A pandemia de covid-19 nos confronta com nossa finitude e vulnerabilidade, diz o filósofo
A cultura dominante da civilização tecnocientífica fez com que parte da humanidade acreditasse não só na onipotência das tecnologias, mas que os próprios seres humanos detinham o controle de todas as esferas da vida. Entretanto, como é possível observar desde a emergência da pandemia de covid-19, apesar do avanço tecnológico das últimas décadas, marcado pelo desenvolvimento da biotecnologia, da inteligência artificial e da informática, “um microscópico vírus nos faz cair de bruços em nossa impotência frente a ele”, adverte José Antonio Perez Tapias, decano da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Granada, na Espanha.
Além da crise pandêmica, outro perigo que ganha novas proporções a partir de agora, movido pelo medo e pelas incertezas em relação ao futuro, é que medidas de rastreamento humano e a aplicação generalizada de passaportes sanitários sejam utilizadas como mecanismos de controle pelos governantes. Essa questão, segundo o filósofo, não é somente fática, “mas, sim, um assunto diante do qual também se suscitam fortes objeções do ponto de vista normativo. Tal classificação de cidadãs e cidadãos, que supõe uma estigmatização pública, se presta igualmente a um controle da população, que da política conduz diretamente ao policial, colocando na bandeja um sistema de controle que igualmente pode passar do sanitário ao securitário”.
Na avaliação de Perez Tapias, a amplitude da crise sanitária, que trouxe inúmeras consequências para outras esferas da vida individual e coletiva, também pode ter um potencial positivo na medida em que nos fez “redescobrir socialmente o valor do comum”, como a saúde, a educação e a democracia. “Em definitivo, o comum se assenta em uma natureza humana comum, base ontológica para abordar objetivos políticos de igualdade social e de gênero e exigências morais de igualdade de tratamento. Sem a convicção de que todos somos igualmente humanos, isto é, que não há humanos que sejam mais humanos do que outros, os objetivos de igualdade não se sustentam. Insisto nisso porque considero tal ponto uma base imprescindível para levantar – e não se trata de fazê-lo incorrendo em falácia naturalista alguma – o reconhecimento igualitário de direitos”, justifica.
De acordo com o filósofo, a solidariedade, tão em voga na crise atual, também precisa ser repensada a partir da noção de “comum” e da ideia de “fraternidade”. “Apelamos muito à solidariedade, mas esse apelo é muitas vezes deixado em branco porque falta o pano de fundo de uma fraternidade verdadeiramente vivida: é a experiência de laços entre um e outro que nos compõe das profundezas. Os processos de subjetivação e a construção simbólica de identidades não são adequadamente implantados sem a consciência da irmandade do que nós, humanos, temos em comum”, assegura.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, José Antonio Perez Tapias reflete sobre o medo, as incertezas e as implicações éticas do uso de dispositivos tecnológicos de controle no mundo pós-pandemia, sobre a crise europeia e o futuro. Acerca deste último ponto, ele é categórico: “Após a pandemia, não haverá nova humanidade. Haverá humanos que, com a mesma condição, não são melhores nem piores. Ora, essa afirmação filosófico-antropológica não é pessimista, nem mesmo resignada, nem cínica. Devemos trabalhar nisso como premissa e, neste caso, a questão é como aprendemos coletivamente com a experiência que estamos tendo, para que nem tudo seja garantido pela fragilidade da boa vontade ou pelas mãos de uma memória fraca que pode ser superada. A questão é, então, levar o que foi aprendido para realizações objetivas, nas instituições, nas normas, nos acordos políticos e nas práticas regidas socialmente, para que se possa verificar o progresso no sentido pretendido, desde o cuidado com a vida até a economia, com mais espaço para cooperar em torno do comum, e não para uma extrema competitividade invasiva que destrói as relações humanas”.
José Antonio Perez Tapias (Foto: EP)
José Antonio Perez Tapias é formado em Teologia, Filosofia e Letras e doutor em Filosofia pela Universidade de Granada, com a tese "El pensamiento humanista de Erich Fromm. Crítica y utopía desde Marx y Freud".
IHU On-Line – Devido à pandemia de covid-19, podemos nos tornar uma sociedade movida pelo medo?
José Antonio Perez Tapias – O medo é muito humano. É uma forma de reagir frente ao que nos causa temor. Um desastre natural, uma guerra, uma dura experiência existencial... são situações nas quais podemos nos ver atemorizados. O medo é a elaboração psíquica desse temor e nele intervêm nossas emoções e sentimentos, julgamentos e preconceitos, situação pessoal e condições sociais.
Sem dúvidas, a pandemia de covid-19 causa temor e nos provoca medo. A probabilidade de nos vermos contagiados e a possibilidade, adoecendo, de morrer, são motivos para sentir medo. As fortes alterações em nossa vida social, os graves efeitos econômicos que arrasam as mesmas medidas decretadas politicamente para fazer frente a uma grave crise sanitária mundial, incrementam os temores que causam medo. Caso se viva em situação de precariedade ou se perca o trabalho pela paralisação da economia, ao temor que causa o coronavírus acrescenta-se o medo que provoca o “coronafome”.
O medo é proporcional à percepção que se tem do perigo ou do risco representado pelo que nos ameaça. Ademais, quando se vive tudo isso estando imersos em uma grande incerteza, como ocorre agora, o medo tende a aumentar diante de um futuro pessoal e social que se apresenta fora de nosso controle. Porém, não é preciso perder de vista que o medo pode ser razoável ou irracional. No primeiro caso é um mecanismo de defesa; no segundo, chega a ser causa de comportamentos patológicos que podem dar lugar a comportamentos de fuga – fugindo inclusive da própria liberdade, como analisou Fromm ou, no extremo, podendo desembocar em pânico. Por isso, em algumas circunstâncias como as da pandemia que sofremos, é chave como nos movemos entre o risco e o medo, como diminuímos o primeiro e como gerimos o segundo. Se não se considera adequadamente o perigo ou o risco de contágio, por exemplo, a conduta dos indivíduos pode ser temerária, inclusive tratando de se superar erroneamente a si mesmos, depreciando o medo; e se não se trata bem o medo, o pânico pode desembocar em obsessões ou bloqueios para afrontar a situação. É muito frequente que a temeridade, querendo menosprezar o medo, o incentive de modo reativo. Quando isso acontece em uma sociedade, a situação pode ser calamitosa: vemos nos EUA as consequências da estúpida temeridade de Trump, assim como no Brasil encontram-se os efeitos agravantes da crise sanitária provocados pela interessada – em função dos poderes econômicos – frivolidade do presidente Bolsonaro.
Ao administrar o medo, não se pode esquecer de que ele tem uma dimensão individual, que se destaca no aspecto psicológico mencionado, e também uma dimensão social. Os medos não são os mesmos em uma classe social e em outra; ou em alguns países e em outros. Onde existe um Estado que pode implementar medidas sociais para apoiar aqueles que perdem o emprego, o medo de se expor aos elementos tem menos impacto. Nas sociedades sem estruturas de um sistema de saúde público sólido, o medo de adoecer gera obviamente um medo maior. Ou, como estamos verificando, dada a incidência da covid-19, é lógico que o medo é maior em idosos do que em jovens.
IHU On-Line – Em um artigo recente, o senhor mencionou que até a aparição da pandemia de covid-19 “pensávamos que tínhamos todo o controle da vida, porém não temos o controle nem tecnológico nem economicamente”. O que essa crise demonstra sobre os limites humanos e sobre os limites tecnológicos e econômicos?
José Antonio Perez Tapias – Se continuamos a reflexão a partir do que supõe o medo, percebemos que este também se acentua por vir coletivamente de uma posição cultural muito arrogante. A pandemia nos pegou de surpresa. Houve, há algum tempo, vozes que advertiam para esse perigo, também más experiências de epidemias anteriores, entretanto não foram levadas em conta. A cultura dominante em nossos países é própria de uma civilização tecnocientífica muito potente, e isso deu base a um imaginário coletivo que tendia a pensá-la como onipotente. E não é o caso. A biotecnologia, a inteligência artificial e todos os desenvolvimentos da informática e a telemática... faziam com que nos sentíssemos fortes; agora, um microscópico vírus nos faz cair de bruços em nossa impotência frente a ele. Tratamos de frear sua expansão, de contar com tratamentos para os infectados, procurando acelerar pesquisas para contar com uma vacina da qual ainda não se dispõe.
Do ponto de vista econômico, podemos dizer outro tanto. A globalização econômica, com o globalismo como a ideologia que tendia a pensá-la como um processo condutor ao melhor dos mundos possíveis – encobrimento muito bem desvelado por Ulrich Beck –, implicava, ainda com todos os componentes assimétricos e neocoloniais no seio do mundo globalizado, uma determinada configuração da ordem mundial. A covid-19 provocou que tal ordem se visse desestabilizada. É por isso que até se fala do “medo dos mercados”, com a dinâmica das grandes corporações transnacionais que entram em processos de fortes depreciações de suas ações na Bolsa. Ou com o mercado energético enlouquecido com a crise do petróleo com preços no chão. A paralisia do comércio mundial é outro golpe da pandemia, neste caso para o capitalismo mundial e a sua cobertura ideológica neoliberal.
Quanto aos limites humanos, a pandemia nos confronta com nossa finitude e vulnerabilidade, e é assim que segue repetidamente nas reflexões que são revertidas no espaço da opinião pública. Esse tipo de Homo Deus em que alguns transumanistas pensavam, como Yuval Noah Harari definiu em seu livro com esse título, é uma fantasia perdida. E indo um passo adiante, o coronavírus, com sua letalidade, nos fez redescobrir, no meio dos modos de vida predominantes, que a morte é o reverso da vida. Quando escrevo estas linhas, a Espanha está ultrapassando o número de 27 mil mortes devido ao coronavírus, o que representa uma forte dose de tragédia adicionada ao drama da pandemia. A presença avassaladora da morte não permite que ela seja vista com base no que é socialmente oculto, jogando-a na área do reprimido. Hoje, quando vemos a experiência trágica de morrer isoladamente e a experiência traumática de não poder se despedir de parentes falecidos, redescobrimos o valor do luto em uma sociedade que até ontem o reduziu à expressão mínima, quando não era evitada. Cabe dizer, com Peter Sloterdijk, que não poderemos voltar à frivolidade em que vivemos culturalmente em muitas de nossas sociedades – embora seja muito provável que o “não permitido” seja quebrado e se volte a ela.
IHU On-Line – Neste momento de pandemia, os governos (ou alguns governos) estão usando tecnologias e aplicativos de celular de rastreamento humano (contact tracing). Qual a sua opinião? É uma necessidade ou um risco neste momento?
José Antonio Perez Tapias – A experiência da Coreia do Sul é a que se aduz como paradigmática na aplicação da telefonia celular para o controle da pandemia, ato que tem sido acompanhado de outros, como a realização de testes em proporções elevadas. Tudo indica que foram muito eficazes, ainda que isso não evite que apareçam novos surtos e tenham de começar tudo de novo em certos lugares. Reconhecendo a eficácia com a qual se moveram os sul-coreanos, é preciso insistir que esse meio de controle não reporta somente vantagens: já deixamos rastros que são utilizados com procedimentos de big data com fins comerciais – dando a entender que de fato nos deixamos localizar e entrar em nossa privacidade –, e é certo também que a aplicação de métodos mais sofisticados enfocados no rastreamento humano é uma intromissão na vida dos indivíduos de desagradáveis conotações e perigosas consequências.
Não deve ser esquecido o fato de que, quando uma tecnologia é usada e, neste caso, pelo Estado, ela se torna parte de uma bagagem de instrumentos e meios que tendem a se consolidar com um uso determinado que pode facilmente levar ao controle autoritário da população. Por pretender níveis mais altos de imunidade, podemos nos ver presos em áreas de impunidade de abusos de poder, o que, dito com fórmulas da análise da biopolítica de Roberto Esposito, implica o risco de que a política da vida leve a uma política sobre a vida, que implica um domínio inaceitável.
IHU On-Line – A China instituiu um Código de Saúde em 200 cidades, que gera códigos de cores sobre o estado de saúde do cidadão: um código verde permite circular livremente em lugares públicos, um código amarelo implica uma quarentena preventiva de sete dias, e o código vermelho indica a quarentena padrão de 14 dias. Como avalia esse tipo de iniciativa?
José Antonio Perez Tapias – Essa questão me lembra Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, que enfatiza características da sociedade e da cultura chinesa, mas o que supõe o regime da República Popular – a respeito do seu comunismo, considero pertinente falar com certa ironia de “comunismo confucionista”, já que passa longe do marxista – são práticas que ali se impõem em termos fortemente coercitivos, cuja aplicação não é viável em outras culturas. De todas as formas, não é questão somente fática, mas, sim, um assunto diante do qual também se suscitam fortes objeções do ponto de vista normativo. Tal classificação de cidadãs e cidadãos, que supõe uma estigmatização pública, se presta igualmente a um controle da população, que da política conduz diretamente ao policial, colocando na bandeja um sistema de controle que igualmente pode passar do sanitário ao securitário. O dano aos direitos relacionados às liberdades fundamentais não recomenda um procedimento como o indicado.
IHU On-Line – Tem sentido instituir um passaporte digital baseado em provas imunológicas no futuro?
José Antonio Perez Tapias – Penso que é outra proposta alentada por esse afã de controle que se choca com direitos fundamentais; existem outros procedimentos com os quais se pode enfrentar a pandemia. Apresentam-se mais objeções no próprio campo das ciências biológicas e da saúde, posto que, hoje, não é fácil, nem claramente eficiente, fazer provas imunológicas para toda a população, e menos ainda com resultados totalmente confiáveis e de duração indefinida. Neste caso, a aplicação generalizada de uma medida como a do “passaporte sanitário” não parece supor uma aplicação que atue segundo o princípio de precaução, de [Hans] Jonas, pois, além das objeções formuladas pelas próprias ciências biossanitárias, tal medida implicaria uma imprudente coerção dos indivíduos e, seguramente, colocaria sob suspeita os que não acessarem esse tipo de salvo-conduto. Inclusive, se houvesse cidadãos que voluntariamente se prestassem a isso para conseguir, por exemplo, uma espécie de visto para viajar, a questão não deixaria de ser menos discutível, pois isso suporia uma forte pressão sobre todos os demais, suscetível de se considerar ilegítima.
IHU On-Line – Existe o risco de criar um “terror sanitário” no futuro, onde a saúde já não seja um direito, mas uma obrigação, como advertiu Agamben?
José Antonio Perez Tapias – Sim. Se me permite matizar a questão, gostaria de apontar que a saúde, em rigor, não é um direito, pois depende de múltiplos fatores, entre os quais, coisas como o autocuidado e, claro, o que podemos chamar de “loteria da vida” ou a sorte que “azaradamente” a natureza nos deu. Nossa finitude, nossa condição corporal, nossa vulnerabilidade, impedem considerar a saúde como direito. Falar de “direito à saúde” implica nas mesmas dificuldades de falar em “direito à felicidade”. Os direitos são reconhecidos enquanto vinculados a objetivos de justiça, e é por isso que se reconhece o próprio direito à vida enquanto exigência de respeito incondicional à vida de cada um, suporte de sua dignidade. O “direito à saúde” propriamente dito se refere de maneira aceitável ao direito à atenção sanitária, que é aplicável como um direito social declarado constitucionalmente em termos suficientemente eficazes e dignos. Portanto, em outro sentido, é necessário falar do direito à saúde, entendendo-o como um direito coletivo à “saúde pública”.
Giorgio Agamben não acertou quando entendeu, precipitadamente, que as medidas de confinamento não obedeciam à gravidade da pandemia de um vírus com forte potencial letal, mas sim à disposição dos Estados – o italiano sendo o primeiro na Europa – em adotar medidas com componentes de “estado de exceção”. Às vezes, nos vemos levados a aplicar nossos esquemas prévios à interpretação do novo, por mais que seja tão imprevisto quanto inédito, tal como o caso da pandemia de covid-19, um acontecimento que sai do continuum dos fatos que se sucedem dentro de nossos parâmetros do explicável. Diríamos, benjaminianamente, que a pandemia rompeu esse continuum, deixando a história em suspense sobre qual é o futuro para o qual é decantada – vamos decantá-la. É nesse ponto que o diagnóstico de Agamben não perde relevância, pois é um alerta contra o perigo de desvios autoritários que nos levam a reordenar a sociedade como um “campo” perfeitamente controlado, uma vez que – novamente Benjamin – o estado de exceção, invocando a saúde, se torna a norma. Se o “novo normal” anunciado viesse das mãos de algum tipo de “terror da saúde”, nas mãos de um fundamentalismo de segurança, seria a mais anormal normalidade. Sabemos que os humanos são “animais paradoxais”.
IHU On-Line – Em artigo recente, o senhor chama a atenção para os riscos de uma globalização da salubridade. Que consequências pode ter essa globalização?
José Antonio Perez Tapias – Tenho que esclarecer, em primeiro lugar, que o risco, que já nos veio com a pandemia, era o da globalização da doença, uma possibilidade do mundo globalizado, que não se quis considerar. A probabilidade de novos casos de zoonose pelos vírus que saltam de espécies animais aos humanos e condições ambientais deterioradas que os favorecem, a intensidade dos fluxos humanos na alta mobilidade de nosso mundo e o azar de fenômenos naturais incontroláveis, são fatores que não foram considerados. O novo da situação atual é uma pandemia que não afeta somente países empobrecidos, mas também países desenvolvidos onde se pensava que isso somente ocorria a “outros”. Tem assim uma nova verificação aquele prognóstico do antropólogo Marc Augé, quando vaticinava que o que acontecia aos não desenvolvidos acabaria passando para os desenvolvidos. É como uma prova também da análise de Achille Mbembe sobre o “devir negro do mundo”.
Dito isto, o que se segue, se seguirmos falando de globalização, é promover a globalização da salubridade, isto é, das condições para que à vida de todos cheguem os benefícios da “saúde pública” que permita cuidar da saúde de cada um. O risco neste caso, como vínhamos comentando, é pretender esse objetivo por vias autoritárias, as quais, por outra parte, não deixariam de ser discriminatórias. Não se deve, também, passar pelo alto risco de que cada sociedade se feche sobre si mesma a partir da experiência de que, em definitivo, são os Estados que decidem sobre o assunto no momento de fazer frente a uma crise sanitária e às subsequentes crises econômica e social. Se em determinado momento é necessário um controle de viajantes mais rigoroso, isso não deve levar a um retrocesso fortemente isolacionista, que teria a cobertura de um nacionalismo excludente. Como mostra a ameaça que ronda, a saber, a mudança climática, não é pensável a defesa da salubridade como objetivo de “um só país” – vale recordar analogicamente a fundada crítica de Trotsky à pretensão de Stalin de “socialismo em um só país”.
IHU On-Line - Que questões éticas perpassam a discussão sobre rastreamento humano (contact tracing) e suas condições de saúde a partir de agora?
José Antonio Perez Tapias – Aplicando a tecnologia de rastreamento ao monitoramento de pessoas, a ameaça é tal no cotidiano, que não a torna um recurso adequado para enfrentar uma situação de pandemia. Se, por um lado, o rastreamento, como uma prática orwelliana de Big Brother digital, pode nos levar a um estado policial e colide com direitos sobre as liberdades dos indivíduos, por outro lado, aparece como um meio desproporcional para o mesmo objetivo a que se destina, porque só seria realmente eficaz em um impossível monitoramento da vida dos indivíduos de uma população inteira. Pelo contrário, é necessário contar com meios mais típicos do campo da saúde, com o apoio essencial de medidas sociais, em vez de nos colocarmos diretamente em uma órbita policial – com o risco de militarização da segurança, como estamos constatando.
Se colocarmos a proteção da vida no centro de nossas preocupações, para que a vida seja cuidada não devemos deixar de garantir que seja uma vida decente. No que diz respeito às populações marginalizadas, por exemplo, às quais o monitoramento telemático não pode ser aplicado, é muito provável que lhes tenha sido imposta uma espécie de confinamento permanente ou novas formas de exclusão, portanto, o falso programa de aumentar a segurança para salvar vidas repercutiria em danos ainda maiores à vida de muitos: o risco físico e o empobrecimento socioeconômico. O direito à vida em que, por exemplo, Enrique Dussel colocou tanta ênfase, não permite dissociar esses dois aspectos.
IHU On-Line – Como avalia a maneira como o governo espanhol enfrentou e enfrenta atualmente a pandemia?
José Antonio Perez Tapias – Podemos dizer que na Espanha, ainda que com o alto número de mortos por covid-19, se fez um trabalho esforçado para conter a pandemia. Não fica dúvidas de que, para isso, o confinamento de todos em seus domicílios, decretado pelo governo, foi decisivo e colocado em prática com base na figura constitucional do “estado de alarme”, prevista para grandes emergências. É importante destacar a resposta da sociedade, que cumpriu o confinamento e mostrou todo seu apoio aos trabalhadores da saúde e das chamadas “atividades essenciais” que permitiram que a vida prossiga sem carências no setor de alimentação ou outros. Cabe dizer, em relação ao governo, que o enfrentamento de uma situação tão inédita e complexa teria sido mais efetiva se as medidas tomadas tivessem sido feitas antes. Ainda que isso seja apreciação generalizada, é igualmente obrigatório dizer, por mais que não seja consolo algum, que aquele excesso de confiança inicial foi o erro comum da maioria dos governos em nosso entorno. Na Espanha, também havia a opinião amplamente aceita de ter um bom sistema de saúde pública. Era realmente muito eficiente em condições “normais”, fornecendo boa assistência universal à saúde, apesar dos cortes sofridos na última década devido a políticas neoliberais severas, acentuadas em resposta à crise financeira e econômica que afetou tanto a Espanha desde 2008. Nas circunstâncias da pandemia, as deficiências desse sistema de saúde são evidentes, precisando ser reforçadas pelo compromisso político com o público. A saúde não deve ser tratada como uma mercadoria e, consequentemente, não deve ser privatizada.
Como observado acima, o governo espanhol certamente está quebrando uma série de medidas sociais poderosas para conter o desemprego, apoiar pequenos empresários e trabalhadores independentes, e ajudar os mais vulneráveis com a próxima introdução de “renda mínima vital”. Ficam pendentes medidas fiscais que possam fornecer recursos a um Estado que vê seus recursos financeiros diminuídos devido à desaceleração econômica.
Na administração dos sucessivos “estados de alarme” que foram estendidos, ficou evidente a falta de agilidade do governo para o diálogo de qualquer ponto necessário com as Comunidades Autônomas, dada a complexidade territorial e institucional do Estado espanhol. Hoje, é reconhecida a necessidade de estruturar uma “cogovernança” eficaz, o que certamente seria alcançado se a Espanha tivesse se dotado das estruturas de um Estado federal efetivo. De resto, a vida política espanhola tensa, com algumas direitas em táticas obstrucionistas que se localizam nos “antipolíticos” – ditos pelas chaves arendtianas –, torna seus efeitos visíveis nas formas de enfrentar as crises, que felizmente são ignoradas enquanto a tensão não atinge a vida cotidiana dos cidadãos. De fato, a atitude das direitas representa um quadro difícil para a comissão de reconstrução constituída no parlamento.
Deve-se dizer que, ao escrever essas linhas, já se sabe, pelos estudos realizados, que apenas 5% da população espanhola atualmente possui imunidade ao coronavírus, ou porque passaram pela doença ou porque foram infectados e permaneceram assintomáticos. Esse baixo percentual, por um lado, responde ao sucesso do rigoroso confinamento que se seguiu, mas, por outro, está completamente longe da chamada “imunidade de grupo”, que pode funcionar como uma salvaguarda contra futuros picos na epidemia. Não é esse o caso, então o chamado “desescalonamento” será especialmente delicado, com um retorno a atividades de todos os tipos, contemplando medidas exigentes de precaução à saúde até que a vacina desejada que todos esperam esteja disponível. Mas isso leva tempo.
Concluo que um dos fracos flancos da ação do governo nesta crise é a comunicação. É uma opinião amplamente compartilhada que, apesar da superabundância de aparições e coletivas de imprensa, a apresentação de dados sobre infectados e falecidos tem sido confusa – não apenas sob a responsabilidade do governo central. Vale sublinhar que a coisa mais chocante para a sociedade espanhola foi a alta mortalidade em muitos lares de idosos – em grande número, particulares –, mostrando um escandaloso “buraco negro” que requer atenção urgente das autoridades.
IHU On-Line – Na sua opinião, a pandemia de covid-19 piora a crise da União Europeia, ou, pelo contrário, propõe uma nova direção para essa crise?
José Antonio Perez Tapias – A pandemia voltou a mostrar graves déficits da UE. Já se constataram na crise econômica de 2008, na qual o déficit democrático de suas instituições deu lugar a atuações antidemocráticas, impondo brutais medidas do que se chamou “políticas de austeridade”, as quais foram injustas políticas de ajuste aplicadas aos mais fracos. Merece ser recordada a forte crítica de Habermas, em artigo publicado em 2015, no fio das draconianas medidas impostas à Grécia, intitulado “O governo dos banqueiros”. Pois bem, na atual crise, o clima na UE é mais propenso a pautas solidárias ante uma pandemia que afeta a todos, porém se apresentam enormes travas para fazer operativa a solidariedade que se invoca.
Continua se evidenciando uma distância enorme entre a Europa do norte e a Europa do sul, com uma notável desconfiança entre os Estados, que é o pior que pode ocorrer a uma organização supraestatal como a UE, que não poderá se sustentar somente com o euro como aglutinante. Ou seja, com uma política monetária condicionante das medidas financeiras de apoio que se tomam, na qual a Alemanha segue sendo como a metrópole que decide frente a todos os demais países como periferia. A França levanta a voz quando pode e, como se vê, não é o melhor incentivo para um futuro de coesão. Falei de “Europa desalmada” sobretudo pela sua culpável paralisia frente à questão migratória. Hoje, se a Europa seguir bloqueada e sem sair agilmente de atoleiros burocráticos, não somente a sociedade deixará de assumi-la como projeto, mas, sim, será substituída por nacionalismos populistas e xenófobos que estão em alta.
IHU On-Line – A partir da crise que estamos vivendo atualmente, como se pode retomar a discussão sobre o bem comum? Sugere alguma orientação para tratar deste tema?
José Antonio Perez Tapias – Insisto, certamente, que a crise atual, desde a sanitária até a social, fez redescobrir socialmente o valor do comum, sobre o qual muitas vozes vinham dando destaque. A saúde pública é bem comum, por exemplo, como um sistema público de educação também o é. Porém, também uma democracia é digna desse nome, com instituições aptas para canalizar a participação cidadã. Em definitivo, o comum se assenta em uma natureza humana comum, base ontológica para abordar objetivos políticos de igualdade social e de gênero e exigências morais de igualdade de tratamento. Sem a convicção de que todos somos igualmente humanos, isto é, que não há humanos que sejam mais humanos do que outros, os objetivos de igualdade não se sustentam. Insisto nisso em meu livro Ser Humano. Questão de dignidade em todas as culturas (2009), porque considero tal ponto uma base imprescindível para levantar – e não se trata de fazê-lo incorrendo em falácia naturalista alguma – o reconhecimento igualitário de direitos.
Redescobrir o comum, ao modo, por exemplo, de Pierre Dardot e Christian Laval, é assentar as bases para uma alternativa efetiva ao individualismo neoliberal. Além disso, se entrelaça com levantamentos como os do já citado Dussel, com toda sua insistência na insuficiência do procedimentalismo “frio” da ética discursiva de [Karl-Otto] Apel, colocando em destaque a necessidade de contar com a vida e suas condições de viabilidade para a mesma exigência de justiça. Ademais, o destaque no comum igualmente permite conectar com propostas como as de Boaventura de Sousa Santos ao abrir passagem a “outras epistemologias”, vinculadas ao valor do comunitário de diferentes tradições, que foram esmagadas pelo imperialismo epistêmico ocidental, acompanhante do político, como denuncia o pensamento decolonial.
Enfim, o referencial crucial ao comum permite retomar a alternativa que enuncia Slavoj Žižek em termos de “comunismo ou barbárie”, com ecos do que um dia formulou Rosa Luxemburgo, como “socialismo ou barbárie”. O filósofo esloveno não estabelece com isso o prognóstico de ir a uma futura sociedade comunista como algo garantido, e menos ainda da maneira que o comunismo soviético era. Ele formula uma alternativa, implicando que não podemos – não devemos – seguir o caminho traçado até agora a partir do paradigma democida, ecocida e patriarcal do neoliberalismo. Isso é barbárie. É uma questão de enfrentar esse neoliberalismo, que é, por exemplo, o que nos deixou muito desarmados com a exaltação do individualismo e a anulação do social, com a priorização do privado e a negação do público, com submissão ao mercado e ao desmantelamento do Estado - até que seja necessário. Diante disso, a alternativa deve ser antineoliberal, e é para isso que Žižek aponta quando ele fala de comunismo. Da minha parte, captando a referência indispensável ao comum, acho que pode ser entendido o que é brincar com a grafia da palavra, afugentar os fantasmas que alguns encontram. Estamos diante da alternativa de "comun-ismo ou barbárie".
IHU On-Line – O senhor também aposta na redescoberta da fraternidade como uma forma de enfrentar a pandemia e os desafios da humanidade. Por quê?
José Antonio Perez Tapias – Falar sobre o comum implica radicalizar as demandas por igualdade e, com isso, reorientar a liberdade para abordagens não hipotecadas pelo individualismo burguês da modernidade ocidental. Não faz sentido ver a liberdade como um atributo de um indivíduo isolado, alheio às suas relações sociais. A relacionalidade que é constitutiva para nós – um ponto forte da antropologia marxista – nos leva a uma visão de liberdade que é inserida pela responsabilidade de ser um pelo outro, como destacado por [Emmanuel] Levinas. E é aqui que nos conectamos com o terceiro polo da “tríade revolucionária”: a fraternidade.
Apelamos muito à solidariedade, mas esse apelo é muitas vezes deixado em branco porque falta o pano de fundo de uma fraternidade verdadeiramente vivida: é a experiência de laços entre um e outro que nos compõe das profundezas. Os processos de subjetivação e a construção simbólica de identidades não são adequadamente implantados sem a consciência da irmandade do que nós, humanos, temos em comum. Se nos colocarmos na órbita de Foucault, a pandemia nos coloca em uma posição de entender que o autocuidado faz sentido quando nos permite cuidar dos outros. E essa fraternidade redescoberta também é apreciada como um valor republicano da vida em comum, que não só é tecido socialmente, mas também institui a política como um espaço comum de liberdade e participação. Obras como a de Antoni Domènech, retomando a fraternidade para uma recuperação republicana da tradição socialista, são referências indispensáveis.
IHU On-Line – Como será o mundo pós-pandêmico? Já é possível arriscar previsões?
Jose Antonio Perez Tapias – Neste momento, estamos ouvindo alusões frequentes a um “novo normal” como meta do futuro possível após a pandemia. Nessas alusões, um desejo de normalidade é mais detectado, contando como referência o que se tinha, embora o “normal” tivesse muito de patológico, com doses notáveis do “mal-estar freudiano na cultura”, do que um esforço pelo que é realmente novo. O novo, na verdade, é mais baseado na aceitação resignada das medidas de precaução no uso de máscaras e no distanciamento físico – não é uma questão de “distanciamento social”, como implicitamente dá a entender a fórmula que nos foi imposta! Enfrentar o estágio pós-pandêmico com critérios restauracionistas será de uma cegueira tão torpe quanto culpável. Entre outras coisas, isso nos privaria de fornecer recursos suficientes para enfrentar outras epidemias que possam surgir ou, simplesmente, enfrentar as revoltas das quais agora sofremos.
Uma pandemia, por si só, mesmo sendo um evento como o que a covid-19 supõe, não apenas gera mudanças futuras na direção desejável. A história da humanidade nos oferece muitos exemplos de como continuou a vida das sociedades humanas após várias catástrofes. Até o relato bíblico de Gênesis sobre o “dilúvio universal” nos transmite a experiência de uma humanidade que, após o desastre, retorna aos seus antigos caminhos. A “nova humanidade” da história mítica torna-se objeto de uma promessa divina inerente a uma história de salvação.
Numa perspectiva intra-histórica, após a pandemia, não haverá nova humanidade. Haverá humanos que, com a mesma condição, não são melhores nem piores. Ora, essa afirmação filosófico-antropológica não é pessimista, nem mesmo resignada, nem cínica. Devemos trabalhar nisso como premissa e, neste caso, a questão é como aprendemos coletivamente com a experiência que estamos tendo, para que nem tudo seja garantido pela fragilidade da boa vontade ou pelas mãos de uma memória fraca que pode ser superada.
A questão é, então, levar o que foi aprendido para realizações objetivas, nas instituições, nas normas, nos acordos políticos e nas práticas regidas socialmente, para que se possa verificar o progresso no sentido pretendido, desde o cuidado com a vida até a economia, com mais espaço para cooperar em torno do comum, e não para uma extrema competitividade invasiva que destrói as relações humanas. [Immanuel] Kant pode muito bem ser lembrado, estando nós já curados de otimismos ingênuos sobre o progresso, quando ele pensava na legalidade que se aproxima da justiça como um canal para ganhar espaço para a moralidade. Em suma, sabemos com [Jacques] Derrida que nem tudo é resolvido com a “força de lei” e que o justo que é alcançado – incluindo maior justiça com relação à Terra, como diria [Xavier] Zubiri hoje – não deixa de ter que lidar com o injusto que o persegue. Há sempre uma justiça além das demandas de uma vida digna na qual o cuidado com a vida ganha seu pleno sentido.