17 Janeiro 2019
"Rosa Luxemburgo não era infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e as suas ideias não constituem um sistema teórico fechado, uma doutrina dogmática para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas, sem dúvida, o seu pensamento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina capitalista que nos tritura", escreve Michael Löwy, sociólogo formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) em artigo publicado no número 15 da revista semestral Margem Esquerda – Ensaios Marxistas da Boitempo, com o título, “A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo”, e reproduzido por Esquerda.net, 11-01-2019.
Algumas palavras pessoais, a título de introdução. Descobri a Rosa Luxemburgo por volta de 1955, aos 17 anos, graças ao meu amigo Paul Singer. Paul explicou-se longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo foram os textos políticos que me passou, a crítica do centralismo, a visão revolucionária e democrática de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga Socialista Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragtenberg, Hermínio Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader. Tínhamos um local de reuniões no centro de São Paulo que media 2×5 metros e cuja única ornamentação era um quadro com um desenho que representava Rosa Luxemburgo.
Nessa época, recebi da minha mãe um exemplar das cartas de prisão[fn]Rosa Luxemburgo, “Briefe” (Berlim, Verlag der Jugend-Internationale, 1927) que tinha trazido de Viena quando emigrou para o Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa da revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a orientação de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 1964. Esta tese está disponível no Brasil com o título “A teoria da revolução do jovem Marx” (Boitempo, 2013), toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É uma paixão que dura até hoje.
Quando publicou as “Teses sobre Feuerbach” [Em “A ideologia alemã”, Boitempo 2007] de Marx, em 1888, Engels qualificou-as de “primeiro documento em que está depositado o germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com efeito, nesse texto Marx supera dialeticamente – a famosa Aufhebung, negação/conservação/superação – o materialismo e o idealismo anteriores e formula uma nova teoria, que se poderia designar como filosofia da práxis. Enquanto os materialistas franceses insistiam que é necessário mudar as circunstâncias para que os seres humanos se transformem, os idealistas alemães acreditavam que, ao promover uma nova consciência nos indivíduos, se modifica depois a sociedade. Contra essas duas percepções unilaterais, que conduziam ao impasse – e à busca de um “Grande Educador” ou Salvador Supremo – Marx afirma na Tese III: “A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou mudança de si mesmo [Selbstveränderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis revolucionária”. Por outras palavras: na prática revolucionária, na ação coletiva emancipadora, o sujeito histórico – as classes oprimidas – transforma ao mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência. Marx volta a essa problemática na Ideologia alemã, na qual escreve:
“A revolução, portanto, não é apenas necessária porque não há outro meio de derrubar a classe dominante, mas porque a classe subversiva [stürzende] pode ter êxito apenas por meio de uma revolução para se livrar de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz de efetuar uma nova fundação da sociedade.” Karl Marx e Friedrich Engels, “L’idéologie allemande” (Paris, Éditions Sociales, 1968), VI, p. 243. [Ed. bras.: “A ideologia alemã”, São Paulo, Boitempo, 2007.]
Isso significa que a autoemancipação revolucionária é a única forma possível de libertação: é só pela sua própria práxis, pela sua experiência na ação, que as classes oprimidas podem transformar a sua consciência, ao mesmo tempo que subvertem o poder do capital. É verdade que em textos posteriores, como, por exemplo, no famoso prefácio de 1857 à “Contribuição à Crítica da Economia Política” [em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], encontramos uma versão muito mais determinista, que vê a revolução como resultado inevitável da contradição entre forças e relações de produção, mas o princípio da autoemancipação dos trabalhadores continua a inspirar o pensamento político de Marx.
É Antonio Gramsci, nos “Cadernos da Prisão” [em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], que vai utilizar pela primeira vez a expressão “filosofia da práxis” para se referir ao marxismo. Afirmam alguns que isso seria apenas uma astúcia para enganar os guardas de prisão fascistas, que poderiam desconfiar de qualquer referência a Marx; mas esse argumento não explica porque não usou outra fórmula, como “dialética racional” ou “filosofia crítica”. Na verdade, com essa expressão, ele define de modo preciso e coerente o que distingue o marxismo como visão de mundo específica e distancia-se radicalmente das leituras positivistas e evolucionistas do materialismo histórico.
Poucos marxistas do século XX estiveram tão próximos do espírito dessa filosofia marxista da práxis como Rosa Luxemburgo. Claro, ela não escrevia textos filosóficos nem elaborava teorias sistemáticas – como observa com razão Isabel Loureiro: “as suas ideias, dispersas em artigos de jornais, brochuras, discursos, cartas […] são muito mais respostas imediatas à conjuntura do que uma teoria lógica e internamente coerente”. Isabel Loureiro, “Rosa Luxemburgo: os dilemas da ação revolucionária” (São Paulo, Unesp, 1995, p. 23). Ainda assim, a filosofia da práxis, que ela interpreta de maneira original e criativa, é o fio condutor – no sentido elétrico da palavra – da sua obra e da sua ação enquanto revolucionária. Mas o seu pensamento está longe de ser estático: é uma reflexão em movimento, que se enriquece com a experiência histórica. Tentaremos reconstituir a evolução do seu pensamento usando alguns exemplos.
É verdade que os seus escritos são atravessados por uma tensão entre o determinismo histórico – a inevitabilidade da derrocada do capitalismo – e o voluntarismo da ação revolucionária. Isso aplica-se em particular aos seus primeiros trabalhos, anteriores a 1914; “Reforma ou revolução?”, de 1899, obra com que Rosa Luxemburgo se tornou conhecida no movimento operário alemão e internacional, é um exemplo claro dessa ambivalência. Contra Bernstein, insiste que a evolução do capitalismo se orienta no sentido de um desmoronamento (Zusammenbruch) e que esse desmoronamento é “a via histórica que conduz à realização da sociedade socialista”. Trata-se, em última análise, de uma variante socialista da ideologia do progresso linear e inevitável que dominou o pensamento ocidental desde a “Filosofia da Ilustração”. O que salva o seu argumento de um economicismo fatalista é a pedagogia revolucionária da ação: “Somente no curso […] de lutas demoradas e tenazes, poderá o proletariado chegar ao grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória definitiva da revolução”. Rosa Luxemburgo, “Reforma ou revolução?” (São Paulo, Expressão Popular, 1999), p. 24, 41 e 105. Cito a tradução brasileira, de Lívio Xavier, bela figura militante e intelectual que ainda cheguei a conhecer.
Essa pedagogia dialética da luta é também um dos principais eixos da polêmica com Lenine, em 1904:
“É apenas no decorrer da luta que o exército do proletariado se recruta e que toma consciência dos fins dessa luta. A organização, a conscientização [Aufklärung] e o combate não são fases distintas, mecanicamente separadas no tempo […] mas apenas aspectos diversos de um único e mesmo processo.”
É claro que a classe se pode se equivocar no decurso desse combate, mas, em última análise, “os erros cometidos por um movimento realmente revolucionário são histórica e infinitamente mais fecundos e valiosos que a infalibilidade do melhor ‘Comité Central’”.
A autoemancipação dos oprimidos implica a autotransformação da classe revolucionária por sua experiência prática; esta, por sua vez, produz não só à consciência – tema clássico do marxismo –, mas também à vontade:
“O movimento histórico-universal [Weltgeschichtlich] do proletariado até à sua vitória é um processo cuja particularidade reside no fato de que aqui, pela primeira vez na história, as próprias massas populares impõem a sua vontade contra as classes dominantes […]. Entretanto, as massas não podem conquistar essa vontade senão na luta quotidiana com a ordem estabelecida, isto é, no quadro dessa ordem”. Idem, “Organisationsfragen der russischen Sozialdemokratie” (1904), em “Die Russische Revolution” (Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1963), p. 27-8, 42 e 44. [Ed. bras.: “A Revolução Russa”, Petrópolis, Vozes, 1991.]
Poderíamos comparar a visão de Lenine com a de Rosa Luxemburgo na seguinte imagem: para Vladimir Ilitch, redator do jornal Iskra, a centelha revolucionária é trazida pela vanguarda política organizada, de fora para dentro das lutas espontâneas do proletariado; para a revolucionária judia polaca, a centelha da consciência e da vontade revolucionária acende-se no combate, na ação de massas. É verdade que a sua visão de partido como expressão orgânica da classe correspondia mais à situação na Alemanha do que na Rússia ou na Polônia, onde já se colocava a questão da diversidade de partidos em relação ao socialismo.
Os eventos revolucionários de 1905 no Império Russo czarista vão amplamente confirmar Rosa Luxemburgo na sua convicção de que o processo de tomada de consciência das massas operárias resulta menos da atividade “esclarecedora” do partido do que da experiência de ação direta e autônoma dos trabalhadores:
“É o proletariado que vai derrubar o absolutismo na Rússia. Mas o proletariado necessita para isso de um alto grau de educação política, de consciência de classe e de organização. Todas essas condições não podem surgir da leitura de panfletos e brochuras, mas somente na escola da luta e na luta política viva, no curso da revolução em marcha. […] O súbito levantamento geral [Generalerhebung] do proletariado em janeiro, sob a forte impulsão dos acontecimentos de São Petersburgo, foi, na sua ação dirigida para o exterior, um ato político de declaração de guerra revolucionária ao absolutismo. Mas essa primeira ação geral direta da classe teve um impacto ainda maior numa direção interna, despertando pela primeira vez, como que por um choque elétrico [einen elektrischen Schlag], o sentimento e a consciência de classe em milhões e milhões de indivíduos”. Idem, “Massenstreik, Partei und Gewerkschaften”, em “Gewerkschaftskampf und Massenstreik” (Berlim, Vereinigung Internationaler Verlagsanstalten, 1928, p. 426-7) [ed. bras.: “Greve de massas, partido e sindicatos”, São Paulo, Kayros, 1979]. Trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo sobre a greve de massas, organizada por seu excelente discípulo e biógrafo Paul Frölich, expulso nos anos 20 do Partido Comunista. Consegui esse livro num alfarrabista em Tel-Aviv; o exemplar tinha o carimbo do Kibutz Ein Harod, “Seminário de Ideias, Biblioteca Central”. O proprietário do livro era, sem dúvida, um esquerdista judeu alemão que emigrou para a Palestina em 1933 e entregou sua biblioteca ao kibutz onde se instalou. Com a morte dos velhos militantes do kibutz, e como a nova geração não lê alemão, a biblioteca vendeu ao alfarrabista o seu stock de livros na língua de Marx.
É verdade que a fórmula polêmica sobre “panfletos e brochuras” parece subestimar a importância da teoria revolucionária nesse processo; por outro lado, a atividade política de Rosa Luxemburgo, que consistia em grande parte na redação de artigos de jornais e de brochuras – sem falar de suas obras teóricas no campo da economia política – demonstra, sem dar margem a dúvidas, o significado decisivo que atribuía ao trabalho teórico e à polêmica política no processo de preparação da revolução.
Na famosa brochura de 1906 sobre a greve de massas [publicado em “As Armas da Crítica”, Boitempo 2012], Rosa Luxemburgo ainda utiliza os argumentos deterministas tradicionais: a revolução ocorrera “com a necessidade de uma lei da natureza”. Mas a sua visão concreta do processo revolucionário coincide com a teoria da revolução de Marx, tal como ele a desenvolve na Ideologia alemã, obra que ela não conhecia, já que só foi publicada após a sua morte: a consciência revolucionária não se pode generalizar senão no curso de um movimento “prático”, a transformação “maciça” dos oprimidos só pode se generalizar no decorrer da própria revolução. A categoria da práxis – que, para ela e para Marx, é a unidade dialética entre o objetivo e o subjetivo, a mediação pela qual a classe em si se torna para si – permite superar o dilema paralisante e metafísico da social-democracia alemã, entre o moralismo abstrato de Bernstein e o economicismo mecânico de Kautsky: enquanto, para o primeiro, a mudança “subjetiva”, moral e espiritual dos “homens” é a condição do advento da justiça social, para o segundo é a evolução econômica objetiva que leva “fatalmente” ao socialismo. Isso permite entender melhor por que razão Rosa Luxemburgo se opunha não só aos revisionistas neokantianos, mas também, a partir de 1905, à estratégia de “atentismo” passivo defendida pelo assim chamado “centro ortodoxo” do partido.
Essa mesma visão dialética da práxis é que lhe permite superar o tradicional dualismo encarnado no Programa de Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão entre as reformas (ou o “programa mínimo”) e a revolução (ou o “objetivo final”). Pela estratégia da greve de massas que ela propõe em 1906 – contra a burocracia sindical – e em 1910 – contra Kautsky –, Rosa Luxemburgo encontra precisamente o caminho capaz de transformar as lutas econômicas ou o combate pelo sufrágio universal num movimento revolucionário geral.
Ao contrário de Lenine, que distingue a “consciência sindical” da “consciência social-democrata”, ela sugere uma distinção entre a consciência teórica latente, característica do movimento operário no período de dominação do parlamentarismo burguês, e a consciência prática e ativa, que surge no processo revolucionário, quando as próprias massas, e não apenas os deputados e dirigentes do partido, aparecem na cena política, cristalizando a sua “educação ideológica” diretamente na práxis; é graças a essa consciência prático-ativa que as camadas menos organizadas e mais atrasadas se podem tornar, num período de luta revolucionária, o elemento mais radical. Dessa premissa decorre a sua crítica àqueles que baseiam a sua estratégia política numa superestimação do papel da organização na luta de classes – o que é acompanhado em geral da subestimação do proletariado não organizado –, esquecendo a ação pedagógica da luta revolucionária: “Seis meses de revolução farão mais para a educação das massas atualmente não organizadas do que dez anos de reuniões públicas e distribuição de panfletos”. Ibidem, p. 455-7.
Então, Rosa Luxemburgo é espontaneísta? Não é bem assim. Na brochura sobre “Greve de massas, partido e sindicatos” (1906) [em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], ela insiste que o papel da “vanguarda consciente” não é esperar “com fatalismo” que o movimento popular espontâneo “caia do céu”. Ao contrário, seu papel é precisamente “preceder [vorauseilen] a evolução das coisas e tentar acelerá-la”. Ela reconhece que o partido socialista deve tomar “a direção política” da greve de massas, o que consiste em “dar à batalha a sua palavra de ordem, a sua tendência, assim como a tática da luta política”; chega a afirmar que a organização socialista é “a vanguarda [Vorhut] dirigente de todo o povo trabalhador” e que “a clareza política, a força, a unidade do movimento resultam precisamente dessa organização”. Ibidem, p. 445 e 457.
É interessante observar que a organização polaca dirigida por Rosa Luxemburgo e Leo Jogiches, o Partido Social-Democrata do Reino da Polónia e Lituânia (SDKPiL), clandestina e revolucionária, tinha mais semelhanças com o partido bolchevique do que com a social-democracia alemã. Deve-se também levar em conta, na discussão das concepções organizacionais de Rosa Luxemburgo, as suas teses sobre a Internacional como partido mundial centralizado e disciplinado, propostas num documento redigido em 1914, após o colapso da Segunda Internacional. Por uma ironia da história, Karl Liebknecht, numa carta à amiga Rosa Luxemburgo, censurou essa concepção da nova Internacional como sendo “demasiado centralista e mecânica”, com “‘disciplina’ em excesso e muito pouca espontaneidade”, considerando as massas “demasiados instrumentos da ação, não portadoras de vontade; mais como instrumentos da ação desejados e decididos pela Internacional, e menos desejados e decididos por elas mesmas”. Ver Karl Liebknecht, “À Rosa Luxemburg: remarques à propos de son projet de thèses pour le groupe ‘Internationale’”, Partisans, n. 45, jan. 1969, p. 113.
O otimismo determinista (econômico) da teoria do Zusammenbruch, a derrocada do capitalismo como vítima das suas próprias contradições, não desaparece dos seus escritos, mas, ao contrário, encontra-se no centro da sua grande obra econômica “A acumulação do capital” [trecho em “As armas da crítica”, Boitempo, 2012], de 1911. O texto que vai superar essa visão tradicional do movimento socialista do começo do século é a brochura “A Crise da Social Democracia”, escrita na prisão em 1915, publicada na Suíça em janeiro de 1916 e assinada com o pseudônimo Junius. Esse documento, graças à palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, é um marco na história do pensamento marxista. Curiosamente, o argumento de Rosa Luxemburgo começa por se referir às “leis inalteráveis da história”; ela observa que a ação do proletariado “contribui para determinar a história”, mas parece acreditar que se trata apenas de “acelerar ou retardar” o processo histórico. Até aqui, nada de novo!
Logo em seguida, porém, ela compara a vitória do proletariado a “um salto da humanidade do reino animal para o reino da liberdade”, acrescentando: esse salto não será possível “se a faísca incendiária [zündende Funke] da vontade consciente das massas não surgir das circunstâncias materiais que são fruto do desenvolvimento anterior”. Aqui aparece então a famosa Iskra, essa centelha da vontade revolucionária que é capaz de fazer explodir a pólvora seca das condições materiais. Mas o que produz essa zündende Funke? É graças a uma “grande cadeia de poderosas lutas” que “o proletariado internacional fará o seu aprendizado sob a direção da social-democracia e tentará tomar em suas mãos a sua própria história [seine Geschichte]”. Rosa Luxemburgo, “Brochura Junius”, em “Rosa, a vermelha” (2. ed., São Paulo, Busca Vida, 1988), p. 114-5, corrigido pelo original alemão Die Krise der Sozialdemokratie von Junius (Bern, Unionsdruckerei, 1916), p. 11. Essa cópia da edição original pertenceu ao meu professor e orientador Lucien Goldmann; recebi-a recentemente da sua viúva, Annie Goldmann. Por outras palavras: é na experiência prática da luta que se acende a centelha da consciência revolucionária dos oprimidos e explorados.
Ao introduzir a expressão “socialismo ou barbárie”, Junius refere-se à autoridade de Engels num escrito de “quarenta anos atrás” (o “Anti-Dühring”): “Friedrich Engels disse certa vez: ‘A sociedade burguesa acha-se num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie’”.[1] Na verdade, o que Engels disse é bastante diferente:
“As forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista moderno, assim como o sistema de repartição dos bens que criou, entraram em contradição flagrante com o modo de produção em si, e isso a tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer”.[2]
O argumento de Engels – essencialmente econômico e não político, como o de Junius – é bem mais retórico, uma espécie de demonstração por absurdo da necessidade do socialismo, senão a sociedade moderna vai “perecer” – fórmula vaga que não se sabe bem a que se refere. Na verdade, foi Rosa Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno da palavra, a expressão “socialismo ou barbárie”, que teria tanto impacto no curso do século XX. Se se refere a Engels, é talvez para tentar dar legitimidade maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra – e o desmoronamento do movimento operário internacional, em agosto de 1914 – que terminou abalando sua convicção na vitória inevitável do socialismo. Nos parágrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista inovador:
“Encontramo-nos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, diante da terrível opção: ou triunfa o imperialismo, provocando a destruição de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o despovoamento, a desolação, a degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o socialismo, ou seja, a luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo, os seus métodos, as suas guerras. Tal é o dilema da história universal, a sua alternativa de ferro, a sua balança a oscilar no ponto de equilíbrio, aguardando a decisão do proletariado”.
Pode-se discutir o significado do conceito de “barbárie”: trata-se, sem dúvida, de uma barbárie moderna, “civilizada”, portanto a comparação com a Roma Antiga é pouco útil e, nesse caso, a afirmação da brochura Junius revela-se profética: o fascismo alemão, manifestação suprema da barbárie moderna, resultou da derrota do socialismo. Contudo, o mais importante na fórmula “socialismo ou barbárie” é a palavra “ou”: trata-se do princípio de uma história aberta, de uma alternativa ainda não decidida (pelas “leis da história” ou da economia), que depende, em última análise, de fatores “subjetivos”: a consciência, a decisão, a vontade, a iniciativa, a ação, a práxis revolucionária. Não insisto mais porque escrevi já há muitos anos um artigo sobre essa questão.[3] Como aponta Isabel Loureiro no seu belo livro, é verdade que mesmo na brochura Junius, assim como em textos posteriores de Rosa Luxemburgo, ainda encontramos referências ao colapso inevitável do capitalismo, à “dialética da história” e à “necessidade histórica do socialismo”.[4] Mas de alguma maneira, com a fórmula “socialismo ou barbárie”, colocavam-se as bases de uma outra concepção da “dialética da história”, distinta do determinismo econômico e da ideologia iluminista do progresso inevitável.
Voltamos a encontrar a filosofia da práxis no centro da polêmica de 1918 sobre a Revolução Russa – outro texto capital redigido atrás das grades da prisão. O teor desse documento é conhecido: de um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenine e Trotsky à frente, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revolução de Outubro; de outro, um conjunto de críticas, algumas bastante discutíveis, como as questões agrária e nacional, e outras, como o capítulo da democracia, que aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionária judia polaco alemã é, acima de tudo, a supressão das liberdades democráticas pelos bolcheviques: liberdade de imprensa, de associação e de reunião, que são precisamente a garantia da “atividade política das massas operárias”; sem elas, “é inconcebível a dominação das grandes massas populares”. As tarefas gigantescas da transição ao socialismo – “às quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resolução” – não podem ser realizadas sem “uma intensa educação política das massas e uma acumulação de experiências”, impossíveis sem liberdades democráticas. A construção de uma nova sociedade é uma “terra virgem”, que levanta “problemas para milênios”; ora, “só a experiência é capaz de trazer as correções necessárias e abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto histórico “nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das massas populares (Volksmassen) deve participar nessa experiência, de outro modo “o socialismo é decretado, outorgado, por uma dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde”. Para os inevitáveis erros do processo, “o único sol curativo e purificador é a própria revolução e o seu princípio renovador, a vida espiritual, a atividade e a autorresponsabilidade [Selbstverantwortung] das massas que surgem com ela e formam-se na mais ampla liberdade política”.[5]
Esse argumento é muito mais importante do que o debate sobre a Assembleia Constituinte, no qual se concentraram as objeções “leninistas” ao texto de 1918. Sem liberdades democráticas é impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação popular pela experiência prática, a autoemancipação revolucionária dos oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe trabalhadora.
Georg Lukács, no seu importante ensaio “Rosa Luxemburgo marxista”, de janeiro de 1921, mostra com grande agudeza como, graças à unidade da teoria e da práxis (formulada “por Marx nas suas Teses sobre Feuerbach”), Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da impotência dos movimentos social-democratas, “o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das puras intenções”. O que significa essa unidade dialética?
Da mesma forma que o proletariado como classe não pode conquistar e guardar a sua consciência de classe, elevar-se ao nível da sua tarefa histórica (objetivamente dada) senão no combate e na ação, o partido e o militante individual não podem apropriar-se realmente da sua teoria senão ao passar essa unidade na sua práxis.[6]
Portanto, é surpreendente que, apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukács redija o ensaio “Comentários críticos sobre a crítica da Revolução Russa em Rosa Luxemburgo”, que também acaba por figurar em “História e consciência de classe” e em que rejeita na totalidade o conjunto dos comentários dissidentes da fundadora da Liga Espártaco, afirmando, ainda por cima, que ela “representa a revolução proletária nas formas estruturais das revoluções burguesas”[7] – uma acusação pouco credível, como mostra Isabel Loureiro.[8] Como explicar a diferença, no tom e no conteúdo, entre o ensaio de janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma conversão rápida ao leninismo ortodoxo? Possivelmente, mas também entra em jogo a posição de Lukács em relação aos debates do comunismo alemão. Paul Levi, principal dirigente do Partido Comunista Alemão, tinha se oposto à “Ação de Março de 1921”, uma tentativa fracassada de insurreição comunista na Alemanha, que teve o apoio entusiasmado de Lukács, mas foi criticada por Lenine. Excluído do partido, Paul Levi decide publicar em 1922 o manuscrito sobre a Revolução Russa, que Rosa Luxemburgo lhe tinha confiado em 1918. A polêmica de Lukács em relação a esse documento é também, indiretamente, um acerto de contas com Paul Levi.
Na verdade, o capítulo sobre democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo é um dos textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da teoria crítica e do pensamento revolucionário no século XX. E difícil imaginar uma refundação do socialismo no século XXI que não tenha em conta os argumentos desenvolvidos nessas páginas febris. Os representantes mais inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest Mandel, reconheciam que essa crítica de 1918 ao bolchevismo, no que diz respeito à questão das liberdades democráticas, era, em última análise, justificada. É óbvio que a democracia à qual se refere Rosa Luxemburgo é a exercida pelos trabalhadores num processo revolucionário, e não a “democracia de baixa intensidade” do parlamentarismo burguês, na qual as decisões importantes são tomadas por banqueiros, empresários, militares e tecnocratas.
A zündende Funke, a centelha incendiária de Rosa Luxemburgo, brilhou uma última vez em dezembro de 1918, na conferência do congresso de fundação do Partido Comunista Alemão (Liga Espártaco). Ainda encontramos nesse texto referências à “lei do desenvolvimento objetivo e necessário da revolução socialista”, mas trata-se, na realidade, da “amarga experiência” que várias forças do movimento operário têm de fazer antes de encontrarem o caminho revolucionário. As últimas palavras dessa memorável conferência são diretamente inspiradas pela perspectiva da práxis autoemancipadora dos oprimidos:
“É só exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. Não há outra maneira de ensinar-lhe. Nós já superamos, felizmente, o tempo em que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado. Aparentemente, esse tempo ainda não passou para os marxistas da escola de Kautsky. Educar as massas queria dizer: fazer-lhes discursos, difundir panfletos e brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não necessita de nada disso. A sua educação faz-se quando eles passam à ação [zur Tat greifen]”.
Aqui Rosa Luxemburgo refere-se a uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat! No começo de tudo não se encontra o Verbo, mas a Ação! Nas palavras da revolucionária marxista: “No começo era a Ação, tal é aqui nossa divisa; e a ação é quando os conselhos de operários e de soldados se sentem chamados a tornarem-se a única força pública do país e aprendem a sê-lo”.[9] Poucos dias depois, ela seria assassinada pelos paramilitares (Freikorps) mobilizados pelo governo social-democrata contra a insurreição dos operários espartaquistas de Berlim.
Rosa Luxemburgo não era infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e qualquer militante, e as suas ideias não constituem um sistema teórico fechado, uma doutrina dogmática para ser aplicada em qualquer lugar e em qualquer época. Mas, sem dúvida, o seu pensamento é uma caixa de ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina capitalista que nos tritura. Não é por acaso que ela se tornou nos últimos anos, em particular na América Latina, uma das referências mais importantes do debate acerca de um socialismo do século XXI, capaz de superar os impasses das experiências, reivindicando o socialismo do século passado, seja a social-democracia, seja o estalinismo. A sua oposição irreconciliável ao capitalismo e ao imperialismo, a sua concepção de um socialismo revolucionário e ao mesmo tempo democrático, baseado na práxis autoemancipadora dos trabalhadores, na autoeducação pela experiência e pela ação das grandes massas populares, é de uma impressionante atualidade, sobretudo no Brasil e na América Latina.
Dizem os jornais que recentemente, noventa anos após a sua morte, o seu corpo teria sido encontrado. Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que a enterrem uma e outra vez, não conseguirão libertar-se de seu espectro. Ninguém conseguirá apagar a centelha incendiária das suas ideias.
1 Ibidem, p. 115.
2 Friedrich Engels, Anti-Dühring (Boitempo, 2015).
3 Michael Löwy, “O significado metodológico da fórmula ‘socialismo ou barbárie’”, em Método dialético e teoria política (3. ed., São Paulo, Paz e Terra, 1985).
4 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.
5 Rosa Luxemburgo, “A Revolução Russa”, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22, corrigido pelo original alemão, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.
6 Georg Lukács, “Rosa Luxemburg, marxiste”, em Histoire et conscience de classe (Paris, Minuit, 1960), p. 65. [Ed. bras.: História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003.]
7 Ibidem, p. 321.
8 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.
9 Rosa Luxemburgo, “Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund)”, em Ausgewählten Reden und Schriften (Berlim, Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edição que estou utilizando aqui tem uma história curiosa: trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa Luxemburgo editada pelo “Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK der SED”, com prefácio de Wilhelm Pieck, dirigente stalinista da República Democrática Alemã, e introduções de Lenin e Stalin, com críticas aos “erros” da autora. Comprei esse exemplar num sebo e descobri que trazia uma dedicatória em inglês, datada de 1957, assinada por “Tamara e Isaac” – sem dúvida, Tamara e Isaac Deutscher –, em que pediam desculpas por não terem encontrado uma edição sem todas essas supérfluas “introduções”!
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