03 Abril 2020
"Essa pandemia nos lembra as limitações do senso comum e os perigos de seu preconceito contra a teoria – particularmente quando a teoria toma a forma de cientistas nos alertando sobre verdades inconvenientes que não podemos ver, sentir ou tocar imediatamente. O anti-intelectualismo e a desconfiança das elites nos Estados Unidos têm muitas causas, mas o preconceito geral constitui seu coração", escreve Roberto J. de la Noval, doutorando em Teologia na Universidade de Notre Dame, em artigo publicado por La Croix International, 01-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Enquanto a pandemia de coronavírus se espalha pelo mundo, os estadunidenses estão dando o melhor para “achatar a curva” pelas práticas de distanciamento social.
Esse é o conselho dos cientistas do mundo, que estão rastreando essa doença que tem custado tantas vidas.
Mas no meio desse impulso coletivo para garantir a segurança com as medidas necessárias, um certo número de pessoas ainda se recusa a levar essa ameaça a sério.
Nós sabemos agora, por exemplo, que o coronavírus pode se incubar no corpo por vários dias sem apresentar sintomas, no entanto, ainda se pode ouvir de alguns que, desde que ninguém se sinta doente, está tudo bem em fazer reuniões públicas.
Isso apenas acelera o contágio, pois as pessoas aparentemente saudáveis funcionam inconscientemente como vetores de um vírus que provavelmente encontrará seu caminho para alguém mais suscetível à doença.
Os lockdowns obrigatórios em todo o país em breve tornarão essas rebeliões menores irrelevantes.
No entanto, vale a pena nos perguntarmos: por que tantas pessoas – tanto seculares quanto religiosas, políticos eleitos e cidadãos comuns – falharam em atender às advertências dos cientistas?
Há pelo menos quatro fontes dessa negligência: oportunismo político, aprisionamento na política das “guerras culturais”, uma profunda ignorância de nossa própria fragilidade e uma desconfiança geral da ciência.
Juntos, eles são exemplos excelentes do que o filósofo e teólogo jesuíta Bernard Lonergan (1904-1984) chamou de preconceito humano.
Em Insight (1957), seu monumental estudo sobre o processo humano de aprendizado, Lonergan discute as condições não somente para o conhecimento mas também para o desconhecimento – isso é, as formas que adquirimos conhecimento errado.
O processo humano de descoberta, de insight, é sempre motivado pelo nosso inato desejo de saber, essa orientação básica de admiração ao mundo descrita por Platão e Aristóteles e descoberta por qualquer pessoa que já tenha enfrentado o incessante questionamento de uma criança.
Somos, por nossa natureza dada por Deus, orientados para a verdade pelo impulso inelutável dentro de nós para fazer perguntas e buscar a realidade através da investigação.
Preconceito é algo que impede o dinamismo instintivo de nossa mente de ver a experiência, buscando entender e fazer um julgamento desinteressado sobre as evidências que a vida oferece.
Lonergan identifica muitos tipos de preconceitos, mas dentre eles estão dois que ajudam a explicar as fontes de negligência diante da crise da covid-19.
O primeiro é o preconceito de grupo. Como toda instância de descoberta ocorre no contexto da comunidade, o processo de alcançar a verdade sempre pode ser interferido pelos interesses da comunidade.
Há verdades que preferimos não saber e, portanto, perguntas que evitaremos fazer, porque isso pode nos custar alguma coisa.
À medida que as sociedades se desenvolvem, observa Lonergan, um processo de acumulação de insights leva ao progresso. Mas esse processo cumulativo pode voltar na direção oposta, de modo que a sociedade entre em um estado de declínio como resultado do preconceito de grupo causando estragos na vida política. Nesse ponto, algumas questões importantes estão fora da mesa.
Esse estado de declínio certamente está em exibição, hoje, institucionalmente na Casa Branca. Lá, o presidente Trump criou uma cultura de medo que seus deputados hesitam em lhe contar notícias que ele pode não querer ouvir.
Ansioso por suas perspectivas eleitorais, caso essa pandemia tenha um grande impacto econômico, Trump insistiu em minimizar a gravidade desse novo coronavírus.
A recusa de seu governo em fazer perguntas críticas sobre o alcance real desta crise e o que isso poderia fazer com o sistema de saúde estadunidense já custou vidas e provavelmente custará muitas mais nas próximas semanas e meses. Este é um sinal de uma sociedade que está em sério declínio político.
Também testemunhamos o preconceito de grupo na resposta de certos comentaristas religiosos que usam argumentos teológicos ilusórios para semear dúvidas na sabedoria das recomendações de saúde pública.
Suspender a celebração pública dos sacramentos é se render ao secularismo, argumentam em seu medo absoluto da morte; a igreja que vive à luz da ressurreição não deveria interromper seu ministério por nada, nem mesmo pela morte.
Aqui as verdades e meias-verdades teológicas são distorcidas para apoiar uma mentalidade amarga de nós contra eles.
Sim, a prioridade da igreja é a saúde espiritual do rebanho, e o espectro da morte não deve manter a igreja e seus pastores afastados do ministério.
Sim, existe um medo excessivo quando o bem deve ser feito. Mas, exceto nos momentos em que a igreja é solicitada a renunciar à sua fé, não há razão para parar as obras espirituais de misericórdia. Mas não provamos nossa preocupação com as almas, demonstrando nosso desprezo pela saúde dos corpos.
Simplificando, os pastores não podem fazer do seu próprio povo os mártires da grande batalha contra o mundo secular.
Além disso, enquanto os pastores podem arriscar suas próprias vidas para ministrar às pessoas que sofrem de doenças, na situação atual, os pastores que por si mesmo ignoram a possibilidade de infecção ou de morte podem acabar levando a doença e a morte a outros paroquianos mais vulneráveis.
Somente o preconceito de grupo poderia levar alguém a confundir a situação atual e a imaginar que estamos vivendo no enredo de Silêncio, do japonês Shusaku Endo (1996).
Não é isso, e não estamos sacrificando nossa fé e nossa lealdade máxima à igreja quando fechamos temporariamente as igrejas. Pois a “igreja” nunca se fecha, visto que o amor de Deus nunca para de ser derramado em nossos corações pelo Espírito.
A graça de Deus não se limita aos sacramentos, mesmo que Deus esteja sempre graciosamente disponível neles.
Ao afirmar isso, não desencarnamos gnosticamente do corpo eclesial de Cristo; antes, reconhecemos que o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado.
Outro exemplo de preconceito de grupo é a insistente negação de que as pessoas aparentemente saudáveis são transmissores da doença. Vamos chamar isso de preconceito do grupo saudável, um preconceito contra a fragilidade.
Revelamos nossa falta de vontade de aprender como é a vida dos mais vulneráveis entre nós quando dizemos com complacência que a covid-19 “matará apenas os idosos e os doentes crônicos”, como se gozássemos de uma isenção permanente dessas categorias.
Os saudáveis não querem saber das verdades sobre os outros porque, em um nível fundamental, eles sabem que são verdades sobre si mesmos.
Nosso preconceito social contra nossa fragilidade humana pode ser facilmente entendido como o mecanismo psíquico da repressão em grande escala.
Se apenas um certo número de pessoas continuar a se reunir em público, apesar dos avisos das autoridades de saúde, então tudo estará bem.
Mas aqueles cujos membros da família sofrem de doenças, ou aqueles que viveram com doenças crônicas por toda a vida, têm menos probabilidade de serem vítimas do preconceito contra a fragilidade.
Eles podem fazer as perguntas apropriadas sobre o que é melhor fazer pelos outros, e isso ocorre porque a experiência já lhes impôs essas perguntas.
Se nossa cultura não fosse tão eficaz em nos separar dos especialmente vulneráveis, seríamos melhores em fazer as perguntas deles.
Podemos nos sentir como um corpo, no qual o membro mais fraco também é o mais honrado.
No entanto, a repressão psíquica funciona apenas enquanto houver histórias plausíveis que permitam dizermos a nós mesmos para mantermos nossos pontos cegos.
Uma dessas histórias surge do que Lonergan chama de preconceito do senso comum ou de preconceito geral. Simplificando, o preconceito geral é um preconceito contra o conhecimento teórico.
No campo da filosofia do conhecimento, ou epistemologia, é nossa tendência natural pensar que o conhecimento é como um olhar.
Quando crianças, identificamos o conhecimento com a própria experiência sensorial: o que é “real” é o que “esbarro” no mundo através dos meus sentidos.
Em outras palavras, “olhar” (amplamente compreendida como uma experiência sensorial) é acreditar e se não posso ver algo, então isso não deve ser real.
O senso comum prospera no mundo prático. Diz respeito ao que funciona, não à natureza da própria realidade.
E é assim que deve ser: expandir a natureza do “dinheiro” na fila do caixa do supermercado faria um tolo para o filósofo e frustraria todos os outros.
Mas é um problema se pensarmos que o que funciona é a única coisa que vale a pena conhecer e que nunca precisamos fazer mais perguntas. Nesse ponto, estamos vivendo em um preconceito geral.
Embora não sejam intrinsecamente opostos, os domínios da teoria e do senso comum são sempre suscetíveis de entrar em conflito.
Afinal, há momentos em que o senso comum se desintegra. Nesses momentos, o preconceito geral pode resistir aos julgamentos do conhecimento teórico e de seus representantes - especialistas, em outras palavras.
Isso ocorre com mais frequência quando a população em geral não pode validar as declarações dos cientistas simplesmente com uma boa olhada.
Eu suspeito que é por isso que muitos acharam tão difícil acreditar que poderiam estar transmitindo o coronavírus enquanto não se sentiam doentes.
Se eles não podem “ver” os efeitos do vírus em seus próprios corpos, como poderiam ser um perigo para os outros?
Essa pandemia nos lembra as limitações do senso comum e os perigos de seu preconceito contra a teoria – particularmente quando a teoria toma a forma de cientistas nos alertando sobre verdades inconvenientes que não podemos ver, sentir ou tocar imediatamente.
O anti-intelectualismo e a desconfiança das elites nos Estados Unidos têm muitas causas, mas o preconceito geral constitui seu coração.
Infelizmente, sua articulação com o preconceito de grupo cristão contra o mundo secular e o preconceito de grupo mais amplo de saudáveis contra os vulneráveis agora está colocando em risco a saúde pública.
A pandemia deste ano não será a última. Podemos esperar outras crises que desafiem nossa sociedade e exponham suas fraquezas inerentes.
Lonergan escreve que “o desafio da história é o homem restringir progressivamente o domínio do acaso, do destino e ampliar progressivamente o domínio da compreensão consciente e da escolha deliberada”.
Nesta crise, o acaso já cobrou muitas vidas e, sem dúvida, cobrará muitas mais antes que acabe.
“O domínio da compreensão consciente e da escolha deliberada” deve ser ampliado ainda mais antes que a próxima crise chegue. Isso exigirá um esforço coletivo em todos os níveis – local, nacional e internacional.
E esse esforço será bem-sucedido na medida em que conseguirmos superar os preconceitos que nos impedem de ver e aceitar realidades inconvenientes.
Tanto a igreja quanto a sociedade, cujos interesses são os da raça humana e não de nenhum grupo específico, tem o dever de se esforçar para erradicar todas as formas de preconceito.
Ao lado de todas as pessoas de boa vontade, devemos trabalhar juntos para o florescimento do todo.
Esse momento será lembrado como o que a sociedade estadunidense se entrincheirou ainda mais em seus perigosos preconceitos ou que trabalhou para corrigi-los, a fim de promover o bem-estar geral – aqui e em todo o mundo. Vamos rezar para que seja lembrado por este.
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O senso comum é insuficiente. Pode a pandemia nos curar dos maus hábitos da mente? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU