08 Agosto 2023
"O relatório do patriarca pareceu confuso, estilisticamente e substancialmente heterogêneo. A parte central não expressa apenas ressentimento, mas uma raiva mal disfarçada contra o Patriarcado Ecumênico e contra o próprio Patriarca Bartolomeu", escreve Sergei Chapnin, ex-diretor da revista do Patriarcado de Moscou e pesquisador no Orthodox Christian Studies Center da Fordham University, de Nova York, em artigo publicado por Public Orthodoxy e reproduzido por Settimana News, 07-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que preocupa o Patriarca Kirill e os bispos da Igreja Ortodoxa Russa? Essa pergunta é respondida pelos documentos do Conselho dos Bispos da Igreja Ortodoxa Russa, uma das mais altas autoridades governamentais da Igreja. Com uma dificuldade: o Patriarca Kirill não conseguiu convocar um Concílio nos últimos três anos. E isso é uma violação direta do Estatuto da Igreja Ortodoxa Russa. No entanto, em julho, o patriarca Kirill reuniu alguns dos bispos para uma Conferência Episcopal e encontrou uma maneira de simular uma discussão conciliar.
Em primeiro lugar, é necessário falar aqui do contexto que influenciou a mudança dos mecanismos de governo da Igreja Ortodoxa Russa, da forma do Conselho dos Bispos, do conteúdo dos documentos e do estilo de sua apresentação aos bispos. Falaremos sobre isso a seguir. Na segunda parte, examinaremos o conteúdo dos documentos que constituem a abordagem antagônica da Igreja Ortodoxa Russa ao Patriarcado Ecumênico.
Nos últimos tempos, a data do Conselho dos Bispos foi adiada várias vezes. Deve ser ressaltado que a última data fixada foi 26-29 de maio de 2022; isso significa que Kirill contava com um rápido fim da guerra e com a possibilidade de sediar o Conselho Episcopal da Igreja Ortodoxa Russa após uma vitória completa sobre a Ucrânia. Após o início da agressão, o Patriarca Kirill esperou alguns meses e somente em 17 de abril de 2022 adiou o Conselho por tempo indeterminado. No entanto, em maio de 2022, foi realizado em Kiev um Conselho da Igreja Ortodoxa Ucraniana que declarou a ruptura das relações com a Igreja Ortodoxa Russa.
Como resultado, o Conselho foi posto de lado e em dezembro de 2022 foi estabelecido que uma Conferência Episcopal deveria ser realizada em 19 de julho de 2023, ou seja, um encontro de bispos que não requer um quórum e não possui status canônico. Deve-se dizer que a Assembleia dos Bispos é mencionada apenas uma vez no Estatuto da Igreja Ortodoxa Russa, no capítulo sobre o Conselho Local (cap. 2, p. 13), como parte integrante do mesmo. Tal encontro não tem nenhuma função independente fora do Conselho local. No entanto, o Patriarca Kirill já havia seguido esse caminho em 2015; na época, o fato não havia levantado nenhuma objeção e assim decidiu propô-la novamente.
Uma forma de participação extremamente rígida foi proposta aos bispos russos: a todos, sem exceção, foi ordenado comparacer e nenhuma desculpa foi aceita. Um convite muito mais tolerante foi feito aos bispos não russos: "dependendo de sua possibilidade de vir a Moscou". Ao mesmo tempo, porém, o bispo Savva (Tutunov) chamou pessoalmente os bispos estrangeiros para garantir pelo menos alguma representação.
Não há dados sobre o número exato de participantes, mas nenhum dos bispos da "Igreja Ortodoxa Russa no Exterior" compareceu ao encontro; os bispos da Europa Ocidental e dos Estados Bálticos estavam ausentes; a maioria dos bispos da Moldávia estava ausente e apenas a Bielorrússia, ao que parece, estava presente em sua totalidade.
O encontro durou um dia e havia apenas quatro pontos na pauta:
O relatório do Patriarca Kirill.
O relatório do Metropolita Hilarion da Hungria e Budapeste - presidente da Comissão Sinodal Bíblico-teológica - dedicado à preparação de um documento "Sobre a distorção do ensinamento ortodoxo sobre a Igreja nos atos da Hierarquia do Patriarcado de Constantinopla e nos discursos de seus representantes".
O relatório do chefe do Departamento Jurídico do Patriarcado de Moscou, o hegúmeno Xenia (Chernega), sobre mudanças no direito civil.
Discussão e adoção do documento final.
O conteúdo dos documentos apresentados na reunião não era a única preocupação do Patriarca. Durante a pandemia e no primeiro ano e meio da guerra, Kirill passou muito tempo em isolamento. Como administrador autoritário, deveria ter assegurado que a Igreja, representada pelo episcopado, estivesse totalmente sob seu controle e ainda plenamente administrável. Não creio que os resultados quantitativos do encontro o satisfaçam muito. Dos 402 bispos, cerca de 250 se apresentaram, ou seja, um número inferior ao quórum de 2/3 do episcopado (268), necessário para o Conselho dos Bispos. Isso significa que, apesar de todos os esforços realizados, não será possível convocar o Conselho.
Em vez disso, pode-se dizer que o Patriarca ficou satisfeito com o fato de não haver declarações de protesto durante o encontro. Nenhum dos bispos presentes ousou declarar uma posição contra a guerra ou criticar os documentos discutidos. Isso significa que o medo e a "solidariedade corporativa" tornam ainda o episcopado da Igreja Ortodoxa Russa totalmente obediente ao Patriarca Kirill.
O relatório do patriarca pareceu confuso, estilisticamente e substancialmente heterogêneo. A parte central não expressa apenas ressentimento, mas uma raiva mal disfarçada contra o Patriarcado Ecumênico e contra o próprio Patriarca Bartolomeu:
“Alguns daqueles que se definem servos de Deus não foram libertados da influência dos espíritos do mal debaixo do céu (cf. Ef 6,12), que os levaram a arruinar a unidade da Igreja. Refiro-me, primeiramente, às ações anticanônicas do Patriarcado de Constantinopla na Ucrânia, que abriram o caminho para as desordens eclesiásticas e para a longa perseguição, hoje particularmente grave, dos cristãos ortodoxos na Ucrânia”.
Em outras palavras, o Patriarca Kirill declara publicamente que um círculo indefinido de hierarcas do Patriarcado Ecumênico está possuído por demônios. E isso não é um aviso. O Patriarca Kirill continua:
“Infelizmente, o Patriarcado de Constantinopla se tornou um dos instrumentos na luta contra a Ortodoxia. Seus principais hierarcas há muito tempo, com o apoio de forças políticas externas à Igreja e por sua instigação, se preparam para desmantelar a unidade da Ortodoxia, conduzindo negociações e intrigas secretas”.
Parece que o Patriarca Kirill adote a narrativa ideológica de um confronto total com o "Ocidente coletivo" que é ecoada pela propaganda russa:
“Deve ser claramente entendido: influentes forças políticas mundiais, hostis não apenas à Rússia e à Ortodoxia, mas também, podemos agora ver, à visão cristã do mundo como um todo, se definiram e estão visando uma tarefa maior do que o simples isolamento espiritual do povo ucraniano, ou seja, a sua oposição ao povo fraterno e espiritualmente próximo povo russo, com o qual juntos constituem uma única civilização ortodoxa, que remonta à era da Santa Rus'”.
O patriarca faz apenas uma pequena referência à guerra na Ucrânia quando fala da necessidade de sacerdotes militares nas unidades de ocupação. Convida a orar por "um triunfo vitorioso sobre aqueles que se opõem à Santa Rússia e querem dividir e destruir seu povo unificado". Mas não diz nada – nem uma única palavra! – sobre a necessidade de paz e de uma pacificação. De seu discurso, fica claro que o motivo da "perseguição aberta" contra a Igreja Ortodoxa Ucraniana não é de forma alguma a agressão russa, mas "a desordem semeada pelo Fanar".
O ícone dessas "perseguições" para o Patriarca Kirill é a figura do Metropolita Pavlo (Lebid), o odiado [pelos ucranianos -ndr] superior da Lavra de Kiev-Pechersk. Há poucos dias, o tribunal substituiu sua prisão domiciliar pela reclusão em uma estrutura de detenção "pré-julgamento" por causa de seus "repetidos insultos aos sentimentos religiosos dos ucranianos, humilhação das opiniões dos crentes de outras confissões" e declarações que "justificam ou negam as ações do país agressor". O Patriarca Kirill a definiu como uma "perseguição ilegal", declarou o Metropolita Pavel "confessor" [da fé - ndr] e acrescentou:
“É claro que as autoridades ucranianas começaram a liquidar a Igreja Ortodoxa Ucraniana canônica, não prestando nenhuma atenção aos chamados valores europeus, que incluem, entre outras coisas, a liberdade de religião e o respeito pelos direitos humanos”.
O fato de o Patriarca Kirill ter uma compreensão reduzida e até perversa da situação na Ucrânia é demonstrada pelo surgimento repentino – literalmente do nada – do tema da Igreja greco-católica:
“Os chamados greco-católicos uniatas estão ativamente envolvidos na instigação e na manutenção da perseguição ao povo ortodoxo da Ucrânia. Eles aparecem estar entre os principais beneficiários dos numerosos e ilegais confiscos das igrejas ortodoxas no território ucraniano. Hoje, os uniatas se identificaram plenamente com a agenda descaradamente nacionalista promovida na Ucrânia e se tornaram colaboradores das autoridades ucranianas na implementação de sua política discriminatória contra a Igreja Ortodoxa canônica”.
Tendo escolhido uma aliança estreita com o Kremlin, o Patriarca Kirill perdeu completamente a possibilidade de exercer qualquer influência política na Ucrânia e só pode lançar raios e trovões, como Zeus, e escrever cartas aos chefes de Igrejas cristãs e às organizações de direitos humanos exortando-os a "prestar atenção à perseguição em curso". Tendo se tornado persona non grata na Ucrânia e sujeito a sanções de vários países, ele não pode influenciar a situação. Trata-se de um fracasso total de sua liderança.
De acordo com o seguinte relatório do Metropolita Hilarion (Alfeyev), que caiu em desgraça no ano passado quando perdeu o cargo de Presidente do Departamento de Relações eclesiásticas externas, mantendo, porém, aquele de Presidente da Comissão Sinodal Bíblico-Teológica, a Igreja Ortodoxa Russa deseja seriamente um extremo agravamento das relações com o Patriarcado Ecumênico. Aqui estão as primeiras palavras do Metropolita Hilarion:
“Em 2018, ocorreu a invasão da Ucrânia pelo Patriarcado de Constantinopla. Seguiu-se a legalização do cisma ucraniano. Isso não apenas causou graves feridas à ortodoxia ucraniana, mas também dividiu todo o mundo ortodoxo”.
Ao que parece, o principal objetivo político do Patriarca Kirill na última reunião dos bispos foi de convencer os presentes de que o cisma já havia ocorrido e que o Patriarcado Ecumênico era o único responsável. Novas estratégias estão em curso de elaboração, sem considerar e até mesmo ignorando intencionalmente as normas e as regras aceitas.
Os bispos não levantaram objeções. E isso significa que Kirill alcançou seu objetivo - ele recebeu carta branca para novas ações. A questão agora é ver se os líderes das outras Igrejas autocéfalas se deixarão enganar por sua retórica ou encontrarão a coragem de falar para denunciar as suas distorções.
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Moscou: ressentimento contra Constantinopla. Artigo de Sergei Chapnin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU