24 Janeiro 2022
Mais um dia negro para a Igreja Católica. É claro que o relatório publicado pelo escritório de advocacia bávaro Westpfahl Spilker Wastl (WSW), quinta-feira, 20 de janeiro, não é o primeiro a descrever a extensão dos abusos sexuais cometidos pelo clero nas últimas décadas, em uma Alemanha repetidamente abalada por esse tipo de revelações desde 2010. Mas, destacando as faltas de Joseph Ratzinger durante o período em que era arcebispo de Munique e Freising (1977-1982), é o primeiro relatório a acusar diretamente um papa emérito - Bento XVI (2005-2013), de 94 anos - de ter protegido padres abusadores.
A reportagem é de Cécile Chambraud e Thomas Wieder, publicada por Le Monde e reproduzida por Fine Settimana, 22-01-2022. A tradução do italiano é de Luisa Rabolini.
O relatório de 1.900 páginas, baseado em centenas de documentos e na audição de 56 testemunhas, relata 235 supostos autores de agressões sexuais cometidas entre 1945 e 2019 na arquidiocese de Munique e Freising. No total, foram identificadas 497 vítimas, mais meninos do que meninas, principalmente crianças ou adolescentes no momento dos acontecimentos. Quanto ao futuro Bento XVI, os autores do relatório acreditam que ele tenha tomado "decisões erradas" durante o período em que liderava o arcebispado, não tendo intervindo em quatro casos, em dois dos quais os padres acusados já haviam sido condenados pela justiça alemã.
Um caso particularmente embaraçoso para Ratzinger. Data de 1980, quando Peter Hullermann, um padre da diocese de Essen (Norte Reno-Westphalia) acusado de pedofilia, havia sido transferido para aquela de Munique para se submeter a uma terapia. O futuro Bento XVI sempre negou conhecer o passado daquele padre. Em particular, alega que não esteve presente na reunião em que, em 15 de janeiro de 1980, foi registrada sua chegada a Munique. Uma versão julgada "pouco credível" pelos autores do relatório: não só a ata da reunião não relata que o arcebispo estava ausente, mas registra que este último falou sobre outros dois temas durante a mesma reunião. Algumas semanas após sua transferência para a Baviera, Hullermann estava novamente em contato com menores. Condenado em 1986 a dezoito meses de prisão com liberdade condicional, posteriormente serviu em várias paróquias da região até à sua suspensão definitiva em 2010, aos 63 anos.
A impunidade desfrutada por este padre muito tempo depois da saída de Ratzinger do arcebispado em 1982, lembra que o futuro Bento XVI não foi o único prelado a ter encoberto tais atos. Na realidade, os cinco arcebispos que se sucederam em Munique desde o fim da guerra estão todos sob acusação. Em particular, o atual prelado, Reinhard Marx, no cargo desde 2008, acusado de inação em dois casos.
Ausente na manhã de quinta-feira na conferência de imprensa onde o relatório foi apresentado, o cardeal Marx fez uma breve declaração algumas horas mais tarde. Ele não falou especificamente das acusações de que é alvo, mas disse estar "chocado e cheio de vergonha" com a extensão das revelações. Paradoxo singular: ex-presidente da Conferência Episcopal alemã (2014-2020), o cardeal Marx é também um dos que mais atuaram para pôr fim à lei do silêncio. Em 2021, chegou a apresentar sua renúncia ao Papa Francisco para "assumir a corresponsabilidade pela catástrofe das agressões sexuais cometidas por representantes da Igreja nas últimas décadas". Demissões que não foram aceitas.
Na quinta-feira, a Santa Sé anunciou que prestaria “toda a atenção necessária” ao relatório publicado pelo escritório WSW, “exprimindo novamente o sentimento de vergonha e de remorso pelos abusos contra menores cometidos pelo clero”. O secretário particular do papa emérito, Georg Gänswein, afirmou que Bento XVI iria examinar o relatório. "O papa emérito (...) expressa choque e vergonha diante dos abusos de menores cometidos pelo clero, e expressa sua proximidade pessoal e suas orações por todas as vítimas, algumas das quais foram recebidas por ocasião de suas viagens apostólicas”, acrescentou o arcebispo.
O envolvimento do futuro Papa Bento XVI pelo relatório publicado na quinta-feira representa mais um degrau para a Igreja Católica nesta subida ao calvário das revelações do mecanismo e da extensão das violências sexuais dentro dela. Nos últimos anos, sob o pontificado de Francisco, bispos foram destituídos por esse motivo. Cardeais também foram acusados e alguns sancionados.
Esta nova etapa é particularmente marcante precisamente porque diz respeito ao papa que quebrou o silêncio da Santa Sé sobre a pedofilia. Colaborador próximo de João Paulo II (1978-2005), por exemplo, tinha visto como Marcial Maciel, fundador mexicano da poderosa Legionários de Cristo, tinha continuado a manter os favores do pontífice polonês, apesar das acusações de abusos mais ou menos irrefutáveis que chegavam a Roma. Ratzinger havia obtido que a Congregação para a Doutrina da Fé, que ele dirigia, fosse a única jurisdição competente para julgar padres acusados de agressões sexuais. Depois disso, centenas de padres pedófilos foram dispensados do estado clerical durante seu pontificado.
Em abril de 2019, depois de seis anos que Francisco o sucedeu, um texto assinado pelo papa emérito veio curiosamente colorir aquele empenho passado. Bento XVI naquele texto atribuía a causa da pedofilia no clero à "revolução de 1968", que, dando origem a um "mundo sem Deus", o teria privado das "noções do bem e do mal". Contra toda evidência, ele argumentava que a pedofilia no clero "tornou-se candente apenas na segunda metade da década de 1980", após o "colapso" do ensinamento moral da Igreja.
O envolvimento de Ratzinger e do cardeal Marx, colaborador muito próximo do Papa Francisco, abala ainda mais uma Igreja alemã já enfraquecida pela diminuição de seus membros e que iniciou há dois anos um profundo trabalho de introspecção chamado "caminho sinodal". Este trabalho conjunto de clérigos e leigos diz respeito aos mais diversos temas, como os defendidos por grupos que pedem a ordenação de mulheres e de homens casados. Tudo isso aumenta as preocupações do Vaticano, já que, entre outras coisas, trata-se de uma das Igrejas do mundo que mais contribui para as finanças da Santa Sé.
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Abuso sexual na Igreja: o Papa Emérito Bento XVI acusado de inação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU