As mulheres e o pano de fundo. Artigo de Emanuela Buccioni

"A repreensão de Adão e Eva", obra de Domenico Zampieri (1581-1641), artista barroco (Imagem: Domínio Público)

14 Julho 2023

"Certos versículos encontram um terreno fértil até hoje, quando, de forma explícita ou quase inconsciente, torna-se admissível afirmar que as mulheres são um pano de fundo que dá sentido a quem se move como protagonista na história da salvação (os homens), ou, melhor, que essa contribuição decorativa é um papel tão relevante que não se vê por que procurar ou até mesmo reivindicar outras".

A opinião é da teóloga italiana Emanuela Buccioni, consagrada do Ordo Virginum da Diocese de Terni, na Itália, doutora em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade São Tomás de Aquino, em Roma, e professora do Instituto Superior de Ciências Religiosas de Arezzo. O artigo foi publicado por Rocca, n. 14, de julho de 2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Há alguns anos, o filme “Ágora” (2009) deu a conhecer ao grande público a história da filósofa e estudiosa de matemática e astronomia Hipátia. Tendo vivido nos séculos IV-V em Alexandria do Egito, ela foi assassinada por fanáticos religiosos cristãos. Sua figura foi redescoberta no século XVIII, tornando-se símbolo e testemunha da liberdade de pensamento, com sua independência, suas competências, o fato de ser mulher. Quando já era idosa e foi morta em um tumulto, era uma mestra prestigiada e estimada de ciências filosóficas e matemáticas, tinha diversos discípulos e uma interessante rede de conhecidos culturais e políticos, até mesmo o prefeito romano.

O filme, que se inspira na história dela, com algumas óbvias licenças poéticas, opta por associar claramente sua perseguição ao bispo Cirilo de Alexandria, que, em uma cena-chave, mostrando-se obediente ao apóstolo Paulo e à Palavra de Deus, lê um trecho da Primeira Carta a Timóteo. É inevitável o movimento de aborrecimento e de repulsa de qualquer espectador: “Durante a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade” (1Tm 2,11-15, trad: Bíblia Sagrada Edição Pastoral).

Um texto indefensável

Muitas vezes, os textos bíblicos e paulinos são mal-entendidos ou mal traduzidos, mas neste caso o contexto e o desenvolvimento da argumentação também nos deixam perplexos. O capítulo começa com um convite à oração em suas várias formas, em favor de todos, mas sobretudo das autoridades civis, das quais depende aquela serenidade que permite uma expressão religiosa livre. Ser percebido como cidadão respeitoso e não como uma ameaça podia até ser efetivamente útil para a causa do Evangelho, mas e se isso significasse renunciar ao impulso de mudança da práxis cristã? Em todo o caso, esse parece ser o tom predominante do contexto: não ceder a eventuais acusações, não causar incômodo.

De fato, pede-se que os homens evitem a cólera e as polêmicas; que as mulheres sejam prudentes e tranquilas; que os bispos (no capítulo 3) evitem a violência, as brigas e a ganância; que os diáconos não sejam pessoas de vida dupla ou entregues aos excessos. Se quiséssemos ter uma ideia da comunidade a partir das recomendações dadas, não surgiria um quadro muito edificante!

Nesse contexto, as mulheres são convidadas a aprender. O verbo é manthanô, raiz do termo “discípulo” e o mesmo do convite de Jesus: “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). As mulheres devem aprender, ser plenamente discípulas. Registremos esse dado positivo.

Isso deveria ocorrer com hesychìa e hypotagé. Ao primeiro termo refere-se a extraordinária tradição do hesicasmo cristão, um movimento espiritual difundido sobretudo entre os Padres do deserto e no monaquismo oriental como uma busca da paz interior que vem do fato de captar a profunda intimidade com o Senhor e com toda a realidade da criação. Já discutimos sobre o segundo termo em outra oportunidade: trata-se da submissão que significa opressão quando diz respeito apenas a alguém, mas que podemos conjugar como acolhida, hospitalidade para com o outro, a vida, o próprio Deus; condição para todos de fraternidade e de seguimento.

Com o máximo esforço, podemos salvar essa indicação que, entretanto, está além das intenções de quem escreve, que especifica imediatamente o papel ou o lugar da mulher: ela não pode ensinar nem ter nenhuma autoridade sobre o homem, simplesmente por ser mulher. A argumentação dessa afirmação é até pueril por ser uma interpretação superficial e distorcida do texto de Gn 3, mas, apesar disso, foi tão repetida a ponto de considerada incontestável até tempos recentes: a mulher foi criada depois e se deixou enganar e, portanto, deve sofrer!

Há um tom quase rancoroso de revanche, se não fosse trágico e não tivesse causado danos catastróficos. O encerramento é ainda mais inconsistente: “Ela será salva pela sua maternidade”.

Perguntamo-nos o que aconteceu com aquele “tua fé te salvou” que Jesus dirige às mulheres e aos homens (cf. Mc 5,34; 10,52; Mt 9,22; Lc 7,50; 17,19).

Timóteo e sua Igreja

As afirmações dos versículos citados encontraram um terreno fértil até hoje, quando, de forma explícita ou quase inconsciente, torna-se admissível afirmar que as mulheres são um pano de fundo que dá sentido a quem se move como protagonista na história da salvação (os homens), ou, melhor, que essa contribuição decorativa é um papel tão relevante que não se vê por que procurar ou até mesmo reivindicar outras.

Da mesma forma, é enganosa a exaltação unidirecional da maternidade para a mulher que deve encontrar sua plena realização nessa dimensão, sem dar ouvidos a histórias, escolhas, condições que possam dizer outra coisa e enquanto se ignora quase totalmente a dimensão da paternidade para o homem. Perguntamo-nos a quem essas palavras são dirigidas originalmente.

Timóteo, estreito colaborador de Paulo, é mencionado 16 vezes no corpo das cartas paulinas, seis vezes como remetente junto com Paulo (1Tess, 1Cor, Fil, Fm 1 e Col). Paulo o indica como “nosso irmão e colaborador de Deus no Evangelho de Cristo” (1Ts 3,2) e o elogia como “filho amado e fiel no Senhor” (1Cor 4,17). Em Filipos, durante sua prisão, Paulo apresenta-o com afeto: “Ele é o único que sente como eu [...] se colocou ao meu lado a serviço do Evangelho” (Fl 2,20.22). Filho de mãe judia e de pai grego, “estimado pelos irmãos de Listra e de Icônio” (At 16,1-2), Timóteo é um discípulo a quem Paulo faz circuncidar para se defender dos ataques dos judeu-cristãos intransigentes de Jerusalém.

Nas cartas pastorais, assim chamadas por serem dirigidas ao “pastor”, isto é, ao bispo da igreja de Éfeso, Timóteo é apresentado como um discípulo exemplar de Paulo. A comunidade está se organizando com a definição de ministérios e deve gerir as tensões do crescimento: tendências progressistas que enxertam o Evangelho na cultura helenística, tendências conservadoras que temem perder suas raízes judaicas, tendências regressivas de quem vê os equilíbrios de poder ameaçados, tendências fundamentalistas que rejeitam o mundo, o corpo, a sexualidade.

É justamente essa complexidade que deve nos levar a tomar com atenção qualquer afirmação. Não é difícil detectar, por exemplo, a incoerência de uma mulher que não pode ensinar quando o próprio Timóteo foi formado (nas Escrituras?) por sua mãe Eunice e pela avó Loide (cf. 2Tm 1,5; 3,10-15). Assim como o convite ao silêncio está em evidente contraste com outros textos paulinos (1Cor 11,5) nos quais as mulheres profetizam e rezam nas assembleias. A exegese não tem dúvidas em afirmar que o texto de 1Tm não é um produto autenticamente paulino, mais tardio, mais próximo das cartas de Inácio e Policarpo do que de Paulo.

Palavra de Deus ou palavra de homens?

O problema sério que se levanta é: se há textos problemáticos ou inadmissíveis para a sensibilidade moderna, como devem ser abordados? Como evitar uma seleção no cânone de marca neomarcionita (Marcião não aceitava muitíssimos textos do Antigo Testamento e alguns do Novo porque não via neles o rosto do Deus misericordioso anunciado por Jesus)? Como continuar chamando de “Palavra de Deus” páginas que humilham categorias inteiras de pessoas ou que falam de “dedicar ao extermínio” cidades inteiras, homens, mulheres, crianças, animais (cf. Js 6) ou textos em que a blasfêmia (Lv 24,16) ou a maldição sobre um dos genitores (Lv 20,9), por mais condenáveis que sejam, são punidos com a morte, ou ainda indicações da vontade de Deus que chegam a definir alimentos ou tecidos adequados ou não para as vestes? Duas possíveis pistas que ajudam a caminhar na compreensão dizem respeito à gradualidade pedagógica e à autoridade das fontes.

Alguns textos têm uma validade limitada no tempo, porque servem para um crescimento humano em relação a condições ainda mais primitivas que são chamadas a evoluir. Outros textos devem ser interpretados, considerando gêneros literários, épocas e contextos, tendo valor relativo em relação à palavra do Evangelho, distinguindo com atenção e coragem o que é apenas tradição cultural humana, segundo Mc 7,13: “Assim vocês esvaziam a Palavra de Deus com a tradição que vocês transmitem. E vocês fazem muitas outras coisas como essas”.

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