29 Setembro 2023
Aos 88 anos, José Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai (2010-2015), está hoje aposentado da política em sua famosa chácara nos arredores de Montevidéu.
Manuel Alcántara, um dos grandes especialistas atuais em política na América Latina, entrevista este político determinado e ex-líder do movimento guerrilheiro tupamaro, que se tornou uma referência para a esquerda latino-americana e uma figura política global.
A entrevista é publicada por El Espectador, 28-09-2023. A tradução é do Cepat.
Pepe, estamos vivendo um momento histórico particular. Agora aposentado, como o senhor enxerga o contexto global?
O que abunda neste período é a incerteza. Caminhamos como se estivéssemos pisando em brasas, nada parece definitivo, tudo cambaleia. Muitas das instituições estratégicas de nossa humanidade estão se desarticulando. Dá a impressão de que não estamos em uma época de mudança, mas, sim, que estamos em uma mudança de época.
Neste contexto, qual é o principal problema que observa no Uruguai, neste momento?
É um problema que toda a América Latina tem. A política internacional não existe, é a proteção dos interesses nacionais. Precisamos de acordos para uma série de coisas, mas as decisões são tomadas pelo mundo desenvolvido e não coincidem necessariamente com as do mundo não desenvolvido.
Não existe uma política internacional que procure criar uma harmonia de caráter mundial. Este é um problema que está se transformando em um fenômeno geológico e a humanidade não tem consciência de que é preciso tomar medidas de caráter mundial recomendadas pela ciência.
Além disso, existe o tema das matérias-primas. Nosso intercâmbio é uma perda permanente de valor porque não podemos vender valor agregado e vamos correndo atrás. Esta é uma escala superior do colonialismo. Contudo, nosso tempo e a disponibilidade de recursos estão acabando e não sabemos como lidar com isso. Eu não acredito que exista uma crise ecológica, a crise é política porque há mais de 30 anos sabemos o que é preciso fazer e não conseguimos dar conta.
Como se conjuga o Uruguai do passado com o de hoje?
No Uruguai, temos uma grande dívida com os nossos avós... Nos anos 1930, tínhamos um PIB per capita como o da França e Bélgica. O Rio da Prata estava muito descolado da região. No entanto, após a guerra essa realidade mudou. A Europa, que era o nosso mercado natural, fechou-se, vendíamos cada vez mais barato e comprávamos mais caro e, por volta de 1960, começamos a nos parecer cada vez mais com a América Latina.
E a longo prazo, também vacilamos politicamente. Quando os povos estão bem e caem bruscamente, sofrem muito mais do que aqueles emergentes. É difícil para as massas entender e suportar as dificuldades de uma vida que empobrece.
Contudo, havia uma espécie de resiliência na sociedade uruguaia e, nos anos 1980, alcançou-se uma transição exemplar...
Sim, sim, voltamos. Aceitamos os defeitos da democracia e decidimos lutar dentro dela para buscar melhorá-la, sabendo que não é perfeita. Dentro da variável que podíamos escolher, era necessário cuidar e lutar para melhorá-la e isto, no momento, é um ponto comum para a maioria dos uruguaios.
De fora, surpreende o estado de espírito da classe política uruguaia e essa falta de polarização que vemos em outros países.
Trata-se de cultivar um capital comum, temos pensamentos discordantes, mas temos consciência de que formamos um “nós”. E isso deve ser muito valorizado porque a democracia, por sua natureza, precisa de relações humanas e de certo nível de respeito que seja transmitido ao resto da sociedade. A relação de cachorro e gato acaba afetando a convivência.
Se os líderes não dão o exemplo, não podem pretender que a sociedade respeite as regras do jogo, que significa ter diversidade de opiniões e ser capaz de conviver como povo. Isso não quer dizer que as diferenças não existem, e por vezes diferenças muito graves, mas é preciso buscar superá-las.
O seu período coincidiu com a ascensão e queda de certo estímulo a um tipo de integração latino-americana. Que lembranças o senhor tem?
Chávez estimulou muito esta ideia. E, hoje, nós estamos trabalhando nisso, porque é uma das formas de defender o nosso destino. Contudo, se continuarmos nos vendo como países, nunca compreenderemos. Diante do COVID, cada governo buscou fazer o que podia. Se tivéssemos nos manifestado em grupo, poderíamos ter tido mais sorte.
Temos um acúmulo de coisas em comum que devemos defender. Por exemplo, hoje, poderia ser organizada uma OPEP do lítio, todas as potências estão vindo porque aqui, na América Latina, há três países fortes (Chile, Bolívia e Argentina). Porém, se cada um segue de seu lado, vão acabar perdendo uma grande oportunidade.
O que falta é liderança. Desde Bolívar, sempre se falou em integração, mas essas ideias sempre foram promovidas por pensadores, nunca baixaram até as correntes populares. Estamos em um processo de tentar fazer com que as pessoas entendam que não é um problema intelectual, é um problema de todos.
Qual é o papel do político?
Sou um militante social desde os 14 anos, continuo sendo. Para mim, a política não é uma profissão, é o sentido que encontrei para a vida e, sendo assim, considero impossível conceber a minha vida sem ela. Essencialmente, venho almejando melhorar um pouco a sociedade onde nasci. Eu faço isso pela sociedade. Ou talvez por mim mesmo, para dar um sentido à vida.
Então, que conselho daria para alguém que queira se dedicar à política?
Que busque conhecer a si mesmo e se gosta muito de dinheiro, que jamais se envolva com a política. É preciso ter paixão pela política. A função da política é a de conjugar os inevitáveis egoísmos individuais e a existência desse todo que nos ampara, que é a sociedade. A política pode ser aprendida, mas existe uma brasinha que você a tem ou não.
Para terminar, entre seus conhecidos na política, quais são as três personalidades que destaca como bons exemplos?
Conheci Fidel, estive com Che Guevara e, claro, com Chávez. Contudo, fiquei muito impressionado com a senhora Merkel. Sou amigo íntimo de Lula, todo um personagem da história da nossa América Latina e por quem tenho muito respeito. E se tenho que destacar um terceiro, é um homem pouco conhecido, que se chamava Raúl (Raúl Sendic, pai do ex-vice-presidente uruguaio). Ele foi a única pessoa que conheci que, dez anos antes, previu que a União Soviética se despedaçaria. Esta é uma magia na alta política.
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“A política não é uma profissão, é o sentido que encontrei para a vida”. Entrevista com José Mujica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU