03 Outubro 2023
"Aparentemente, abriu-se um caminho, mas parou-se no meio da estrada, em torno de “mínimos” que nem sequer garantem que os abusos de vários tipos não continuem a acontecer. O próprio Papa parece ter pouco a dizer de novo sobre a matéria", escreve Manuel Pinto, em artigo publicado por 7Margens, 27-09-2023.
O caso Rupnik e os “estragos” que provocou e continua a provocar ultrapassaram as fronteiras da Comunidade Loyola, tornando-se um caso paradigmático, de efeitos diretos e indiretos nefastos na Igreja Católica e na sociedade.
A projeção mundial que este padre granjeou, decorrente dos seus trabalhos artísticos, dos livros de teologia e espiritualidade e dos seus dotes de sedução de pessoas, amplificou o impacto dos abusos e o impacto do encobrimento dos abusos.
Dado o prestígio de Rupnik, não só como artista, mas também como teólogo, conferencista, orientador de retiros e exercícios espirituais, incluindo a convite do Papa, a denúncia dos seus abusos escabrosos transformou-o no “elefante” no meio da instituição eclesiástica.
Apesar de o escândalo só ter vindo a público a partir de 1 de dezembro de 2022, há largos anos que a situação era do conhecimento dos Jesuítas e da Cúria Romana, Papa incluído – por iniciativa de algumas das vítimas. Houve medidas especiais de acompanhamento e de vigilância? Qual foi a reação? Encobrimento e silêncio. As vítimas que ousaram expor as feridas e o sofrimento foram deixadas entregues a si mesmas. A “cultura” foi bem expressa pelo geral dos Jesuítas, na primeira reação a interpelações do 7MARGENS, aquando da visita que fez aos jesuítas portugueses: “Há que fazer declarações públicas quando é público; quando não é público, não há nada para o fazer e isso não significa ocultar. Nós não ocultamos nada”.
E foi assim, a conta-gotas, pressionada pelos casos que iam sendo divulgados, que a instituição lá foi respondendo, até chegar a apresentar um quadro cronológico que recuava (apenas) até 2018. Mas ao menos a Companhia, pressionada ou não, acabou por reagir. Ao contrário, a Cúria Romana e nomeadamente o Dicastério para a Doutrina da Fé têm-se caraterizado por uma total opacidade, criando a ideia de que para uns há tolerância zero e para outros há… tolerância.
É preciso dizer que, especialmente desde o caso das investigações do jornal Boston Globe, dos EUA, sobre os encobrimentos sistemáticos de abusos, essa tem sido uma constante: silencia-se e encobre-se até os média trazerem a público a informação. Ou seja, não se aprendeu nada. O argumento de que outrora o encobrimento era a forma habitual de lidar com os casos continua, no fundo, a ser a cultura dos tempos atuais: não se age, reage-se, o que significa ir sempre a reboque dos acontecimentos.
O caso Rupnik levanta, entretanto, outras problemáticas que, de um modo geral, a Igreja Católica tem escamoteado e que se relacionam com o abuso de pessoas adultas, especialmente mulheres e, em particular religiosas.
Por um lado, o atual quadro normativo eclesiástico fala sempre, a propósito de vítimas de abusos, de “crianças e outras pessoas vulneráveis”. Mas tudo depende do conceito de pessoas vulneráveis com que se opera.
No Vaticano e, em geral, nos meios eclesiásticos, parte-se do pressuposto de que os abusos espirituais, psicológicos e, em geral, de poder não são matéria grave que faça soar as campainhas. No caso de relações sexuais, se são adultas, parte-se do princípio de que há romance e consentimento.
A matéria é tão grave nos ambientes curiais, que a acadêmica italiana Lucetta Scaraffia – que o Papa Bento XVI convidou para dirigir o suplemento mensal Donne, Chiesa Mondo – sofreu pressões e ameaças de todo o tipo, quando quis tratar nessa publicação o tema dos abusos sexuais de religiosas por membros do clero. Conseguiu publicar. Mas, por causa disso ou por outros motivos, acabou por abandonar o lugar, de seguida.
Quando o Papa Francisco foi interrogado especificamente sobre este ponto, numa entrevista de janeiro deste ano a Nicole Winfield, da Associated Press, afirmou: “Uma pessoa vulnerável… é como um menor, não é? Alguém pode ser vulnerável porque está doente, pode ser vulnerável por causa de sua deficiência mental, pode ser vulnerável por causa do seu vício. A tentação acontece, às vezes. Uma personalidade sedutora que manipula a consciência do outro, criando assim uma relação de vulnerabilidade e de escravização.
Se compararmos este quadro exemplificativo do Papa, há dois problemas que ficam por equacionar e que são talvez mais frequentes do que os exemplos dados.
