14 Mai 2025
"Por que e para que o novo Papa adotou o nome de Leão XIV? É porque ele quer ser o Papa da luta pela Justiça Social? Temos que recordar que, em contexto de desrespeito à dignidade humana e de superexploração da classe trabalhadora e da classe camponesa e diante da luta dos socialistas que defendiam a abolição da propriedade privada, reforçando a luta pelos direitos humanos fundamentais, a dignidade humana tem sido defendida pelo Ensinamento Social da Igreja Católica, expressa em várias encíclicas papais", escreve Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.
O novo Papa Leão XIV assumiu o ministério de bispo de Roma e primaz da comunhão universal da Igreja dia 08 de maio de 2025. De nascimento, ele é norte-americano, mas é muito mais latino-americano porque foi missionário no meio dos pobres no Peru. Por mais de vinte anos, trabalhou com comunidades camponesas e indígenas, e por amor ao povo peruano adquiriu a cidadania peruana. Após ser anunciado como Papa, escolhido pelos Cardeais no Conclave, Robert Francisco Prevost saudou o povo da Diocese de Chiclayo no Peru em espanhol e não disse nada em inglês ao povo dos Estados Unidos.
Pelo Papa Francisco, em 2014, foi nomeado bispo da Diocese de Chiclayo no norte do Peru, região de povo empobrecido, onde caminhou no meio dos pobres, ouviu, dialogou, animou lutas por justiça e solidariedade. Prevost já denunciou atrocidades do ex‑presidente Fujimori e criticou Trump na sua postura autoritária, ao deportar imigrantes. Os mais de 20 anos que viveu e atuou pastoralmente no Peru forjaram Robert Francisco Prevost como “pastor com cheiro de ovelha” que Francisco tanto gostava. Por não ser bispo príncipe e nem de palácio, Prevost foi convidado pelo Papa Francisco para, em Roma, assumir o Ministério (Dicastério) dos Bispos. Como bom mineiro, desconfio que o Papa Francisco, ao torná‑lo Cardeal, quando já sentia que suas forças físicas estavam diminuindo, quis sinalizar que Prevost era o Cardeal que ele, Francisco, queria como seu sucessor, pois se revelava ser da mesma linha de Francisco e discípulo autêntico de Jesus Cristo e do seu Evangelho.
Na sua primeira aparição como Papa na janela do Vaticano, Prevost citou duas vezes o Papa Francisco. Adotar o nome de Papa Leão XIV indica que ele vai abraçar o estilo do Papa Leão XIII, criador e pai do Ensinamento Social da Igreja, papa que publicou a histórica Encíclica Rerum Novarum (“Das Coisas Novas”), que defende os direitos da classe trabalhadora, a dignidade humana. Ao aparecer sorrindo na janela do Vaticano me fez recordar do Papa João Paulo I, o que viveu apenas 33 dias como Papa, que se apresentou sorrindo e dizendo: “Deus é Pai e é Mãe, mas é mais Mãe do que Pai...” Eloquente também o Papa Leão XIV ter dito na sua primeira saudação: "A paz de Jesus Ressuscitado, paz desarmada e desarmante, esteja com vocês". “A igreja deve construir pontes”, indireta aos fascistas Trump e Netanyaru que têm investido de forma brutal na construção de muros de segregação. “Queremos ser uma igreja sinodal, uma igreja que caminha, que sempre busca a paz...” "Igreja que acolha todos/as, principalmente os sofredores".
Por que e para que o novo Papa adotou o nome de Leão XIV? É porque ele quer ser o Papa da luta pela Justiça Social? Temos que recordar que, em contexto de desrespeito à dignidade humana e de superexploração da classe trabalhadora e da classe camponesa e diante da luta dos socialistas que defendiam a abolição da propriedade privada, reforçando a luta pelos direitos humanos fundamentais, a dignidade humana tem sido defendida pelo Ensinamento Social da Igreja Católica, expressa em várias encíclicas papais.
Nessa perspectiva, rejeitando a tese socialista da abolição da propriedade, a Rerum Novarum: sobre a condição dos operários, encíclica do Papa Leão XIII, de 15 de maio de 1891, afirma que a propriedade, inclusive a dos bens de produção, é um direito natural de todas as pessoas e não apenas de 5% da humanidade. A propriedade tem que exercer sua função social e não se destina apenas a satisfazer os interesses do proprietário. Significa, também, uma maneira de atender às necessidades de toda a sociedade.
Em um contexto no qual as Constituições de muitos países garantiam direito absoluto à propriedade, como a Constituição Imperial Brasileira de 1824, na Rerum Novarum, o Papa Leão XIII advogou que toda propriedade tem que cumprir sua função social. Na época e até em nossos dias, isso é algo que parece revolucionário, pois, injustamente, na prática o direito à propriedade segue sendo garantido apenas para uma minoria e sem cumprir nenhuma função.
Desde 1891 os papas (re)afirmam Ensinamento Social semelhante em várias encíclicas: a Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI, de 1931 (escrita justamente em celebração ao 40º aniversário da Rerum Novarum); a Mater et Magistra (Mãe e Mestra), do Papa João XXIII, de 1961; a Gaudium et Spes (Alegrias e Esperanças), documento do Concílio Vaticano II, de 1965, e a Populorum Progressio (Do Progresso dos Povos), do Papa Paulo VI, de 1967, as quais afirmam que o conjunto de bens da terra destina-se, antes de mais nada, a garantir a todas as pessoas um decente teor de vida pelo conjunto de condições sociais que permitam e favoreçam o desenvolvimento integral de sua personalidade. A propriedade é um direito que comporta obrigações sociais.
O Papa Francisco na carta Encíclica Laudato Si’, de 24 de maio de 2015, reafirma o destino comum dos bens como um princípio inarredável do Ensinamento Social da Igreja. Diz Francisco: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada. [...] Sobre toda a propriedade particular pesa sempre uma hipoteca social, para que os bens sirvam ao destino geral que Deus lhes deu” (PAPA FRANCISCO, 2015: n. 93).
O Papa Francisco transcreve na Encíclica Laudato Si’ o que disse os bispos do Paraguai na Carta Pastoral El campesino paraguayo y la tierra, de 1983: “Cada camponês tem direito natural de possuir um lote razoável de terra, onde possa gozar de segurança existencial. Este direito deve ser de tal forma garantido que o seu exercício não seja ilusório, mas real. Isto significa que, além do título de propriedade, o camponês deve contar com meios de formação técnica, empréstimos, seguros e acesso ao mercado” (PAPA FRANCISCO, 2015: n. 94).
Está na Constituição brasileira de 1988 a exigência de cumprimento da função social da propriedade fundiária, mas o Estado não cumpre a Constituição neste e em nenhum dos direitos sociais constitucionais. Pior, dribla o tempo todo as leis que garantem os direitos sociais. Por isso, a luta pela Justiça Social precisa seguir de forma firme.
Conforme escreveu o padre Alfredo Gonçalves: "O nome do pontífice eleito obedece a critérios pastorais precisos. Enquanto Francisco nos remetia ao pobre de Assis, Leão XIV nos remete a Leão XIII. Leão XIII, por sua vez, foi o Papa que teve a coragem de publicar a Carta Encíclica Rerum Novarum, em 1891, que tinha como subtítulo 'a condição dos operários'. Carta que se tornou o primeiro documento da Doutrina Social da Igreja (DSI). Cabe lembrar que esse subtítulo havia sido publicado em um livro do companheiro de Karl Marx, Friedrich Engels - A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra - a condição dos operários nas fábricas da Inglaterra."
O depauperamento moral de mulheres e crianças, resultante da exploração de seu trabalho pelo capital, foi descrito por vários escritores e com toda a precisão necessária por Engels, aos 25 anos, na sua obra sobre a condição/situação dos operários. Em O Capital, Marx cita vários relatórios de inspetores ingleses de trabalho. Em um relatório se diz: “O fato é que, antes da lei de 1833, crianças e adolescentes de ambos os sexos eram postos a trabalhar toda a noite, o dia inteiro, às vezes, noite e dia segundo a vontade do empregador” (MARX, 1982: 99).
Na época em que a classe trabalhadora reivindicava diminuição da jornada de trabalho para 18 horas diárias, profundamente incomodado e indignado com a miséria imposta à classe trabalhadora inglesa, para sustentar que na sociedade capitalista o motor da história é a luta de classes, Marx cita também M. Broughton, juiz de paz, que declarou: “Na parte da população urbana empregada nas fábricas de renda, reinam uma miséria e uma carência desconhecidas pelo resto do mundo civilizado [...] às duas, três, quatro horas da manhã, crianças de nove e dez anos são arrancadas de seus leitos miseráveis e forçadas a trabalhar até dez, onze, doze horas da noite para ganhar simplesmente o necessário para a subsistência. Enquanto elas trabalham, seus membros definham, seu talhe diminui, sua fisionomia toma um ar abobalhado, todo o seu ser cai num torpor tal que seu aspecto as assusta” (BROUGHTON apud MARX, 1982: 99).
Da oficina artesanal para a fábrica de manufatura o operário é transformado de ferramenta a máquina. Em um trabalho sem fim e extenuante, imediatamente, o operário não mais produz diretamente a mercadoria, mas apenas move a máquina que produz a mercadoria. “Na manufatura, os operários são membros de um mecanismo vivo; na fábrica, são apenas complementos vivos de um mecanismo morto que existe independentemente dele” (MARX, 1982: 113). No volume I de O Capital, Marx cita Engels em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, de 1845: “A lamentável rotina de um trabalho sem fim, onde o mesmo processo mecânico renova-se sem cessar, assemelha-se ao trabalho de Sísifo; o peso do trabalho cai sempre sobre o operário esgotado” (ENGELS apud MARX, 1982: 113).
Este contexto de exploração da dignidade humana no mundo do trabalho da primeira revolução industrial moveu o Papa Leão XIII a defender os direitos dos trabalhadores. Agora, ao assumir o nome de Leão XIV, o novo Papa se coloca na esteira dos papas que se preocuparam com a questão social e assumiram a luta pela Justiça Social.
O Papa Leão XIV disse no seu primeiro Encontro com os Cardeais após ser escolhido: “Escolhi adotar o nome de Leão XIV. As razões são várias, mas a principal é que o Papa Leão XIII, com a histórica Encíclica Rerum Novarum, abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial e hoje a Igreja oferece a todos o seu patrimônio de doutrina social para responder a mais uma revolução industrial e ao desenvolvimento da inteligência artificial, que trazem novos desafios na defesa da dignidade humana, da justiça e do trabalho” (Discurso do Papa Leão XIV ao colégio dos Cardeais, dia 10/05/2025).
Avançando em barbárie, o sistema capitalista está mostrando suas garras brutais ao pisotear a natureza com toda sua biodiversidade e violentando cada vez mais de forma atroz a dignidade humana. Ao concentrar renda, riqueza e poder em apenas 5% da população e impor exclusão social, pobreza e fome para 95%, este sistema fomenta o fascismo e empurra as massas desesperadas para as propostas religiosas espiritualizantes, desencarnadoras da fé e negadoras da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Tendo como motor o lucro e a acumulação de capital, gigantescas desigualdades sociais e migrações compulsórias estão sendo produzidas por esta “economia de morte”, como dizia o Papa Francisco. Consequência: desemprego, subemprego, trabalho informal e/ou nos moldes da escravidão contemporânea.
Ao trabalhar como missionário no norte do Peru em meio aos mais pobres, Leão XIV experimentou essas contradições e descobriu que sem Justiça Social não teremos paz, nem respeito à dignidade humana e nem à dignidade da natureza. Ecologia Integral não se constrói sem Justiça Social. “Buscando inspiração em Leão XIII, pastor dos operários e da Doutrina Social da Igreja, e dando seguimento a Francisco, pastor dos pobres e migrantes... seja firme na defesa dos direitos humanos e na promoção da dignidade humana”, propomos em sintonia com o escrito pelo padre Alfredo Gonçalves.
O Papa Leão XIV disse em seu primeiro discurso aos Cardeais: “Vamos reunir a valiosa herança do Papa Francisco e retomar o caminho proposto pelo Concílio Vaticano II”. Esperamos que o Papa Francisco, Leão XIII e Jesus Cristo sigam vivos no Papa Leão XIV e em nós na luta sempre pelo que justo e ético. Por isso, intuo que o Papa Leão XIV entrará para a história como o Papa da luta pela Justiça Social também colocando em prática a Opção pelos Pobres, que passa necessariamente pelos grandes desafios a serem por ele enfrentados, apontados sabiamente por Leonardo Boff: “desocidentalizar e despatriarcalizar a Igreja Católica face à nova fase da humanidade.”
Enfim, a nossa esperança é que o Papa Leão XIV valorize o legado do Papa Francisco, os avanços conquistados em seu pontificado: compromisso com os pobres, ecologia integral, sinodalidade, cultura do encontro..., com Evangelho para além dos templos. E siga avançando no que se refere à maior participação de todas as pessoas, inclusive nas diversas posições de liderança, especialmente das mulheres, na construção de uma Igreja fraterna, igualitária, conforme as exigências do Evangelho de Jesus de Nazaré.
MARX, Karl. O Capital. Edição resumida. 7ª edição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
MOREIRA, Gilvander Luís. Laudato si´ e as lutas dos movimentos socioambientais. In: MURAD, Afonso; TAVARES, Sinivaldo Silva (Org.). Cuidar da Casa Comum: chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si´. São Paulo: Paulinas, p. 197-217, 2016a.
Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, de alguma forma VERSAM sobre o assunto tratado, acima.
1 - Paz e Bem #2363 - Habemus papam (Emerson Sbardelotti) - 12.Mai.25
2 - PAPA FRANCISCO E O EVANGELHO DE JESUS CRISTO, SEU LEGADO E DESAFIOS NOSSOS. Marcelo Barros/Gilvander
3 - PAPA FRANCISCO, OUTRO FRANCISCO DE ASSIS, PEREGRINO DE ESPERANÇA - Por frei Gilvander Moreira
4 - 7a Live: A "Fratelli Tutti" do Papa Francisco e o papel dos Cristãos na Política: Fora, Bolsonaro?