“Não temos na Igreja a cultura de prestar contas”. Entrevista com Hans Zollner

Foto: Thiago Matos | Unsplash

10 Janeiro 2024

O jesuíta e psicoterapeuta Hans Zollner criou o centro de proteção aos menores em Roma e foi membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores.

Em abril, demitiu-se da Comissão em protesto. Nesta entrevista não mede palavras e explica o que não está funcionando no Vaticano.

Hans Zollner. (Foto: Instituto de Antropologia | Pontifícia Universidade Gregoriana)

A entrevista com Hans Zollner é editada por Christoph Fleischmann e Michael Schrom, publicada por Publik-Forum, 07-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Senhor Zollner, o senhor é um especialista de renome internacional no campo da prevenção. Quando lidou pela primeira vez com os abusos na Igreja?

De forma intensiva e sistemática desde 2002, após as revelações do Boston Globe. Contudo, como psicólogo e psicoterapeuta, já tinha abordado o tema da violência sexual e da pedofilia durante os meus estudos em Roma. Durante um estágio em Dublin, no final da década de 1990, tive a oportunidade de observar os efeitos dos abusos sexuais sobre as pessoas atingidas e sobre a Igreja. No entanto, como quase todo mundo na época, ainda pensava que se tratasse de um problema anglo-saxônico.

O que acabou se revelando uma ilusão.

Sim. Contudo, o nosso provincial da época, Stefan Dartmann, a partir de 2004 falava de forma bastante enigmática dentro da Província da Ordem do fato que ainda teríamos que lidar com essa questão. Quando fiquei sabendo dos casos do Canisius College em 2010, entendi o que ele queria dizer.

Qual foi sua primeira reação quando ouviu falar disso?

A minha ideia da ordem nunca foi tão idealista a ponto de acreditar que a Companhia de Jesus fosse um conjunto de santos. Já sabíamos que havia jesuítas entre os autores dos crimes na Irlanda e nos Estados Unidos. Contudo, saber que os coirmãos haviam destruído a vida de crianças foi um choque que fica marcado. Não consigo superá-lo. É um enorme ponto de interrogação sobre a nossa formação e o nosso estilo de vida.

O senhor depois fundou o Centro para a Proteção da Infância em Roma. Como nasceu e qual era o seu objetivo?

Como membro do grupo de trabalho científico do Ministério Federal da Educação e da Pesquisa para a Mesa Redonda sobre o Combate à Violência Sexual, me encontrei com o Professor Jörg Fegert, Diretor Médico de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Universidade de Ulm. Apresentou um programa de prevenção em e-learning para a formação dos professores. Achei-o muito convincente e perguntei-lhe se poderia adaptá-lo e utilizá-lo para o contexto específico da Igreja Católica em todo o mundo, especialmente nos lugares onde não há especialistas treinados. Disso nasceu a ideia de criar um centro próprio dentro do Centro de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, que eu dirigia na época. Ao final da fase piloto de três anos, estabilizamos o trabalho.

O que mudou desde então?

O foco está na prevenção. Não lidamos nem com investigações forenses nem com reelaboração jurídica. Ao longo dos anos, porém, tornou-se cada vez mais claro para mim que uma prevenção eficaz só é possível se houver uma conscientização suficiente dos crimes do passado ​​e dos sofrimentos das pessoas afetadas. E que devemos deixar-nos acompanhar e criticar pelas pessoas atingidas no desenvolvimento de programas de prevenção.

Como é possível que a Igreja Católica, que está organizada da mesma forma em todo o mundo, quando se fala de abusos diga que é apenas um problema dessa ou daquela igreja local?

A Igreja Católica não é um bloco monolítico, a ideia de um governo central monárquico não é historicamente sustentável, nem funciona na realidade. O Papa não tem um telefone vermelho com o qual pode transmitir as suas instruções de cima para baixo a todos os cardeais, bispos, sacerdotes e diretores para colocá-los na linha. Mesmo no vértice da Igreja Católica não existe uma orientação comum.

Ao contrário de outras igrejas, na Igreja Católica a hierarquia ainda tem muito a dizer.

É verdade e, de um certo ponto de vista, isso também é útil. Muitas coisas aconteceram em relação ao nosso tema, já com Bento XVI e ainda mais com Francisco. A lei tornou-se muito mais rigorosa desde 2002. O nosso problema não é que não existam normas ou leis adequadas. O problema é que a liderança não quer ou é incapaz de aplicar as suas próprias normas e garantir a sua sustentabilidade.

De acordo com o decreto “Vos estis lux mundi”, os bispos que geriram negligentemente as acusações de abuso podem ser considerados responsáveis. Houve procedimentos, nesse interim, para saber como funciona?

Não. Esse é justamente o problema. Em alguns casos, os bispos foram convidados a renunciar e o fizeram. Mas não sabemos por que esses processos foram iniciados, como se desenvolveram e porque chegaram ao resultado que alcançaram. Também não sabemos porque um resultado foi alcançado num caso e noutro, outro resultado.

Os procedimentos de direito canônico não deveriam ser finalmente transparentes e, como o direito secular, dar às vítimas a possibilidade de participar?

Eu continuo pedindo isso. E não só eu.

Por que essas propostas não são implementadas?

Acredito que algumas pessoas não querem isso, porque dessa forma teriam que trabalhar de modo completamente diferente. As razões de cada caso deveriam ser tornadas públicas, na medida em que os respectivos direitos das pessoas o permitam. Penso que tem a ver com a mentalidade.

Quem são aqueles que bloqueiam e onde estão?

Acho que é a resistência passiva do aparato. Como ninguém tem a energia nem meios para intervir, as pessoas trabalham como sempre fizeram: um papel é empurrado para baixo, arquivado em algum lugar, não é encaminhado às autoridades competentes... Os responsáveis ​​devem perceber que estão prejudicando a Igreja se não enfrentam o problema.

Podemos ter o desejo e a ideia de que toda as energias são gastas para enfrentar a crise dos abusos. No entanto, na Cúria Romana, que é um reflexo da Igreja universal, isso não está no topo da agenda. Em dois terços dos países, a violência sexual – tanto na Igreja como na sociedade – não tem um peso importante no debate público. Ainda ouve-se dizer que os abusos sexuais são um problema dos países anglo-saxões. Mesmo que todos saibam que não é verdade e que toda igreja local tem que enfrentar o problema.

Como é que uma instituição que venera como seu fundador uma vítima torturada pela justiça e recorda o seu sofrimento e dor no seu culto, trata as vítimas de abusos sexuais com tão pouca empatia?

Não consigo explicar isso racionalmente. Pode-se supor que a ideia profundamente enraizada de que a Igreja e os seus colaboradores sejam bons, ou até mesmo perfeitos, desempenha um papel em tudo isso. Se os colaboradores internalizam essa imagem de si mesmos, a mera existência de pessoas afetadas por abusos é um exagero para eles. Eles, portanto, veem-se obrigados a olhar-se num espelho no qual absolutamente não querem se olhar.

No livro “Wandel durch Bruch” (mudança através da ruptura), o senhor escreve que “nem leis mais rigorosas nem medidas educacionais em todos os níveis são suficientes para obter uma efetiva mudança de atitude e comportamento”. A Igreja é um caso perdido?

Quero dizer que mesmo novas leis não significam que tudo ficará bem amanhã. Mesmo que alguém tenha passado por um programa de formação, não significa que se comportará de maneira adequada no futuro. Precisamos de muita paciência, pois estamos falando de atitudes e comportamentos muito mais profundos do que a simples compreensão cognitiva. Trata-se de mentalidades que podem mudar, mas isso requer uma concepção diferente da educação que alcance todos os níveis do grau de humanidade.

Falou-se que foi um grande avanço o fato de Bento XVI ter posto o tema dos abusos dentro da Congregação para a Doutrina da Fé. Como o senhor interpreta o fato de o novo prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé ter dito que não quer tratar desse tema?

O fato de Bento, como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, ter retirado esse tema das responsabilidades fragmentadas e o tenha confiado ao Dicastério para a Doutrina da Fé, eu o considero um progresso. O fato de as conferências episcopais terem de referir a Roma os casos de abuso foi um passo igualmente importante para alcançar uma espécie de padrão na gestão dos abusos. O novo desenvolvimento não está claro para mim.

Pela carta do Papa e pelas primeiras declarações do novo prefeito Vítor Fernández fica claro que ele não tratará dessas questões.

A gestão dos casos de abuso dominou claramente o trabalho da Congregação para a Doutrina da Fé. Até agora o dicastério tem se reunido semanalmente para discutir casos. Fernández provavelmente disse: “Não quero ocupar-me disso”, e o Papa concordou. No entanto, uma vez que a seção que trata dos casos de abuso permanece sob o guarda-chuva do Dicastério para a Doutrina da Fé, pode-se presumir que Fernandez, que também é o chefe dessa seção, assine as decisões.

Como ainda não foi explicado, só podemos especular sobre como funcionará.

A Congregação para a Doutrina da Fé colabora com a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores?

Não que eu saiba.

Foi por isso que o senhor se demitiu da Comissão para a Tutela dos Menores em abril?

Foi um dos motivos. Estou envolvido desde a sua fundação em 2014, mas não tinha entendido do que tinha que tratar. Está sob o guarda-chuva da Congregação para a Doutrina da Fé, mas é independente e se reporta exclusivamente ao Papa como órgão consultivo.

É como se dissessem: temos uma comissão de especialistas, da qual ficamos felizes de fazer referência externamente, mas não queremos que mude as coisas internamente. É possível ter essa impressão, mas não corresponde totalmente à realidade. A Comissão organizou numerosos congressos, workshops e cursos de formação. Também vieram da Comissão os pedidos de melhorias nos procedimentos ou de encontros pessoais entre as pessoas interessadas ​​e o Papa. Acima de tudo, porém, a sua própria existência deixou claro a todos que o problema existe, que não pode ser negado e que está no topo da Igreja. Mas isso não significa que a Comissão tenha um grande peso institucional. O que é incompreensível numa perspectiva centro-europeia ou anglo-saxônica é que não surjam questões estruturais ou sistêmicas para além do monitoramento de casos individuais e que as respectivas propostas de soluções não sejam implementadas de modo coerente. Eu também não consigo explicar isso.

A sua renúncia da Comissão para a Tutela dos Menores foi manchete em todo o mundo. O chefe da Comissão, Cardeal O'Malley, de Boston, disse estar surpreso com a sua decisão. Vocês não conversaram?

Fiquei surpreso por ele dizer estar surpreso. Enviei-lhe quatro e-mails entre maio e outubro de 2022. Neles contei-lhe parte do que depois tornei público. Eu esperava que ele me falasse sobre esses pontos durante uma de suas visitas a Roma. Mas nem recebi uma confirmação de recebimento dos meus e-mails. Então expressei minhas percepções e levantei minhas preocupações. Depois fui até o Papa e apresentei a minha demissão. É surpreendente que, uma semana depois da minha renúncia, o cardeal tenha falado de “dificuldades de crescimento” na comissão. Então ele deve ter-se dado conta de algo que não havia percebido antes.

A sua demissão pode ser interpretada como se o senhor não quisesse mais exercer uma função de folha de figueira?

Não. Eu não me sentia nem me via como uma folha de figueira. Mas percebi que nos últimos dois anos haviam se desenvolvido e intensificado coisas que não me permitiam mais ir em frente com a consciência tranquila.

Concretamente o quê?

Em primeiro lugar, o que está fazendo a Comissão? Isso tornou-se ainda menos claro agora que a atual liderança está tentando tratar de questões para as quais, na minha opinião, a Comissão não é competente, nem em termos de pessoal nem de estrutura. Se a Comissão deve assumir uma função de monitoramento da implementação da "Vos estis lux mundi", necessitaria de centenas de especialistas altamente competentes, formados e dedicados apenas a esse trabalho - canonistas, advogados especializados, pessoas capazes de avaliar as circunstâncias culturais. Ou, outro exemplo: a comissão deveria avaliar as diretrizes para tratar os casos de abuso que as conferências episcopais redigiram e fornecer um feedback sobre elas.

Anteriormente essa tarefa cabia à Congregação para a Doutrina da Fé. Agora acontece que quem dá o feedback é alguém da Comissão para a Tutela dos Menores que não tem nenhuma competência em matéria de direito canônico e não conhece nem a língua nem o contexto cultural da conferência episcopal em questão. Pode-se imaginar que há algo nisso que permite que os abusos continuem...

Então a Comissão para a Tutela dos Menores é em parte responsável disso. Além disso, a colaboração entre a Congregação para a Doutrina da Fé e a Comissão para a Tutela dos Menores não foi esclarecida. Parte-se do fato de que dois cardeais são responsáveis ​​numa só casa. O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Fernández, e o chefe da Comissão para a Tutela dos Menores, o Cardeal O'Malley. Você consegue imaginar um ministério em Berlim com dois ministros?

Terceiro ponto: novas pessoas foram nomeadas sem comunicar quais as funções que terão de assumir. Com que competências ou responsabilidades? E quem as paga? Até recentemente, a Comissão para a Tutela de Menores só dispunha de um mini orçamento suficiente apenas para alguns funcionários, para a organização de alguns congressos e para cobrir as despesas de viagem.

O novo secretário, Andrew Small, é considerado um hábil arrecadador de fundos e certamente arrecadou mais dinheiro.

Andrew Small foi nomeado como secretário pro tempore – e ainda é – principalmente por ser um excelente angariador de fundos, embora inicialmente tenha admitido que não tinha nenhuma ideia de tutela. Muitos estão convencidos de que ele nunca falou com vítimas de abusos. Conseguiu convencer duas conferências episcopais a conceder fundos à comissão para projetos. Ele também recebeu dinheiro de uma fundação de famílias estadunidense. Isso é de domínio público.

No entanto, receio que esses financiamentos não sejam muito sustentáveis.

Ter mais dinheiro não é algo ruim, concorda?

Sim, se for utilizado para os fins declarados e se o fluxo de dinheiro for claro. Depois de um artigo publicado na agência de notícias AP no final de maio, foi levantada a questão: como conciliar o fato de Andrew Small ainda ser CEO de duas empresas de investimento nos Estados Unidos enquanto trabalha em tempo integral junto à Comissão para a Tutela dos Menores em Roma? Qual é o fluxo de dinheiro entre as duas instituições?

Como o senhor acha que a Comissão para a Tutela dos Menores deveria ser organizada e instituída?

Penso que o mais importante seria se dirigir ativamente às vítimas. O que essas pessoas vivenciaram? O que esperam da Igreja? Mesmo que se dedicasse apenas a essas perguntas, a comissão já estaria totalmente ocupada.

Uma vez lhe foi oferecida a direção.

Dois anos e meio atrás, a então secretário foi demitido por motivos que desconheço. O Cardeal O'Malley perguntou-me se eu queria assumir o cargo. Eu o teria feito provisoriamente e teria gostado que uma mulher assumisse o cargo e que a comissão tivesse sede no Dicastério para os Leigos e a Família. A minha proposta foi rejeitada. Tem-se a impressão de que as decisões sobre os casos de abuso são tomadas de forma totalmente arbitrária.

Um cargo separado foi criado no Vaticano para o bispo argentino Gustavo Zanchetta, agora condenado, depois que as acusações vieram à tona em 2017. Isso não é devastador?

