24 Janeiro 2022
"É uma página obscura que pesa sobre o governo de Ratzinger. Aconteceu justamente aquilo que anos mais tarde, em sua Carta aos Católicos Irlandeses, Bento XVI teria denunciado como inadmissível: uma 'preocupação fora de lugar pelo bom nome da Igreja e por evitar escândalos, (teve) como resultado a não aplicação das penas eclesiásticas ...'. Assim, a confiança das vítimas foi traída até o fim", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 22-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Espanto total no coro de exclamações atônitas. Só porque aparece um nome de destaque: Joseph Ratzinger. Como se a horrenda lista de 497 abusos na diocese de Munique não confirmasse o que já foi esclarecido há tempo pelas investigações realizadas na própria Alemanha, na Irlanda, Austrália e Estados Unidos.
Desatenção, desleixo, a chamada cobertura com um bom propósito de "não transtornar" os fiéis foram uma prática constante por décadas e séculos, na Igreja Católica como em outras comunidades religiosas. A investigação de Munique destaca as responsabilidades de todos os arcebispos desde o período pós-guerra até hoje. Sejam eles brilhantes ou não, reformadores ou moderados, protagonistas das reformas conciliares como o cardeal Faulhaber, destinados a se tornarem inclusive guardiões da fé no Santo Ofício como Ratzinger e depois ascender ao trono papal - todos não estiveram à altura da situação, todos cometeram "erros de comportamento" (para usar um termo neutro).
Para permanecer aos fatos: Ratzinger, arcebispo de Munique de 1977 a 1982, é acusado de não ter tomado nenhuma medida contra quatro padres pedófilos. Um deles, Peter Hullermann, já responsável por abusos, foi transferido para a Baviera da diocese de Essen com a obrigação de fazer terapia. Poucas semanas depois, ele já havia recebido uma missão pastoral (e depois continuou a abusar).
O ex-pontífice Ratzinger afirma que não sabia nada sobre o assunto e que não esteve presente na reunião em que o vigário geral da diocese Gerhard Gruber anunciou a decisão. O reverendo Gruber, no entanto, afirma hoje que recebeu pressões - quando o caso explodiu durante o pontificado de Bento XVI - para declarar que assumiria toda a responsabilidade sozinho.
Dois outros casos são ainda mais graves: para dois outros padres pedófilos, as autoridades estatais já haviam certificado atos criminosos. Nada aconteceu. Eles continuaram tranquilamente o "cuidado das almas" na diocese. Ratzinger escreveu à comissão de investigação do escritório de advocacia Westpfahl Spilker Wastl (WSW) para rejeitar "rigorosamente" as alegações.
Pensar que a história vai acabar aqui, assim como está, entre uma acusação e uma desmentida, não faz sentido. A promotoria da Baviera já abriu processos para 42 casos. Na diocese de Munique realmente não havia o hábito de se perguntar o que aconteceu com a "cura" do abusador Hulermann? É concebível que no arcebispado ninguém estivesse interessado em saber onde atuavam dois padres sancionados publicamente pelos crimes? Será importante ler o documento do escritório de advocacia WSW na íntegra e será igualmente importante poder ler as 82 páginas da defesa enviadas pelos advogados de Ratzinger e, eventualmente, suas adicionais contra- argumentações.
Joseph Ratzinger - Bento XVI é certamente, por suas qualidades, uma personalidade de destaque da Igreja Católica contemporânea. Um teólogo proeminente, um pensador refinado, uma pessoa sensível. É o pontífice que a certa altura embarcou no caminho de uma luta rigorosa contra os abusos na Igreja. Na última década, o Vaticano publicou um documento que mostra que Bento XVI já havia afastado 400 padres abusadores em um período de dois anos (2011-2012). "Um santo", como o definiu a Irmã Jeannine Grammick, que também foi perseguida pelo Santo Ofício dirigido por Ratzinger. Um santo, mas não um santo de folhetim.
A história não precisa desses santos. A história não tolera encobrimentos. Há uma página negra no pontificado de Bento XVI, que diz respeito a uma dramática história de abusos. A história de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo. Tendo se tornado pontífice, Joseph Ratzinger era perfeitamente ciente dos crimes de Maciel, um abusador em série de seminaristas e até de um de seus filhos nascidos na clandestinidade. Bento XVI afastou Maciel da liderança dos Legionários de Cristo, suspendeu-o a divinis e impôs-lhe uma vida de retiro e penitência. Mas não o levou diante de um tribunal canônico, conforme exigido pelas normas da Igreja.
Afastar Maciel da vida pública foi conceder-lhe um tratamento especial - a pretexto de sua idade avançada e seu frágil estado de saúde... e provavelmente com a intenção de não abalar imediatamente a organização que ele criou.
Um processo não é um detalhe. É o momento em que os crimes de um culpado se tornam públicos, o momento em que o criminoso deve responder à opinião pública, o momento em que aparecem as cumplicidades que lhe permitiram continuar seus crimes impunemente. Bento XVI, que tudo sabia e podia, decidiu não celebrar o processo e assim as vítimas nunca receberam justiça pública. Permaneceram um número, sem sequer poder ascender à dignidade de vítimas. Somente após sua morte (em 2008) foi divulgado um documento com o claro relato dos crimes de Maciel. Mas um processo é outra coisa. Maciel nunca foi condenado ou expulso do estado clerical.
É uma página obscura que pesa sobre o governo de Ratzinger. Aconteceu justamente aquilo que anos mais tarde, em sua Carta aos Católicos Irlandeses, Bento XVI teria denunciado como inadmissível: uma "preocupação fora de lugar pelo bom nome da Igreja e por evitar escândalos, (teve) como resultado a não aplicação das penas eclesiásticas ...". Assim, a confiança das vítimas foi traída até o fim.
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Ratzinger, além de Munique, há uma página negra em seu pontificado. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU