17 Mai 2023
Pepe Mujica se descreve como um lutador social e político. Multidões de correligionários, jornalistas e intelectuais o visitam em sua casa, em Montevidéu, para realizar consultas. É também um assíduo visitante de Buenos Aires. O ex-presidente uruguaio chegou à capital argentina acompanhado de Lucía Topolansky. O líder recebe o jornal Página 12 na casa da ex-cônsul Lilian Alfaro, no bairro Colegiales, após um encontro com o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera.
Referência histórica da Frente Ampla, sempre tem à mão alguma palavra interiorana, que brota de sua vida no rural muito antes de ser guerrilheiro, quando aos 14 anos vendia flores para ajudar sua mãe. Mujica fala da crise do Estado-nação, dos cantos de sereia ouvidos por um eleitor desesperado e do antídoto que encontrou para o povo latino-americano: a integração.
“Argentina, Chile, Bolívia e Peru precisam se unir e estabelecer uma política comum para defender o lítio”, defende. O veterano político de esquerda, ávido leitor, há meses estuda a história da China e as ideias de Confúcio, consciente da importância geopolítica do gigante asiático.
A entrevista é de Mercedes López San Miguel, publicada por Página/12, 16-05-2023. A tradução é do Cepat.
Neste ano, há eleições na Argentina. Por que depois da má experiência de Mauricio Macri, o macrismo mais extremo e a ultradireita de Javier Milei têm chances de vencer?
Não sou sociólogo, apenas um lutador social e político. Penso que o povo argentino sofreu muito e vive uma crise de esperança muito forte. Tem gente que sonha com soluções mágicas, porque assim tem sido o comportamento humano na história. Lembremo-nos do que aconteceu na Alemanha, nos anos 1930, quando Hitler enganou uma parte importante de um povo desesperado, porque as condições impostas com o Tratado de Versalhes eram insuportáveis. O mesmo aconteceu com outros povos.
As pessoas se apaixonam por cantos de sereia. Eu sei que na vida o impossível custa um pouco mais. Sei que a Argentina avançará porque o prêmio e a desgraça é a abundância de recursos naturais. Mas o que aconteceu com a França revolucionária? Toda uma série de velhos partidos estiveram à beira do desaparecimento, chegou Emmanuel Macron e, logo a seguir, surgiram os coletes amarelos.
Amanhã mudará, porque há uma crise civilizatória na base, o Estado-nação está em crise e esta é uma mudança de época brutal que está nos sacudindo. Pedimos contas, mas este Estado tem cada vez menos poder porque apareceram poderes internacionais que são cada vez mais importantes.
E que querem um Estado menor...
Tiraram o poder do Estado e agora com a civilização digital, mais ainda. Qualquer monstro, como o Facebook ou as multinacionais, tem mais poder que o Estado. Os grandes circuitos financeiros, os bancos internacionais e os grupos comerciais lhe tiram poder. Nós cobramos de nosso Estado, ao qual passamos o serrote. Alguns acreditam que esta é a última etapa da história. Eu não. Isso vai ter mudanças institucionais.
No momento, a democracia parlamentar que conhecemos é a melhor porcaria que pudemos inventar, concordo com Churchill. Mas está cheia de falhas e não são só as instituições, somos nós, humanos, que falhamos. Nós, humanos, não somos deuses, temos que lidar com nossos defeitos. Isso vai mudar.
A sociedade do futuro tem uma crise de representação. O mundo da educação, da indústria, do direito, penso que os governos no futuro serão compostos por muitos outros governos e os governos centrais serão moderadores, decidindo o que não se deve fazer. Esse panorama ainda está muito verde.
Como alcançar uma integração regional, se cada país está lidando com tormentas internas? Lula da Silva sofreu uma tentativa de golpe de Estado. No Chile, a ultradireita ficou a cargo do processo constituinte...
Não vejo a integração. Estou pensando no que vai acontecer daqui a 25 ou 30 anos e temos que aprender a nos suportar, os de esquerda e os de direita. Temos que aprender a cooperar para poder competir com o mundo. Se começarmos a pensar em termos de direita ou esquerda, jamais vamos nos juntar. Temos que unir interesses e defendê-los. As cúpulas são exageradas. É preciso construir outras coisas lentamente.
Você concorda com a promoção de uma moeda comum?
Sim, mas a longo prazo. Antes, temos que começar a comercializar com as moedas fracas que temos e que os bancos centrais façam a arbitragem. E se não pudermos fazer isso com as moedas, fazer trocas de valor. Não depender de moedas que são do outro lado.
Temos que uniformizar as exigências de aduana que temos para os alimentos, ter os mesmos parâmetros em toda a América para facilitar. Devemos construir atividades complementares. Não vamos ter uma indústria automotiva, mas podemos fazer pastilhas de freio. Para isso, temos que garantir que eles comprem de nós e garantir que também compremos, em vez de comprar carros na Coreia.
Devemos unificar nossas universidades, não pode acontecer que um engenheiro argentino não possa ir trabalhar no Uruguai ou no Brasil. Estamos loucos! A Europa e os Estados Unidos capturam a nossa inteligência. Temos que conectar nossas energias elétricas em todos os circuitos fronteiriços, conectar nossos serviços de saúde para certos tipos de enfermidades. Temos que ter um mecanismo próprio.
A integração é uma política de longo prazo. Com um nome, um símbolo e uma data, para que todas as escolas da América Latina ensinem que acima dos países formamos uma comunidade com interesses comuns. Não temos um dia no qual celebramos a coletividade latino-americana.
No ensino tem que entrar o português e, no Brasil, o espanhol. Temos que nos entender. Se vamos a uma conferência internacional, primeiro temos que conversar entre nós e chegar a uma posição conjunta. Se um latino-americano se move para algo, temos que apoiá-lo entre todos. Não ser carneiros, que nos pisamos na mangueira! Tem coisas que são relevantes, como o lítio.
Acredito que Argentina, Chile, Bolívia e Peru têm que se unir e estabelecer uma política comum para defender o mineral sem se deixar controlar. Não importa se o governo é de esquerda ou de direita. A chave é nos defender, não competir. Juntar a pesquisa e as universidades. É preciso vontade política para isso. Em Montevidéu, temos o Banco de Desenvolvimento da América Latina e está funcionando.
Então, aposta no fortalecimento do Mercosul e da Unasul?
Claro. É preciso desenvolver os circuitos de economia complementar. Os países menores intervêm em coisas pequenas que servem para alimentar as cadeias industriais de coisas mais complexas, de países maiores. Mas, por sua vez, compramos. Nós podemos fabricar algumas coisas para Argentina e Brasil, mas depois temos que comprar deles, juntar os interesses. É preciso ganhar e ganhar.
No Uruguai, o partido de ultradireita Cabildo Abierto faz parte do governo de Luis Lacalle Pou. Ou seja, já existe uma versão local que foi lançada...
É um partido conservador nacionalista. Não é como Milei, acredito que pode se parecer mais ao bolsonarismo.
Cabildo Abierto apoiou iniciativas do Partido Nacional, como a lei de aposentadoria. Considera que representa um retrocesso de direitos?
Do ponto de vista da distribuição social, sim, é um retrocesso. Os salários não se equiparam aos de 2019. Durante os 15 anos de governo da Frente Ampla, os salários se ajustavam à inflação e um pouquinho mais, sobretudo os mais baixos. As aposentadorias são corrigidas pela evolução do índice médio. Se os salários sobem, as aposentadorias também. Havia um pretexto: a pandemia. Mas, a partir de 2022, as exportações foram brilhantes e nada foi feito.
A longo prazo, a reforma previdenciária é grave. Nós pensamos que é preciso mudá-la. O presidente usou uma frase interessante, disse que com os últimos barulhos que ocorreram para aprová-la, acrescentaram água ao leite. Nós pensamos que é necessário colocar muito leite, mas de vaca jersey. É preciso obter mais tributação, mais recursos.
No próximo ano, há eleições presidenciais no Uruguai. O presidente da Frente Ampla, Fernando Pereira, falou em recuperar a alma da Frente. Concorda? Por que apoia o candidato Yamandú Orsi?
Conheço Yamandú há pelo menos 25 anos. Era quase um garoto. A cidade de Canelones é como um pequeno resumo do Uruguai. Tem todos os problemas e possibilidades, tem pecuária, muitas chácaras, hortas, vinhedos, indústrias, balneários, bairros marginais e cidades. Durante 10 anos, ele foi secretário-geral da intendência e intendente de Canelones. Gerou capacidade de governar. Veremos qual candidato a Frente Ampla escolherá. Vamos acompanhar quem for o escolhido. Depende de nós mesmos recuperarmos o entusiasmo. Mas o impossível custa um pouco mais, é preciso continuar lutando.
O dia 27 de junho marca os 50 anos do golpe de Estado no Uruguai. Qual é a sua reflexão a partir de sua própria história?
São 50 anos em que uma sociedade busca construir seu destino e sofre os problemas de uma longa dependência. Nós somos descendentes de dois países feudais, conquistamos a independência política, mas pagamos com o preço da dependência econômica e cultural.
Estamos lutando para sermos nós mesmos. Sofremos a história. Somos países muito jovens. Há alguns meses, estou estudando a história da China, são 5.000 anos de história não escrita e 5.000 anos de história escrita. Temos que lidar com esse mundo que está vindo sobre nós.
Considera que é preciso avançar mais na Memória, Verdade e Justiça?
Sim, avançou-se pouco. Há um pacto de silêncio dos militares e também da sociedade civil. Temos que criar as condições materiais, espirituais e ideológicas para sustentar o nunca mais.
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“É preciso desenvolver a economia complementar na América Latina”. Entrevista com Pepe Mujica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU