20 Março 2020
A situação atual reflete uma experiência universal de vulnerabilidade encarnada, porque sabemos que todas as nossas sofisticadas tecnologias médicas não podem remover o nosso risco. Somos vulneráveis também porque este é um novo vírus que traz incertezas quanto à sua rápida disseminação, duração incerta e à realidade de que ainda não existe um tratamento eficaz.
A opinião é da pediatra e irmã canadense Nuala Kenny, das Irmãs da Caridade, da Nova Escócia, Canadá. Autoridade da Ordem do Canadá desde 1999, é autora de vários livros, incluindo “Healing the Church” [Curando a Igreja] (Ed. Novalis, 2012) e “Rediscovering the Art of Dying” [Redescobrindo a arte de morrer] (2017). É coautora de “Still Unhealed: Treating the Pathology in the Clergy Sexual Abuse Crisis” [Ainda não curado: tratando a patologia na crise dos abusos sexuais clericais] (Ed. Novalis/Twenty-Third Publications, 2019).
O artigo foi publicado em La Croix International, 19-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Organização Mundial da Saúde declarou no dia 11 de março que o coronavírus, conhecido como Covid-19, havia se espalhado ao nível de uma pandemia.
O surto de Covid-19 já havia se tornado o foco da atenção do mundo em janeiro. E, desde então, passou a dominar todos os aspectos da vida – incluindo casamentos, reuniões familiares e cuidados com os doentes e moribundos.
Ele também teve um efeito dominante sobre o modo como organizamos eventos educacionais, culturais e políticos, assim como as finanças internacionais.
A disseminação do vírus afetou negativamente as estimadas práticas religiosas, levando a restrições ao recebimento da Eucaristia, a mudanças ou à eliminação do abraço da paz e até ao cancelamento da celebração da missa.
A situação reflete uma experiência universal de vulnerabilidade encarnada, porque sabemos que todas as nossas sofisticadas tecnologias médicas não podem remover o nosso risco. Somos vulneráveis também porque este é um novo vírus que traz incertezas quanto à sua rápida disseminação, duração incerta e à realidade de que ainda não existe um tratamento eficaz.
Compartilhamos uma consciência nova e visceral de que “nenhum homem (ou mulher) é uma ilha”. Todos estamos inseridos em sistemas e práticas globais. Nossa presumida “bolha” protetora de riqueza e vantagem social tem sido destruída à medida que até mesmo os passageiros de cruzeiros de luxo estão infectados.
Claramente, a infecção pode comprometer diretamente a vida e a saúde. O medo, a incerteza e a realidade do risco pessoal também podem levar ao egocentrismo, evidenciado pela estocagem de alimentos e de outros produtos ou pela discriminação dos outros.
O “distanciamento social” necessário para o controle da infecção também carrega consigo o risco de um distanciamento emocional e espiritual em um momento em que a conexão humana é crucial.
Assim como em todas as crises, também existem possibilidades únicas para o bem em nossas respostas à Covid -19.
Planos pandêmicos atentos aos desafios éticos e morais podem ser instrumentos para construir confiança e solidariedade em um mundo profundamente fraturado. Finalmente aprendemos a importância crucial da saúde pública para a equidade em saúde e para o bem comum em todos os momentos, não apenas em crises.
Janelas de oportunidade raramente aparecem no mundo das políticas públicas. Este pode ser um teste para a humanidade da nossa interdependência física e espiritual e da necessidade de solidariedade.
Durante a epidemia de Sars em 2003, tive o privilégio de trabalhar com meus colegas canadenses nas áreas de saúde pública, medicina, filosofia, ética feminista e teologia.
Exploramos as questões éticas e morais ligadas ao modo como eles estavam enfrentando a quase pandemia de Sars em Toronto.
Vimos alguns dos seguintes itens:
- a necessidade de equilibrar a liberdade e a privacidade individuais com a proteção do bem comum e da saúde pública. Isso levantou questões relacionadas à quarentena, aos cuidados adequados aos doentes, à minimização de custos com fundos e seguros especiais, e à prevenção da discriminação;
- conflitos entre o dever de cuidar dos doentes e proteger a segurança pessoal e familiar. Isso levantou questões sobre a reciprocidade no apoio daqueles que carregam um fardo desproporcional e os limites dos deveres profissionais;
- aceitar perdas econômicas na necessidade de controlar doenças mortais e o impacto que isso pode ter sobre outros pacientes em tratamento. Isso levantou uma questão sobre o apoio aos doentes graves e restrições aos visitantes a hospitais, o que exige atenção à justiça em longo prazo.
Concluímos que a renovação da saúde pública a fim de atender os desafios modernos exigia uma reflexão mais profunda sobre a própria natureza da saúde pública.
O fundamento da saúde pública é a prevenção de doenças e a promoção da saúde, a construção de comunidades física e socialmente saudáveis e a eliminação das desigualdades em saúde.
A “era heroica” da saúde pública foi nos séculos XIX e XX. Ela provocou um poderoso impacto na saúde e no bem-estar das comunidades, fornecendo todo o espectro da saúde pública.
Ela abordou questões de pobreza, saneamento, poluição, doenças epidêmicas, bioterrorismo e aquecimento global por meio de atividades de proteção da saúde, vigilância em saúde, prevenção de doenças e lesões, avaliação da saúde da população, promoção da saúde e, mais recentemente, resposta a desastres.
Nos últimos 50 anos, os principais avanços científicos e tecnológicos da medicina gradualmente colocaram esse foco nos indivíduos e levaram a uma comercialização e mercantilização vorazes do sistema de saúde.
A experiência pandêmica exige um interesse renovado em uma ética robusta, coerente e significativa da saúde pública, distinta da ética dos cuidados e pesquisas clínicas, em que a bioética está enraizada no individualismo liberal, com o seu tratamento das pessoas como autônomas e autodirigidas.
A ética do cuidado, a ética feminista e as abordagens comunitárias tentaram mover a bioética para uma origem comunitária, com pouco efeito.
Eu vivo na esperança de que possamos aprender com a experiência da Covid-19 e aceitar a nossa interdependência humana e a necessidade de solidariedade. Minha esperança é sustentada por duas fontes aparentemente incompatíveis: o relato relacional da ética feminista secular da ética em saúde pública e a minha fé, particularmente no ensino social católico.
A autonomia relacional assume o fato de que as pessoas são seres inerentemente sociais, políticos e econômicos. Ela está mais preocupada com a justiça social do que com a justiça distributiva. Isso requer a exploração da estrutura política e social para enfrentar padrões de injustiça sistêmica.
A solidariedade no entendimento relacional promove um interesse compartilhado em sobrevivência, segurança e proteção que exige a cooperação de todos. Ou nos unimos ou nos separamos ainda mais.
Para o cristão, a solidariedade não é uma opção. Pelo contrário, é a consequência inevitável de sermos membros do Corpo de Cristo, filhos de Deus, irmãos e irmãs, próximos uns dos outros.
A Igreja também ensina que a humanidade é inerentemente social e que cada pessoa, por natureza, requer uma comunidade de outras pessoas para realizar a sua personalidade (CIC, nn. 1878-1880).
O ensino católico apoia a possibilidade da contribuição da saúde pública para uma transformação da sociedade ordenada ao bem comum, que é “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”.
O Papa Francisco captou bem o desafio em sua encíclica Laudato si’ [n. 156].
“A interdependência obriga-nos a pensar num único mundo, num projeto comum”, escreve.
“Mas a mesma inteligência que foi utilizada para um enorme desenvolvimento tecnológico não consegue encontrar formas eficazes de gestão internacional para resolver as graves dificuldades ambientais e sociais”, continua o papa.
“Para enfrentar os problemas de fundo, que não se podem resolver com ações de países isolados, torna-se indispensável um consenso mundial” (LS 164).
Que esse consenso surja a partir do nosso risco compartilhado da Covid-19.
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Os perigos e as possibilidades de uma pandemia. Artigo de Nuala Kenny - Instituto Humanitas Unisinos - IHU