15 Julho 2025
“Assim, esses dois grandes líderes [Mandela e Mujica], e acima de tudo, seres humanos sábios e humildes construtores da democracia a partir das diferenças e dos diferentes – o completo oposto de Trump e Netanyahu – se contrapõem justamente ao ódio, à violência e à desumanidade que são os pilares das atuais políticas genocidas”. A reflexão é de Pietro Ameglio, em artigo publicado por Desinformémonos, 11-07-2025. A tradução é do Cepat.
Pietro Ameglio é membro do Serviço de Paz e Justiça (SERPAJ), do coletivo Pensar en Voz Alta e do Movimento pela Paz com Justiça e Dignidade.
É tão fácil quebrar e destruir. Os heróis são aqueles que fazem a paz e constroem (Nelson Mandela).
Triunfar na vida é se levantar e começar de novo cada vez que se cai, e isso vale para o trabalho, o amor e em todas as relações humanas (Pepe Mujica).
Nestes tempos de imensa aplicação da doutrina do choque, como diria Naomi Klein, onde tudo é construído para nos deixar sem tempo para pensar, para entender o que está acontecendo, onde um dia se bombardeia o Irã com as bombas mais letais e poderosas que existem, e no dia seguinte se pede a Deus que abençoe o Irã e toda a sua população, e se decreta a paz de maneira unilateral. Da mesma forma, bombardeia-se um país como o Irã, que é signatário do Tratado Internacional de Não Proliferação de Armas Nucleares e que se sabe não possuir bomba atômica, e Israel – que não é signatário desse tratado e possui muitas bombas nucleares, certamente centenas – não é obrigado a demonstrar ou verificar nada, devido a uma construção histórica e social mundial ambígua e perversa, onde a identidade israelense como vítima do atroz Holocausto nazista na Segunda Guerra Mundial foi congelada (reificada), fazendo-se crer que os judeus daquela época são os mesmos do atual governo sionista israelense.
Enfrentamos esse nível de contradições desumanas que vemos todos os dias, e por isso é tão importante despertar para a consciência, ter um momento de reflexão para ser capaz de “desvendar a verdade” de tantas contradições construídas para “nos infantilizar social e mentalmente” e nos fazer cair na obediência cega ao fatalismo e aos ditames da autoridade global unilateral. Mas é justamente esse o caminho que devemos evitar, por meio da reflexão e, como propomos neste artigo, inspirando-nos e aprendendo com outros tipos de lideranças – não cruéis, sádicas, messiânicas, megalomaníacas, narcisistas malignas e genocidas como as de Trump e Netanyahu, mas como as de Mandela, cujo Dia Internacional da ONU é comemorado no dia 18 de julho, e de Pepe Mujica, no Uruguai, falecido há pouco mais de um mês. Aproveitemos esta conjuntura histórica para refletir sobre humanização e paz não violenta.
Ao mesmo tempo, vivemos uma profunda crise global em relação à ideia de paz com justiça, respeito aos direitos humanos, legalidade e dignidade, que é o que temos tentado promover e construir em nossa espécie, com suas instituições multilaterais, nas últimas décadas. Mais do que nunca, a paz armada e militarista, a chamada paz negativa, está sendo imposta, sobrepondo a ideia de paz à ideia de segurança.
A esse respeito, Netanyahu já afirmou com bastante clareza: “Primeiro vem a força, depois a paz”. Portanto, estamos verdadeiramente em meio a uma redefinição também da guerra, porque agora é possível bombardear um país como os Estados Unidos fizeram com o Irã e alegar que não é guerra. Pode-se romper todos os tipos de acordos, multilateralismo, institucionalidade e legalidade internacional e dizer que são “ataques preventivos” (internacionalmente ilegais), onde sua justificativa é baseada exclusivamente na palavra da autoridade messiânica que o diz – neste caso, Trump e Netanyahu –, sem nenhuma correlação empírica, nenhum fato social que o comprove, assim como aconteceu com a invasão do Iraque por Bush Jr. em 2003. É o realismo coletivo global nominal e mágico em sua expressão máxima.
A guerra no Irã colocou em risco a sobrevivência material da espécie. Estivemos à beira de entrar na Terceira Guerra Mundial, sabendo que não haveria uma Quarta, com uma concentração extremamente alta de poder militar e político, onde nem Trump nem Netanyahu consultaram seus respectivos congressos e cidadãos. Portanto, o ataque impune de Israel e dos Estados Unidos ao Irã representou uma fronteira na sobrevivência da espécie.
O grande negócio é o militarismo, a venda de armas, o “grande e magnífico” pacote fiscal de Trump que acaba de ser aprovado pelos dois congressos estadunidenses. É um escândalo de militarismo, de acúmulo de armas, de todos os tipos de repressão, de aumento de vigilância de todos os tipos, de muros, de ataques a migrantes e nações. Assim como Trump, que forçou de maneira indecente toda a OTAN europeia (32 países) a aumentar seu orçamento de defesa para 5% do PIB, o próprio secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, chegou a extremos de imoralidade degradante ao chamar Trump de “papai” (“daddy”). Tomara que a Espanha consiga manter a meta de 2,1% que reivindica e, assim, desobedecer à ordem desumana de Trump.
Agora, a relatora especial da ONU acaba de denunciar que mais de 60 empresas internacionais lucraram escandalosamente com o genocídio em Gaza, e três das principais empresas de segurança israelenses (TAT, NextVision e Elbit) triplicaram seus lucros nos últimos anos.
Mas o genocídio e a limpeza étnica de Gaza, que começaram em 1948 com a Nakba (a grande catástrofe dos palestinos), têm a ver com a sobrevivência cultural e de humanização de nossa espécie, que é outra forma de sobrevivência que levou centenas de milhares de anos para ser construída e que ainda está em processo, mas na qual houve alguns avanços significativos na política, na legalidade e nas instituições internacionais, que agora, em apenas alguns meses, foram totalmente rebaixados, pisoteados e aniquilados.
Estamos, como já dissemos mais de uma vez, diante de uma fronteira moral da humanidade. Como disse o pastor Munster, da Igreja Luterana de Belém: Gaza é um compasso moral da humanidade, e como a ONU disse: é o inferno na Terra. A própria relatora especial da ONU, Francesca Albanese, afirmou que “Israel está escrevendo uma das páginas mais horríveis do genocídio”. Portanto, essa distância geográfica, que para nós é de milhares de quilômetros da América Latina, em nível moral, em nível específico e humano, é nula, é zero, é como se estivesse acontecendo conosco.
Por isso, ler que Gaza é o único lugar do mundo onde 100% da população passa fome (ONU), onde as pessoas são bombardeadas em filas de comida montando-lhes armadilhas mortais (650 mortos desde maio), perpetradas principalmente por uma ONG estadunidense-israelense (Fundação Humanitária de Gaza), onde planos estão sendo feitos para expulsar outros países ou exterminar qualquer vestígio de humanidade (60.000 assassinados, 2 milhões de deslocados, 135 mil mutilados), e onde interesses históricos e culturais milenares são perseguidos, e onde se busca expropriar todos os territórios e recursos naturais para todos os tipos de negócios transnacionais... é uma das maiores vergonhas que nossa espécie já enfrentou em sua história milenar.
Portanto, é ainda mais importante parar e enfrentar essa situação de um ângulo diferente, e não do ponto de vista do grande negócio da guerra e da inevitabilidade da paz armada. Caímos numa forma de imperialismo que reúne o pior do século XIX, com racismo supremacista branco e impunidade semelhante à de gangsters, como não se via nas últimas décadas. Portanto, acreditamos que esse genocídio, essa limpeza ética e essa colonização implacável não só destruíram Gaza e a Cisjordânia com sua população palestina, mas também destruíram a própria identidade moral de Israel e seu governo sionista.
Dada a atual situação mundial de níveis tão elevados de violência, ódio, vingança e impunidade, o que Mandela e Mujica têm a nos dizer hoje sobre a paz com justiça e dignidade diante da paz armada e genocida, da limpeza étnica e da guerra nuclear, onde a paz está associada à segurança e aos grandes negócios de armas, e não à dignidade e ao bem-estar dos povos, começando pelos mais pobres?
O dia 18 de julho é o Dia Internacional Nelson Mandela para a ONU desde 2009. Há quase dois meses, outro grande líder político, ex-presidente e sábio da humanidade faleceu no outro extremo do continente americano: Pepe Mujica, com quase 90 anos. Mandela morreu aos 95 anos. Ambos serviram à humanidade e à mudança da humanização social e da espécie de forma exemplar durante quase 70 anos. Outro fato curioso é que ambos os países estão localizados ao sul do hemisfério sul, quase nos mesmos paralelos: o Uruguai, entre os paralelos de 30 e 35 graus, e a África do Sul, entre os paralelos 22 e 35 graus.
Mandela foi presidente de 1994 a 1999, e Mujica, de 2010 a 2015. São dois verdadeiros “milagres da história humana” que ativistas sociais e humanistas de tal envergadura tenham se tornado presidentes de seus respectivos países graças ao voto popular. Ambos os líderes suportaram longos períodos de prisão e desumanidade, que marcaram e transformaram profundamente suas personalidades, sua reflexão política, seu apego irrestrito à democracia e ao respeito às maiorias e adversários, mesmo aqueles que se opunham às suas crenças, sua capacidade de organização, seu processo de construção coletiva de identidades políticas e de luta social em seus movimentos, seu distanciamento do ódio, da vingança e da violência, especialmente contra seus adversários – mesmo seus torturadores e carcereiros – como padrões de vida.
Foram, pois, o sofrimento, a dor, a humanização coletiva e organizacional, e os povos que os levaram à humanização de si mesmos, de seus adversários, de seus carcereiros, dos juízes e daqueles que proferiram sentenças tão injustas.
Pepe Mujica passou 11 anos na prisão como refém da ditadura militar uruguaia, em total isolamento de qualquer sentido, em condições da mais abjeta desumanidade que se possa enfrentar, com a ameaça de morte – juntamente com outros oito reféns – caso os Tupamaros continuassem com suas ações armadas. No total, Pepe Mujica passou 13 anos (1972-1985) e Mandela 27 anos na prisão. Em 1962, Mandela foi condenado a 50 anos de prisão – salvando-se da pena de morte – dos quais cumpriu 27. Primeiro, esteve na prisão de Robben Island, cercada por tubarões. Depois, em 1982 – após 18 anos – os líderes do Congresso Nacional Africano (CNA) foram transferidos para outra prisão com melhores condições, onde permaneceram até sua libertação em 1990.
Estes dois líderes viveram na clandestinidade, foram dirigentes guerrilheiros dos Tupamaros e da Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação). Embora inicialmente fossem ativistas sociais e políticos institucionais, foram “revolucionários legais” durante anos, mas enfrentaram a insularidade política institucional e a repressão e decidiram, com suas organizações, como diria Von Clausewitz, “continuar a luta política por outros meios”.
Uma primeira e imediata ponte entre Mandela e o atual genocídio de Israel contra os palestinos é que o ativista social e presidente sul-africano foi um símbolo global da luta contra o apartheid e o racismo, à qual dedicou toda a sua vida. A ONU e a grande maioria dos especialistas mundiais descreveram as ações e políticas do governo israelense contra a população palestina em Gaza e na Cisjordânia, que duraram décadas, como “apartheid”. No recente relatório da relatora especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, Francesca Albanese, intitulado Da economia da ocupação à economia do genocídio, Israel é descrito como “um regime de apartheid colonial de ocupação”. Enquanto isso, a Anistia Internacional declarou, em relação à região, que “as cruéis políticas israelenses de segregação, desapropriação e exclusão em todos os territórios sob seu controle equivalem claramente a um apartheid”.
Em seu discurso perante a ONU em 22 de junho de 1990, Mandela condenou energicamente essa política do atual governo sionista de Israel: “O próprio fato de o crime de apartheid ter sido cometido permanecerá para sempre como uma mancha indelével na história da humanidade. As gerações futuras sem dúvida se perguntarão: que erro levou ao estabelecimento deste sistema imediatamente após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos... e dos Julgamentos de Nuremberg?”
E prosseguiu, com grande atualidade para Gaza: “Estas perguntas serão feitas porque o que motivou a criação desta organização das Nações Unidas foi a determinação de toda a humanidade de nunca mais permitir que a teoria e a prática do racismo arrastassem o mundo para as garras mortais da guerra e do genocídio... Por isso, foi correto caracterizar o sistema de apartheid como um crime contra a humanidade e foi apropriado que a comunidade internacional determinasse que, como tal, deve ser abolido e seus perpetradores punidos”. E acrescentou: “Ele provou seu próprio valor brutal pelo número de crianças que assassinou, pelos órfãos, viúvas e viúvos que pode chamar de sua criação original... Nós mantemos como princípio inviolável que o racismo deve ser combatido por todos os meios à disposição da humanidade”.
E em um discurso proferido no dia anterior no Harlem, bairro negro de Nova York, instou “a comunidade internacional a continuar a campanha para isolar o regime do apartheid. O levantamento das sanções neste momento colocaria em risco o processo de erradicação total do apartheid”. Sabemos a importância do boicote internacional, estabelecido desde 1978, para a queda do regime do apartheid na África do Sul, e nos perguntamos por que a comunidade internacional – especialmente a europeia e a estadunidense – não organizou nenhum boicote contra o governo genocida israelense, como fez desde o início contra a Rússia durante sua invasão da Ucrânia em 24-02-2022.
Da mesma forma, e por outro lado, a esperança também foi um eixo importante na vida desses dois sábios políticos e sociais, e é uma mensagem que eles nos deixam para nossas lutas atuais. Sem a esperança, a luta não tem sentido, e hoje, a brutalidade política, a guerra e a corrida armamentista delirante, o genocídio e a repressão atroz e desumana de migrantes e dos mais fracos e indefesos nas nações tentaram apagar e exterminar a esperança de vida em povos, organizações e indivíduos. É por isso que nos parece ser um eixo de luta extremamente importante para reconstruir e recuperar.
Na última carta que Mujica enviou ao Papa Francisco, escreveu: “Nós, sapiens, precisamos cultivar alguma forma de esperança para dar direção à nossa existência... É como uma luz no horizonte que nos guia, que nos ajuda a caminhar no mundo que ela traça, e certamente a esperança sempre vai muito além do seu sonho do que podemos alcançar, mas não poderíamos viver sem esperança”. E acrescenta: “O que poderíamos chamar de consumismo substituiu em grande parte o sentimento de ser pelo ter, de modo que a esperança contemporânea se transforma num conjunto de prestações que se pagam sucessivamente e que acorrentam a vida, porque progredir significa comprar coisas novas, e não necessariamente desenvolver-nos para o nosso ser. Ou seja, tende a existir uma espécie de esperança doentia na atualidade”.
Finalmente, como dissemos, há outro aspecto central no combate ao cultivo da guerra, do extermínio, da insegurança, da ilegalidade, da brutalidade política sem limites e do controle cidadão descontrolado: o processo de desumanização – e infantilização social – que tem sido semeado com grande eficácia midiática e abundantemente, com mentiras e fake news, ou com ameaças, estigmatizações e punições desproporcionais e exemplares de todos os tipos, tanto individuais quanto nacionais. A própria humanização e, consequentemente, a de seus adversários, foi uma característica marcante de ambos os líderes da luta, da justiça e da paz.
Como disse Mujica: “A paz se faz com os adversários”. E Mandela, contradizendo muitos de seus próprios apoiadores e parte do CNA que tanto sofreram sob o apartheid, também defendeu que “o presidente De Klerk e seus colegas na liderança do partido no poder são pessoas íntegras”. Para Mujica, “a base da democracia é o respeito por quem pensa diferente... não há nada como a democracia. Quando eu era jovem, não pensava assim. É verdade, eu estava errado, mas hoje luto por ela. Não é a sociedade perfeita, é a melhor possível”. Parecida foi a luta de Mandela até o fim.
Estes foram dois exemplos muito claros de como não exterminar e odiar os adversários, mas integrá-los a um projeto nacional para uma nação multicultural que respeite os direitos humanos e a paz. Desde o início, o governo de Mandela estabeleceu uma prioridade e um exemplo muito importante com a criação da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação (1995-1998), que ele confiou ao arcebispo anglicano Desmond Tutu (assim como Mandela, ganhador do Prêmio Nobel da Paz) como seu presidente. Foi um processo de três anos muito doloroso, mas também muito curativo, reconciliador o máximo possível e necessário para realmente começar um novo tipo de governo igualitário, não racista, democrático e multicultural (“Sem perdão não há futuro” é um livro muito bom de Tutu sobre esse processo; Pepe Mujica falou da necessidade de “perdoar sem esquecer”).
Como complemento, outro bom exemplo foi como Mandela, recorrendo ao rúgbi – o principal esporte do apartheid e dos brancos –, conseguiu (incorporando também atletas negros à seleção nacional e viajando pelo país para alcançar as comunidades negras mais pobres) garantir a Copa do Mundo de Rúgbi na África do Sul em 1985, onde seu país chegou a conquistar seu primeiro campeonato mundial (o filme Invictus registra bem essa experiência).
Mas a chave foi o processo de integração, reaproximação e reconciliação nacional inicial e primária das raças na nova “nação arco-íris” que se pretendia construir. É claro que esses são processos muito longos – assim como a semeadura do ódio racista do apartheid o foi antes dele na África do Sul, em Israel e na Palestina –, mas essa experiência específica de Mandela nos ensina a importância da audácia de iniciá-los o mais cedo possível.
Assim, esses dois grandes líderes, e acima de tudo, seres humanos sábios e humildes construtores da democracia a partir das diferenças e dos diferentes – o completo oposto de Trump e Netanyahu – se contrapõem justamente ao ódio, à violência e à desumanidade que são os pilares das atuais políticas genocidas.
Mujica disse com razão: “Ressalto que não odeio ninguém. Não acredito em nenhuma forma de justiça humana. Qualquer forma de justiça, na minha filosofia pessoal, é uma transação com a necessidade de vingança... mas não com um machado na mão, vingadores de alguma forma. Nós tentamos, nós estamos aqui para tentar fazer e construir com vocês”. E enfatizou: “O ódio não serve para nada, apenas para tornar a tua vida amarga”.
Trump e Netanyahu, como grande parte dos seus povos, não sabem disso, e deve ser a resistência civil massiva dos cidadãos, em todas as suas formas, que os deve obrigar a considerar e aplicar suas políticas em relação aos outros. Mandela e Mujica chamaram isso de luta para nos humanizar.