19 Outubro 2023
"Pode o sionismo israelense, por meio do seu Estado, falar em nome de todo o povo judeu, de seus valores e de sua judaicidade, ou seja, da ética e política comprometidas com a igualdade e justiça social, da coabitação pacífica, das tradições judaicas seculares, socialistas e religiosas?".
O artigo é de Alexandre Aragão de Albuquerque, arte-educador (UFPE), especialista em Democracia Participativa (UFMG) e mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE).
Um dia virá em que a Palavra de Deus será falada de tal modo que as pessoas se sentirão interpeladas. Será uma nova linguagem, muito provavelmente não religiosa, mas libertadora e universal, como a linguagem de Jesus de Nazaré. As pessoas ficarão admiradas e seduzidas pela força dessa linguagem. Então, o mundo se renovará? (Dietrich Bonhoeffer)
Logo após os ataques-surpresa lançados em 07/10 pelo Hamas contra o território ocupado por Israel, o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, numa atitude tipicamente da barbárie nazista, declarou para a imprensa internacional que eles estavam “lutando contra animais e agindo de acordo”, preparando-se imediatamente para uma fase ofensiva na qual o seu Exército utilizará todo o poder bélico para reduzir a Cidade de Gaza a escombros.
Os ataques começarão pelo corte total de eletricidade, combustível, água, alimentos, e todo tipo de produtos de primeira necessidade, aos mais de dois milhões de palestinos – homens, mulheres e crianças – que vivem confinados naquela região, resultado da política de apartheid neocolonial implantada pelos sionistas, por meio da violência ostensiva de Estado, da subjugação das coletividades palestinas, da expulsão e expropriação em massa de suas terras, dos bombardeios violentos de populações aprisionadas a céu aberto.
Como força de suporte ideológico, a propaganda hegemônica via meios de comunicação social das grandes corporações, tem acentuado intensamente que toda e qualquer crítica ao Estado de Israel parte de uma visão antissemita. Tal comportamento censor da imprensa livre visa impedir a divulgação de análises críticas dos fatos históricos, bem como do contexto atual, que permitam à opinião pública mundial tomar posse das violências perpetradas diuturnamente pelo sionismo israelense, desde a implantação daquele Estado como resultado da partilha planejada pelas potências ocidentais com o final da Segunda Guerra.
Pergunta-se: diante deste quadro, pode o sionismo israelense, por meio do seu Estado, falar em nome de todo o povo judeu, de seus valores e de sua judaicidade, ou seja, da ética e política comprometidas com a igualdade e justiça social, da coabitação pacífica, das tradições judaicas seculares, socialistas e religiosas? A quem interessa o fortalecimento de um Estado de extrema direita sionista? Por que judeus democráticos e socialistas não conseguem apresentar uma contraofensiva à altura do poder sionista israelense? Será que esses judeus concordariam com a política neocolonial de apartheid implantada pelo Estado de Israel? Ou simplesmente ficam em cima do muro, sem oferecer resistência nem articulação internacional, como se constata em discursos de algumas lideranças de movimentos internacionais? Será que ainda, em pleno século XXI, todos eles se consideram o povo Escolhido, colocando-se acima dos outros povos e nações?
Mas se os princípios de liberdade, igualdade e justiça social estão ameaçados pelo sionismo, tal ameaça não está circunscrita apenas ao Estado israelense, tem a ver com toda a comunidade internacional. Não esqueçamos que em 1933 Hitler iniciou o movimento nazista na Alemanha que resultou numa Guerra Mundial, cujos efeitos ainda se expandem até os nossos dias com o advento do neonazismo.
Em Barbárie e Civilização, o antropólogo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017) adverte que acreditar em julgamentos absolutos é desenvolver a enfermidade de um dogmatismo cego ao convencer-se de deter a exclusividade da verdade e da justiça, ao impor ao outro a mudez, a invisibilidade, negando-lhe a plena humanidade, impondo-lhe a exclusão da vida em civilização. Para conseguirem essa dominação, esses cegos-dogmáticos atuam como bárbaros recorrendo a diversas formas de violência para resolverem desacordos. Considerar os outros como menos humanos (animais) é uma típica forma de barbárie.
Numa cultura democrática todos são iguais perante a lei; o Estado existe como instituição garantidora dos direitos de todos os membros da sociedade nacional. Ele detém um poder próprio como fiador da legalidade, devendo entre outras coisas preocupar-se em defender o direito dos mais fracos, com o futuro mais longínquo e com os valores imateriais. A autoridade democrática é conferida pelos soberanos populares ao escolherem livremente seus representantes e ao participarem das decisões referentes aos processos e valores que vão incidir sobre suas vidas. No contrato político – a Constituição – estabelecem o conteúdo para que o Estado caucione a validade do que foi pactuado.
Portanto, a lei deve traduzir e garantir a vontade do povo asseverando que uma sociedade não é a soma de indivíduos atomizados com suas vontades particulares impostas a todos os outros custe o que custar. Um grupamento que funcionasse regido somente pelo poder dos indivíduos seria uma encarnação perfeita da barbárie. Todos nós temos direitos anteriores provenientes do nosso pertencimento ao gênero humano, além de direitos e deveres de nosso pertencimento a uma sociedade. E o Estado deve garantir esses direitos.
Por último, um dos princípios democráticos recomenda que todos os poderes sejam limitados; não só o do Estado, mas também dos indivíduos, inclusive e principalmente daqueles que detém maior poder econômico. Como lembra Tzevan Todorov (Os inimigos íntimos da democracia, Edições 70), a liberdade que uma galinha tem de atacar uma raposa é uma piada, pois elas não têm a capacidade para isso. Ao contrário, a liberdade da raposa é perigosa porque além de mais forte, ela é predadora.
Na canção “Disparada”, composta pelo paraibano Geraldo Vandré e Théo de Barros, Vandré utiliza a linguagem poética para estabelecer uma comparação entre a exploração dos povos com a exploração do gado, denunciando a opressão pela qual as populações rurais brasileiras eram submetidas diuturnamente. Um dos versos magistrais da canção diz assim: “Aprendi a dizer não”.
Étienne de la Boétie (1530 – 1563), filósofo francês, afirmava que a servidão voluntária expressava o desejo de servir os superiores para ser servido pelos inferiores. É uma teia de relações de força que percorrem verticalmente as sociedades sob a forma de mando e obediência. Como Vandré, La Boétie saca do seu pensamento a seguinte percepção para romper com essa cadeia: não é preciso tirar coisa alguma do dominador, basta não lhe dar o que ele pede; basta dizer-lhe não. Dizer não, um ato de liberdade. É este não que o povo palestino grita e paga com a própria vida.
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