Certo. Na Igreja não existe uma cultura da responsabilidade, do dever de prestar contas. O lado positivo do Papa é que ele reconheceu alguns erros e pediu desculpas publicamente. A viagem ao Chile em 2019 é um bom exemplo. Primeiro ele ficou irritado e exigiu provas - e quando foram apresentadas ele pediu desculpas publicamente. Mas repito: não temos órgãos ou procedimentos que exijam automaticamente prestar conta dessas coisas.

Após a viagem ao Chile, toda uma conferência de bispos apresentou as suas demissões. Foi um ponto de virada?

Eu não o definiria um ponto de virada, mas sim um desenvolvimento. Um desenvolvimento que continua. Mas a curva de aprendizado é muito achatada!

Também o caso do padre jesuíta Mario Rupnik é espetacular. O Papa ordenou unir os seus procedimentos canônicos. O fato de o Papa intervir nesses procedimentos não seria uma sugestão para os dicastérios subordinados sobre qual deveria ser o resultado?

Na melhor das hipóteses, poderá acontecer que a fusão traga maior transparência e ilumine a escuridão. Mas provavelmente não é esse o caso. Não posso dizer nada sobre isso porque não sei quem tenha organizado o quê.

A excomunhão foi anulada. Os demais procedimentos foram interrompidos ​​por causa da prescrição.

Se Rupnik abusou de mulheres adultas, o Dicastério para a Doutrina da Fé não tem nada a ver com o procedimento. Então a responsabilidade cabe à Congregação para o Clero. Lá, o abuso de adultos é considerado um crime contra o voto de celibato. E há um prazo de prescrição de três anos. O nível da pena é, portanto, completamente diferente. No entanto, se fosse provado que Rupnik abusou de uma mulher antes dos 18 anos, o procedimento teria que passar para o Dicastério para a Doutrina da Fé. Nesses casos, aplica-se um prazo de prescrição de 20 anos, que pode ser anulada em determinadas circunstâncias. No entanto, isso não significa automaticamente que o padre seja demitido do sacerdócio.

Rupnik ainda é padre?

Ele foi expulso da ordem dos jesuítas. Mas aparentemente encontrou um bispo na Croácia e provavelmente será incardinado lá como padre secular. Também quatro outros jesuítas do seu círculo deixaram a ordem.

Ele deixou a ordem voluntariamente?

Não. Ele foi afastado contra a sua vontade por comprovada insubordinação. Porque não respeitou as condições. Porque não se apresentou na comunidade que lhe foi designada. Essa é a razão formal. Deve saber que, quando se trata de abuso de mulheres adultas, o Provincial não tem outra opção senão iniciar um procedimento contra ele em colaboração com a Congregação para o Clero e os Religiosos. A demissão da Ordem deve ser acordada com a Congregação para os Religiosos.

Em meados de dezembro, o Geral Sosa disse que todos têm direito à privacidade e que não eram envolvidos menores. Não parecia que a Ordem quisesse se livrar de Rupnik.

Acho que o geral fez algumas declarações muito infelizes, mas o superior responsável por Roma, Johan Verschueren, deu continuidade ao processo.

Como é possível que a excomunhão tenha sido anulada?

Uma excomunhão não pode ser proferida ou anulada pelo Geral da Ordem. Não tem a autoridade para fazer isso. Não sei quem anulou a excomunhão. O Papa diz que não foi ele. Outros dizem que deve ter sido ele. Não estou em posição de julgar.

O caso Rupnik está agora encerrado para os Jesuítas ou ainda está sendo tratado dentro da ordem?

Quanto aos membros da ordem, o caso está encerrado. Porém, sei de pessoas envolvidas que aceitaram a oferta do pedido de suporte e reelaboração.

Uma freira também entrou em contato com o senhor, mas não recebeu resposta.

Muitas vezes já comentei esse fato. Recebi um e-mail com uma carta anexa que chegou ao endereço do Instituto no dia 15 de junho de 2022. Os destinatários do e-mail estão listados: o Geral dos Jesuítas e outras 17 pessoas em cc. A carta começa com uma saudação ao Geral. Da perspectiva atual, eu responderia à mulher, simplesmente para assinalar: li, entendi e sinto muito.

Mas o fato de o e-mail ter sido endereçado a pessoas de níveis superiores na hierarquia e o fato de a pessoa na carta não só ter descrito o abuso que lhe tinha acontecido, mas também mencionar toda a história de 1998 em diante e escrever que agora está em curso um procedimento canônico contra Rupnik me levaram a considerar a carta como pura informação. Naquele momento pensei: o processo está em curso. Que contribuição posso dar? Repito: do ponto de vista de hoje, responderia. Mas ainda hoje não sei o que mais eu poderia ter feito.

Os jesuítas assumem um empenho adicional de obediência ao Papa. Isso não é um peso, especialmente quando se trata de enfrentar os abusos?

Por obediência entendo fazer o que me é pedido fazer da melhor maneira possível. E não de uma forma que eu não tenha a minha opinião. Se percebo que algo não está funcionando ou precisa ser mudado, digo isso em alto e bom som. Foi por isso que fui ter com o Papa, por exemplo, e disse-lhe porque não posso mais trabalhar na Comissão para a Tutela dos Menores.

Quando o senhor escreve artigos, por exemplo no livro “Bruch als Wandel”, deve apresentá-los com antecedência?

Sempre discuto as publicações com pessoas competentes, no sentido de uma consulta colegiada.

Claro que há pessoas que pensam que prejudico a Igreja, que sou implacável ou que não tenho o senso da misericórdia. Mas, em geral, ouço isso indiretamente. Quase ninguém me diz isso abertamente. Ao contrário. Também recebo muita aprovação e apoio, até mesmo de líderes da igreja.

Quem autorizou esta entrevista?

Eu.

Na Alemanha, os bispos mais jovens estão claramente tomando distâncias dos seus antecessores que encobriram os abusos. O senhor vê isso como um sinal de mudança autêntica? Ou os mais jovens só querem aparecer melhor em público?

Há uma mudança de mentalidade, mas está acontecendo muito lentamente e não de forma generalizada.

É uma ilusão acreditar que a Igreja Católica esteja fazendo tudo o que pode em todos os 190 países onde está representada para ajudar as vítimas e pôr fim aos abusos. Fiquei muito satisfeito que as Conferências Episcopais de França e de Portugal, por exemplo, tenham se ativado antes que os grandes escândalos viessem à luz. E elas deram passos na direção certa, mesmo que não tenham sido tão coerentes quanto deveriam. Na África, na Bolívia ou no Paraguai, até recentemente não era possível abordar o tema da violência sexual, tanto na sociedade como na Igreja. Quando sou convidado para dar palestras nesses países, percebo que está em curso uma mudança de mentalidade.

Isso me dá esperança. A mudança geracional também não deve ser subestimada. A velha geração, que foi socializada numa determinada situação eclesial, tem muita dificuldade em fazer desse tema uma questão central.

A demissão de um bispo poderia, portanto, ser útil.

Não só poderia ser útil, mas também seria apropriada, como sinal e símbolo: como máximo representante da Igreja nessa diocese, assumo a responsabilidade por todo o mal e o sofrimento que aconteceram, mesmo que não seja pessoalmente responsável ou apenas marginalmente. O bispo aceita de bom grado tudo o que a diocese coloca aos seus pés e decide a favor da diocese. Então deveria também dizer, em relação aos abusos: eu me coloco como garantia porque represento essa instituição.

O senhor já pensou em abandonar a ordem ou o presbitério?

Não. Principalmente porque vejo mudanças positivas e trabalho com pessoas que realmente se empenham em garantir uma educação adequada para gerações de estudantes. Regressarão aos seus países e, ao longo dos anos, aumentarão significativamente a conscientização e a competência da Igreja sobre esses temas. Posso também dizer que, em relação à minha demissão, muitas vítimas em todo o mundo me escreveram. Elas me disseram: “Respeitamos a sua decisão, mas por favor continue”. Portanto, considero que é minha responsabilidade continuar.

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