Por um lado, estamos aqui diante de casos individuais, quer do lado das vítimas (uma pessoa doente, deficiente…) quer dos abusadores (uma personalidade sedutora). O que parece haver são situações e relações particulares, isoladas, casuísticas… de alguém que sucumbe à tentação ou que é apanhado numa situação vulnerável. Não há aqui a equação em que possam intervir relações de poder, modelos de governo, estratégias de controlo e vigilância, culturas de dominação em lugar de culturas de serviço.
A partir da Comunidade Loyola perguntar-se-á: mas mulheres que fizeram os seus cursos superiores, várias com mestrados e doutoramentos, que estão inseridas em locais de trabalho e funções diversas, poderão ser consideradas vulneráveis?
A questão seria pertinente se se trabalhasse com uma concessão da pessoa assente dominantemente na dimensão racional da vulnerabilidade (capacidade de compreender a situação em que se está a ser manipulado, sem poder defender-se). Ora, como mostra em artigo recente a psicóloga Fabrizia Raguso (*), que foi membro da dita Comunidade Loyola, é necessário adotar uma visão antropologicamente muito mais larga e multidimensional de vulnerabilidade, incluindo os direitos humanos fundamentais.
O decreto disciplinar do bispo Libanori, jesuíta como o Papa, é a mais cabal demonstração do que se acaba de referir.
A prevalência e hipersensibilidade para o problema dos abusos sexuais de crianças acaba por concorrer também para a invisibilização dos abusos de mulheres (e não só mulheres: bastaria recordar o caso do cardeal McCarrick, com seminaristas).
Um fator agravante, no caso das vítimas adultas, reside na dificuldade de denunciar, como experimentaram e sublinharam diversas equipas de investigadores e cuidadores que em anos recentes têm trabalhado neste campo.
Se muitas continuam em sofrimento, outras encontraram um modo de conviver com esse passado doloroso. Em qualquer dos casos, é sempre o risco de uma segunda vitimização que está em causa.
Como escrevia, há mais de três décadas, o teólogo norte-americano James N. Poling, “enquanto igrejas e sinagogas entenderem os abusos do clero masculino como distúrbios de intimidade e sexualidade, sem atenderem a uma análise social da dominação e violência masculinas, é improvável que se movam decisivamente para impedir o abuso”.
A reflexão sobre o poder e autoridade na sociedade e na Igreja; a atenção ao fenômeno sociopsicológico do narcisismo com a carga histórica que, no caso do clero, advém de dimensões simbólicas e privilégios; a idealização da mulher e objetificação das mulheres; as sexualidades e as linguagens do corpo – eis aspetos que importaria não perder de vista, na busca de uma cultura de superação dos abusos, mas sobretudo de promoção da dignidade e da felicidade das pessoas.
Sem dúvida que alguma coisa se caminhou, desde os tempos de Bento XVI até hoje. Há maior sensibilidade, começa a haver estruturas de escuta e de acompanhamento. Mas a sensação que dá é que se encontrou uma forma de conter os riscos e de sacudir os medos, mas não se pretende ir mais longe.
Não existe a consciência de que o modo reativo e defensivo como a Igreja lidou com este assunto constitui um dos grandes motivos de descrédito da Igreja Católica e de desconfiança face aos seus ministros. E os casos, não apenas do passado, em lugar de estancarem, continuam a surgir e não com gravidade menor, já que afetam um significativo número de novas comunidades (carismáticas) em grande medida surgidas no pós-Vaticano II. Por outro lado, são numerosos os casos de bispos acusados de abuso ou, o mais comum, de encobrimentos e silêncios.
“Tolerância zero com os abusos” começou a ser um “mantra” que, de tanto se repetir, se vai esvaziando.
Aparentemente, abriu-se um caminho, mas parou-se no meio da estrada, em torno de “mínimos” que nem sequer garantem que os abusos de vários tipos não continuem a acontecer. O próprio Papa parece ter pouco a dizer de novo sobre a matéria.
Há perto de um ano, o teólogo ítalo-americano Massimo Faggioli e o jovem jesuíta alemão Hans Zollner, então membro da Comissão Pontifícia de Proteção de Menores, escreveram um artigo conjunto no jornal La Croix (16.11.2022), em que defenderam que “a crise dos abusos deveria estar no centro do processo sinodal” iniciado pelo Papa. Este processo está prestes a entrar numa fase decisiva e decisória, com o Sínodo dos Bispos em Roma.
Várias sínteses de dioceses e de países chamaram a atenção para a importância dessa problemática, quer pelo seu significado intrínseco quer pelo seu papel de sintoma de outras dificuldades e desafios da vida da Igreja Católica.
É a altura de refletir “sistemicamente” sobre esta questão e encontrar caminhos que permitam sair do aparente impasse a que se chegou. Muitos já perderam a esperança. Mas os cristãos acreditam que “o Espírito sopra onde quer”.
(*) Raguso, F. (2023). “La natura psicosociale dell’abuso spirituale”. Adista. 23.9.2023.
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Abusos: a Igreja Católica parou no meio do caminho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU