisava ser justificada: era resultado da cultura compartilhada”, uma vez que “a tradição eclesial deixou-se moldar pela cultura antropológica e social, que discriminava a mulher no plano da autoridade pública. Fomos cegos e surdos, como todos os outros homens. Mesmo que nos textos tivéssemos vislumbres de uma visão diferente, nós os deixamos de lado e os neutralizamos, sob a pressão do mundo”, disse em artigo publicado esta semana e reproduzido na página do IHU.
Segundo o teólogo, “se a reserva masculina” para a ordenação sacerdotal feminina “for deslocada quer para Jesus (que a teria afirmado com as suas ações), ou para o Papa (que não poderia deixar de reconhecê-la com as suas palavras) ou para o casal Pedro/Maria (o que seria normativa de uma oposição original entre instituição e carisma), o jogo parece encerrado”, tal como respondeu o Papa Francisco à Norah O'Donnell.
“Sem impedimentos: as mulheres e o ministério ordenado”, novo livro de coautoria de teólogas e teólogos italianos (Foto: Divulgação)
Entretanto, argumenta, “a compreensão da relação entre mulheres e ministério não parece oferecer razões teológicas suficientes para justificar os clássicos impedimentos. Os impedimentos vinham de culturas misóginas. A descoberta da igual dignidade de autoridade entre mulheres e homens elimina os impedimentos e predispõe também o catolicismo a superar os preconceitos e dispor-se a reconhecer uma autoridade pública, oficial, eclesial e apostólica a todos os batizados, sem mais ‘reserva masculina’”.
Na próxima quarta-feira, 19-06-2024, às 10h, Andrea Grillo apresentará novamente sua posição neste debate na videoconferência intitulada “Desclericalização e desmasculinização da Igreja. Exigências para uma eclesiologia a múltiplas vozes”. O evento integra o Ciclo de Estudos O (não) lugar das mulheres: o desafio de desmasculinizar a Igreja e será transmito na página eletrônica do IHU e nas redes sociais do Instituto. A programação completa está disponível aqui.